Não ao servilismo medroso da lei injusta. A hora é de desobedecer, por Jacques Távora Alfonsin

Jacques Távora Alfonsin – Sul21

A Zero Hora publicou um artigo de David Coimbra, na edição de 16 deste fevereiro, intitulada “Eles preferiam  morrer a comer porco”,  que termina assim: “… o brasileiro despreza a lei. Até os legisladores, ou principalmente eles, desafiam a lei. Terrível. Porque mesmo uma lei obsoleta, mesmo uma lei ultrapassada, até mesmo uma lei injusta é melhor, para uma nação, do que a indiferença à lei.”  

Para sustentar sua opinião, David foi à bíblia. Lembrou textos do Antigo e do Novo Testamento, onde se recorda a proibição legal, então  vigente, de se comer carne de porco. Essa imposição, embora vencida pela história, como exigência notoriamente descabida, levou até pessoas à morte por se negarem a ingerir essa carne, em razão pura e simples de a  obrigação dessa abstinência decorrer de lei.

Mesmo este absurdo – de uma lei notoriamente injusta ser obedecida até a eliminação de vidas humanas – aparece desconsiderado no fecho da opinião de David, já que, para ele, até a lei obsoleta, ultrapassada ou injusta, deve ser obedecida. Uma contradição a esse grau merece réplica, seja mesmo sumária, inclusive para demonstrar-se, dentro do próprio contexto bíblico onde o articulista se inspirou, a fartura de argumentos favoráveis à desobediência da lei injusta.

A começar pelo Antigo Testamento, no tempo em que o jejum era legal e rigorosamente imposto às pessoas, como uma forma de penitência por suas falhas e pecados, o profeta Isaias denunciou (Capítulo 58, versículos 1-9 da bíblia), como provindas do próprio Deus, as seguintes críticas:

“Clama em alta voz, sem constrangimento; faze soar a tua voz como a corneta. Denuncia a meu povo suas faltas, e à casa de Jacó seus pecados” {…} “De que serve jejuar, se com isso não vos importais? E mortificar-nos, se nisso não prestais atenção? É que no dia de vosso jejum, só cuidais de vossos negócios, e oprimis todos os vossos operários.  Passais vosso jejum em disputas e altercações, ferindo com o punho o pobre. Não é jejuando assim que fareis chegar lá em cima vossa voz. O jejum que me agrada porventura consiste em o homem mortificar-se por um dia? Curvar a cabeça como um junco, deitar sobre o saco e a cinza? Podeis chamar isso um jejum, um dia agradável ao Senhor? Sabeis qual é o jejum que eu aprecio? – diz o Senhor Deus: É romper as cadeias injustas, desatar as cordas do jugo, mandar embora livres os oprimidos, e quebrar toda espécie de jugo. É repartir seu alimento com o esfaimado, dar abrigo aos infelizes sem asilo, vestir os maltrapilhos, em lugar de desviar-se de seu semelhante.”

São Paulo não discorda, nos capítulos 5 e 6 da sua epístola aos romanos; o próprio Jesus Cristo, como se pode conferir no capítulo 23 do evangelho de São Mateus, denunciou como hipócritas, raça de víboras, sepulcros caiados, os escribas e fariseus do seu tempo, justamente os “mestres da lei”, quem “legislava” e “aplicava” preceitos, regras e  conselhos, destinados a sobrecarregar os ombros do povo com pesos intoleráveis sem lhes apoiar com um só dedo.

São libelos que se mantêm rigorosamente atuais em sentido bem diferente da proibição de não se comer carne de porco ironizada por David Coimbra. Demonstram como a autoridade da lei perde toda a capacidade de se impor e obrigar qualquer obediência, quando viciada por disfarçar como “direitos” interesses ocultos destinados a garantir privilégios, preservando discriminações e desigualdades próprias da injustiça social aqui imperante.

David considera “terrível” “o brasileiro desprezar” a lei. Ele não nota que a causa desta rejeição está mais do que explicada e justificada quando lamenta: “…até os legisladores ou principalmente eles desafiam a lei.”

Pois então? Se as/os próprias/os legisladoras/es sabem que elas não passam de uma farsa, valem para o povo e não para elas/es, podem abusar  impunemente do seu poder, sem qualquer obrigação de obedece-las, isso não constitui manifestação expressa de tirania e ditadura, despida de qualquer autoridade legítima para ser respeitada e obedecida?

Que obrigação pode advir, que obediência pode ser exigida de um povo, quando a lei parte de uma fonte suja, imoral, inidônea e corrupta como esta? Tão oposta, ilegítima, contrária à justiça e ao direito, tão vil devota da enganação e da mentira, como a do Congresso Nacional, em conluio com o Poder Executivo, vêm fazendo, desde o golpe perpetrado ao país em 2016?.

A queixa do David Coimbra constitui assim, por suas próprias palavras, a mais clara prova de que, no Brasil de hoje, não se vive nem sob Estado de direito nem sob democracia, o que legitima todo o protesto popular e toda a rebeldia contrária às leis injustas e inconstitucionais  baixadas por essa ditadura.

“No Brasil de hoje, não se vive nem sob Estado de direito nem sob democracia, o que legitima todo o protesto popular”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

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