Autoritarismo, democracia e eleições

Retomar, nessas eleições, a defesa da cidadania e dos direitos humanos é uma escolha histórica na direção da civilização e não do retorno à barbárie da ditadura

Paulo Sérgio Pinheiro e Marcos César Alvarez*, no El País Brasil

Há trinta anos que pesquisamos e analisamos no Núcleo de Estudos da Violência, NEV/ USP, os processos na sociedade brasileira que geram a violência nos seus mais diversos aspectos. Na década de 1980, quando esse Núcleo surgiu, havia um forte entusiasmo e otimismo diante da transição democrática, após 20 anos de ditadura militar. A retomada do governo civil trouxe a esperança de que os graves problemas que afetavam a população —autoritarismo, desigualdade, discriminação, racismo— seriam superados. A Constituição de 1988, sem dúvida, condensou as expectativas de construção de uma sociedade menos violenta, mais justa, democrática, graças também à renovação das instituições do Estado.

Muitas das pesquisas que desenvolvemos visaram as violações de direitos dos cidadãos, especialmente os negros, os jovens, as mulheres, os mais pobres, praticadas pelo próprio Estado — como as execuções sumárias, a tortura, os maus tratos nas prisões, as políticas públicas precárias para a imensa maioria constituída pelas brasileiras e brasileiros, sobretudo negros e pobres. Sempre defendemos que o aperfeiçoamento da democracia seria incontornável para conter a violência presente na sociedade e sobretudo a perpetrada pelo Estado. No entanto, durante décadas o aperfeiçoamento da democracia pareceu se limitar ao processo eleitoral, não incorporando na cidadania plena os negros e os pobres. Somente a partir dos anos 2000, vinte milhões de brasileiros foram finalmente retirados da pobreza extrema.

Tem sido flagrante a resistência à assimilação de práticas e rotinas democráticas pelas instituições, essenciais para o funcionamento da democracia (especialmente o poder judiciário, o ministério público, a polícia), decisivas para garantir o tratamento justo e igualitário dos cidadãos perante a lei, bem como a não discriminação dos negros, dos indígenas e de gênero.

No interior daquelas instituições, infelizmente ainda grassam o elitismo, o nepotismo, os cambalachos políticos, a seletividade nos procedimentos, a aversão às auditorias externas e a falta de transparência. Esses são alguns traços evidentes do ralo compromisso que essas instituições públicas tiveram e têm com o sistema democrático.

Como aprofundado em diversas pesquisas no Núcleo, aqui predomina um autoritarismo socialmente implantado —com raízes mais profundas do que as práticas determinadas pelas ditaduras de 1937 e de 1964— inscrito numa grande continuidade que marca a sociedade brasileira diretamente dependente dos sistemas de hierarquia implantados pelas classes dominantes brancas e reproduzido regulamente pela violência ilegal do Estado. Se desde a transição democrática a representação das classes populares através de eleições se ampliou, as relações de poder entre as classes sociais, fundadas no racismo estrutural, na desigualdade e na violência ilegal do Estado, não se alteraram.

Não surpreende, portanto, vermos surgir na atual campanha eleitoral concepções autoritárias e extremistas que oferecem soluções simplistas para nossos graves e complexos problemas sociais, sobretudo aqueles relacionados à violência. É extremamente preocupante para a nossa democracia que tais ideias, envoltas na apologia da violência, elogio da tortura e de torturadores, na incitação ao fuzilamento de opositores, com aquiescência por vezes das autoridades judiciais, encontrem ressonância entre muitos eleitores. Retomar, nesse pleito presidencial, a defesa da cidadania e dos direitos humanos é não só a única opção democrática possível como uma escolha histórica na direção da civilização e não do retorno à barbárie da ditadura de 1964.

*Paulo Sérgio Pinheiro é pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência NEV/USP e ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, 2002-2003, no governo FHC.; Marcos César Alvarez é vice-coordenador do Núcleo de Estudos da Violência NEV/USP e professor Livre-docente do Departamento de Sociologia da USP.

Imagem: Estudante caindo no chão, durante perseguição policial aos manifestantes na Avenida Rio Branco – 1964 (Evandro Teixeira/Agencia JB/Dedoc)

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.

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