“Presenciamos em 1968 a era das múltiplas explosões e revoltas no mundo todo: dos operários, dos estudantes, das mulheres, dos negros, dos movimentos ambientalistas e dos homossexuais, entre tantas outras formas de levante e de descontentamento social e político. No que se refere ao Brasil, apesar da influência de fatores externos e da identidade com movimentos contestadores de outros países, 1968 teve suas especificidades.”
O contexto da crise
Presenciamos em 1968 a era das múltiplas explosões e revoltas no mundo todo: dos operários, dos estudantes, das mulheres, dos negros, dos movimentos ambientalistas e dos homossexuais, entre tantas outras formas de levante e de descontentamento social e político. No que se refere ao Brasil, apesar da influência de fatores externos e da identidade com movimentos contestadores de outros países, 1968 teve suas especificidades. Por exemplo, o movimento estudantil, deflagrado em março, seguiu uma dinâmica de luta específica e um calendário político próprio anterior ao famoso maio de 1968 na França. Do mesmo modo, as greves dos metalúrgicos de Osasco (região industrial da Grande São Paulo), desencadeada em julho, e as greves de Contagem (região industrial da Grande Belo Horizonte), deflagradas em abril e outubro do mesmo ano, foram muito marcadas pela cena brasileira, então em plena luta contra a ditadura militar.
Isso não significa que os brasileiros não estivessem sintonizados com as manifestações que ocorriam mundo afora. Havia uma série de aspectos comuns, intensificados pelo “clima político” que imperava no cenário mundial naquele ano. Em diferentes medidas, havia similaridade de condições, como a industrialização avançada, a crescente urbanização, a consolidação dos modos de vida e da cultura das metrópoles, a massificação dada pela indústria cultural, o aumento e a diversificação do proletariado e das classes médias assalariadas, a importância dos jovens na composição etária da população e o acesso crescente ao ensino superior, além da incapacidade do poder constituído de representar as sociedades que se renovavam. Se esses condicionantes mais estruturais não explicam por si sós as ondas de rebeldia e de revolução, eles ofereceram ao menos o solo onde floresceram as ações políticas e culturais diferenciadas que caracterizam 1968 no Brasil. E, para compreendê-lo, é preciso lembrar dois movimentos, relativamente distintos em suas origens, mas bastante articulados em sua processualidade: o movimento estudantil e as greves operárias.
O movimento estudantil
O ano de 1968 iniciou-se no Brasil com a eclosão de várias manifestações estudantis. Os estudantes reivindicavam ensino público e gratuito para todos, democratização e melhoria da qualidade do ensino superior, com maior participação estudantil nas decisões, e mais verbas para as pesquisas voltadas para a resolução dos problemas econômicos e sociais do país. Também contestavam a ditadura implantada com o golpe de 1964 e o cerceamento das liberdades democráticas. A maioria desses universitários estudava em universidades públicas, mas o acesso ao ensino superior era restrito: havia muito mais procura que oferta de vagas.
As manifestações esporádicas dos estudantes vinham sendo reprimidas desde 1966. Contudo, as rebeliões só desabrocharam realmente em 1968. Em 28 de março daquele ano, a polícia invadiu o restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, frequentado especialmente por secundaristas pobres, entre eles Edson Luís de Lima Souto, que foi morto. Passeatas de protesto espalharam-se por todo o país a partir de então.
Ao mesmo tempo, esboçavam-se movimentos de contestação no meio operário e em parcelas do sindicalismo brasileiro. Nas comemorações do 1o de Maio, em São Paulo, operários e estudantes apedrejaram o palanque em que discursavam sindicalistas e o governador do Estado, Abreu Sodré.
Em junho de 1968, o movimento estudantil atingiu seu ápice. As passeatas, as greves e as ocupações das faculdades se generalizaram. O Rio de Janeiro serviu como cenário principal. Ali ocorreu a célebre Passeata dos Cem Mil, no dia 26 de junho: estudantes, intelectuais, artistas, religiosos e populares foram às ruas para protestar contra a ditadura e a repressão policial. O governo não coibiu a passeata por causa da pressão pública. Foi formada uma ampla comissão para dialogar com o governo, sem sucesso. Enquanto isso, vários atentados eram praticados pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), uma organização paramilitar de extrema-direita composta por estudantes e policiais e financiada por grandes grupos capitalistas, com o claro apoio da ditadura.
A repressão se intensificou. A Universidade de Brasília foi invadida pela polícia em 29 de agosto. Em São Paulo, no dia de 3 de outubro, um jovem foi assassinado na Faculdade de Filosofia, após o ataque de estudantes e de paramilitares de direita abrigados na Universidade Mackenzie. Em 15 de outubro, foi desmantelado o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), que ocorreria em Ibiúna, no interior paulista. Todos os cerca de setecentos universitários presentes foram presos, o que selou a derrota do movimento estudantil brasileiro. Vários deles passaram então para a militância política clandestina, unindo-se a organizações de esquerda e vinculando-se até à luta armada, que praticou suas primeiras ações já em 1968 e se intensificou nos anos seguintes.
A contestação radical à ordem estabelecida espalhou-se pelo cinema, pelo teatro, pela música popular, pela literatura e pelas artes plásticas. Nos anos 1960, manifestações culturais diferenciadas cantavam em verso e prosa a esperada “revolução brasileira”, que deveria basear-se na ação das massas populares na qual a intelectualidade de esquerda pretendia engajar-se e mesmo liderar.
O movimento operário
Mas havia outra figura social presente nesse ciclo de rebeliões mundiais: o operário-massa, a parcela hegemônica do proletariado da era taylorista-fordista. As lutas de classes ocorridas em 1968 solapavam o domínio do capital pela base e traziam à tona a possibilidade de uma hegemonia (ou uma contra-hegemonia) oriunda do mundo do trabalho.
Os operários estampavam desse modo seu descontentamento com a alternativa socialdemocrata, predominante nos sindicatos e nos partidos, que reivindicavam a representação das forças sociais do trabalho e seguiam uma via negocial, institucional e contratualista dentro dos marcos do “compromisso social-democrático”. Se esse traço esteve presente nas lutas operárias na França, em 1968, e, no ano seguinte, no Outono Quente na Itália, e ainda no Cordobazo, na Argentina, entre tantas outras em outros países, no Brasil as greves tinham um claro sentido de confronto, tanto com a ditadura militar, que cerceava a liberdade e a autonomia sindicais, quanto com a política econômica, que se fundava na superexploração do trabalho.
A repressão ao movimento operário e sindical era condição necessária para que o golpe militar pudesse criar novos condicionantes para a expansão capitalista e sua maior internacionalização no Brasil. Fortemente repressiva, a ditadura militar cassou os partidos políticos e criou dois partidos oficiais apenas; proibiu as greves, interveio em diversos sindicatos e decretou a ilegalidade da Central Geral dos Trabalhadores e da UNE.
Depois de alguns anos de resistência, foi no início de 1968 que a luta operária voltou mais forte e mais ofensiva. Em abril, setores sindicais de esquerda lideraram uma greve em Contagem que levou a resultados positivos: a ditadura militar, surpreendida pelo ressurgimento do movimento operário, acabou cedendo às reivindicações trabalhistas. Foi a primeira vitória de uma greve operária depois de 1964. Novos núcleos se formaram em Contagem e Osasco, vinculados sobretudo ao movimento operário católico de esquerda e a militantes e simpatizantes de organizações políticas mais críticas e radicais, à esquerda do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Os setores mais moderados do sindicalismo organizaram-se no Movimento Intersindical Antiarrocho.
Mas foi no mês de julho de 1968, em Osasco, que os operários realizaram uma greve que se tornaria lendária. A cidade era considerada um pólo de movimentos mais à esquerda em razão da atração exercida pela oposição sindical, que venceu as eleições de 1967 para a direção do Sindicato dos Metalúrgicos.
Antecipando-se à greve geral que seria realizada em outubro de 1968, mês do dissídio coletivo dos metalúrgicos, a direção sindical de Osasco esperava estendê-la para outras regiões do país. Iniciada no dia 16 de julho, com a ocupação da Cobrasma, a greve atingiu as empresas Barreto Keller, Braseixos, Granada, Lonaflex e Brown Boveri. No dia seguinte, o Ministério do Trabalho declarou a ilegalidade da greve e determinou intervenção no sindicato. As forças militares controlavam todas as saídas da cidade, e as fábricas paralisadas foram cercadas e invadidas. A partir de então, acabou-se toda e qualquer possibilidade de manutenção e ampliação da greve. Quatro dias depois de iniciada a greve, os operários retornaram ao trabalho. Fora derrotada a greve mais importante até então deflagrada contra a ditadura militar.
Os dirigentes sindicais mais combativos exilaram-se ou passaram a atuar clandestinamente. Mais tarde, vários deles aderiram às distintas organizações de esquerda que participaram da luta armada contra a ditadura.
Fazendo um balanço crítico do movimento, José Ibrahim, principal líder grevista, disse:
“O governo estava em crise, ele não tinha saída, o problema era aguçar o conflito, transformar a crise política em crise militar. Daí vinha nossa concepção insurrecional de greve. O objetivo era levar a massa, através de uma radicalização crescente, a um conflito com as forças de repressão. Foi essa concepção que nos guiou quando, em julho de 1968, decidimos desencadear a greve.” (Revista Escrita/Ensaio, São Paulo, Escrita, 1980).
Em outubro, animados pela vitória de abril, os operários de Contagem iniciaram outra greve por melhores condições de trabalho e contra o arrocho salarial. Mas o contexto da ditadura militar era de claro recrudescimento. A paralisação durou poucos dias e houve uma violenta repressão aos grevistas, o Sindicato sofreu intervenção e sua direção foi destituída. Ocorria, então, mais uma violenta derrota do movimento operário, que levou anos para se recuperar. O 1968 brasileiro se encerrou com a dura repressão à ação operário-estudantil por parte da ditadura militar.
Mas a luta pela criação de comissões de fábrica, contra o despotismo fabril, a superexploração do trabalho e a estrutura sindical atrelada ao Estado, e em claro confronto com a ditadura militar, deixou raízes sólidas, que ressurgiram de outro modo e sob outra forma dez anos depois, especialmente na luta das oposições sindicais.
O desfecho
Em 13 de dezembro de 1968, a ditadura militar acentuou seu lado mais repressivo: decretou o Ato Institucional Número 5 (AI-5), conhecido como “o golpe dentro do golpe”. O terrorismo de Estado, que prevaleceria até meados dos anos 1970, foi oficializado. O Congresso Nacional e as Assembléias Legislativas estaduais foram postos em recesso e o Governo passou a ter plenos poderes para suspender direitos políticos dos cidadãos, legislar por decreto, julgar crimes políticos em tribunais militares, cassar mandatos eletivos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos etc. Simultaneamente, generalizavam-se as prisões de oposicionistas e o uso da tortura e do assassinato em nome da manutenção da “segurança nacional”, considerada indispensável para o “desenvolvimento” da economia e do que mais tarde se denominaria “o milagre brasileiro”.
Inúmeros estudantes, operários, intelectuais, políticos e outros oposicionistas dos mais diversos matizes foram presos, cassados, torturados, mortos ou exilados após a edição do AI-5. Foi imposta uma rígida censura aos meios de comunicação e às manifestações artísticas. O regime militar punha fim assim à luta política e cultural daquele período, reprimindo duramente qualquer forma de oposição. Os “anos de chumbo” viriam a suceder ao “ano rebelde” de 1968.
Como conclusão, diríamos que os dois principais movimentos que caracterizam 1968 no Brasil tiveram muitas similitudes: ambos estavam à esquerda dos movimentos mais tradicionais e propunham uma alternativa ao PCB e à sua política de moderação, que dominou os movimentos operário e estudantil pré-1964. Mas as lutas estudantis e operárias de 1968 no Brasil não conseguiram viabilizar uma alternativa de massa, e exauriu-se em seu vanguardismo.
O movimento estudantil, derrotado, engrossou com suas lideranças e militantes as fileiras da luta armada contra a ditadura militar. O movimento operário, depois das derrotas de Contagem e Osasco, refluiu fortemente e vários de seus quadros mais à esquerda também se incorporaram à luta armada. Ambos desnudaram o sentido profundamente ditatorial e terrorista do Estado brasileiro e foram, por isso, violentamente reprimidos.
Não foi por acaso, então, que tanto em Osasco como em Contagem pudemos presenciar uma ação operária com significativa presença estudantil, especialmente de estudantes que militavam por organizações de esquerda e ingressaram nas fileiras da vanguarda operária para melhor influenciar as ações dos trabalhadores.
Talvez esse seja um traço marcante do ano de 1968 no Brasil, muito diferente daquele que se viu tanto no movimento que eclodiu dez anos depois, com as greves metalúrgicas do ABC paulista, quanto no movimento estudantil que voltou a tomar as ruas de várias cidades brasileiras na segunda metade dos anos 1970, mais uma vez contra a ditadura militar. Mas essa já é outra história.
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Ricardo Antunes é um dos principais nomes da Sociologia do Trabalho no Brasil. Professor titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp), Antunes é coordenador da coleção ‘Mundo do trabalho’, da Boitempo.
Foto: Maio de 1968, Brasil