Por Fábio de Oliveira Ribeiro, no GGN
Aqui mesmo no GGN já fiz várias referências à crise do discurso jurídico no Brasil. Desde então, sempre que é convocado a decidir uma disputa judicial que possa aprofundar o regime de exceção ou restabelecer a legalidade e sua credibilidade o Judiciário age de maneira errática. Num dia o STF revogou a competência extraordinária da Lava Jato como se o sistema constitucional pudesse ser salvo, no outro Gilmar Mendes se recusou a proibir a comemoração do golpe de 1964.
A Comissão da Verdade, um organismo estatal, provou satisfatoriamente que a ditadura militar era autoritária, racista, violenta, usava sistematicamente a tortura e incentivava ou, no mínimo, tolerava o emprego de técnicas terroristas por agentes das Forças Armadas. Portanto, a decisão de Gilmar Mendes é absurda. A comemoração do golpe de estado que instituiu aquele regime brutal contraria frontalmente os princípios que orientam república federativa do Brasil (art. 1o., II e III c.c. art. 3o., I e 4o., II e VIII, todos da CF/88).
Economicamente injusta e politicamente hipócrita a democracia brasileira começou a perecer no exato momento que a legitimidade popular foi expulsa da agenda pública durante o golpe do Impedimento “com o STF com tudo”. A diplomação e posse de Jair Bolsonaro confirmou o sequestro financeiro do poder político outrora outorgado ao povo brasileiro. Antes da eleição o presidente do TSE disse que a eleição poderia ser anulada se o resultado fosse determinado por uma campanha massiva de Fake News como aquela que Jair Bolsonaro utilizou para derrotar Fernando Haddad.
Assim que assumiu a presidência o novo presidente começou a militarizar o Poder Executivo. Bolsonaro pretende fazer o militarismo penetrar em todos os aspectos da vida cotidiana brasileira, a começar pelo sistema educacional. Tudo indica que ele receberá apoio do Judiciário.
Nesse contexto não chega a causar espanto o resultado da disputa judicial em torno da comemoração do nascimento da ditadura militar de 1964. Em apenas alguns dias foi revogada a ordem judicial de primeira instância que proibia a prática do ato contrário aos fundamentos do sistema constitucional brasileiro. Antes mesmo disso ocorrer alguns militares afirmaram que não tinham obrigação alguma de cumprir referida decisão judicial.
Regiamente pagos para defender a legalidade vários juízes brasileiros continuam trabalhando para destruí-la. Nenhuma novidade. A maioria esmagadora dos membros do Judiciário apoiou a fraude que derrubou Dilma Rousseff e parece inclinada a conviver com o regime autoritário que está sendo rapidamente reconstruído.
Nenhuma novidade. O golpe de 1964 também foi apoiado pelos juízes. Poucos dentre eles ousaram desafiar as excrescências jurídicas que consolidaram e expandiram a Ditadura Militar (AI-1, AI-2, AI-3, AI-4, AI-5, etc…). Quando o Brasil ganhou uma nova constituição em 1988 a responsabilidade dos juízes foi esquecida. Eles nem mesmo precisaram ser anistiados em virtude de terem instrumentalizado uma ditadura brutal e assassina aplicando a legislação de exceção. Durante duas décadas eles trabalharam para manter uma aparência de normalidade enquanto faziam vistas grossas para o uso sistemático da tortura e das execuções extrajudiciais.
A tragédia jurídica de 1964 está se repetindo. Mas o conteúdo trágico do novo regime é muito maior. Afinal, o golpe de 2016 não foi dado com o uso da força bruta. Os militares somente entraram em cena depois que os juízes começaram a destruir o sistema constitucional. O resultado da eleição de 2018 foi descaradamente condicionado pelo Poder Judiciário. Além de condenar e prender o candidato preferido pelo povo com base em um processo absolutamente fraudulento (refiro-me obviamente ao caso do Triplex), o STF se recusou a cumprir decisões em favor de Lula proferidas pela Corte de Direitos Humanos da ONU.
O regime que está sendo construído por Bolsonaro não faz questão alguma de manter qualquer aparência de civilidade. Muito pelo contrário. O Projeto de Lei enviado à Câmara dos Deputados pelo Ministro da Justiça autoriza os policiais a executarem qualquer cidadão sob a alegação de se sentiram ameaçados. Formalmente proibidas durante a ditadura militar, a tortura e a pena de morte voltam a ser abertamente cogitadas.
Desacreditado, o STF cede à tentação autoritária e já fala abertamente que o sistema constitucional deve ser revisto. Revisto por quem? Por um presidente autoritário que foi eleito por uma campanha de Fake News para garantir o predomínio dos interesses norte-americanos no Brasil com prejuízo da população brasileira? Por um Congresso Nacional que é dominado por ruralistas, pastores, devedores da previdência e novatos que defendem abertamente uma “intervenção militar”? Por juízes que ajudaram a rasgar a constituição que estava em vigor?
O futuro é sempre incerto. O passado, entretanto, é conhecido. Se o Brasil enveredar pelo caminho em que foi colocado pelos juízes, em pouco tempo eles começarão a proferir sentenças de morte e a autorizar cautelarmente o uso da tortura. Eles farão exatamente aquilo que os juízes do III Reich fizeram antes de se sentarem no banco dos réus, episódio histórico dramatizado no filme Judgement at Nuremberg (1961).
Sou advogado desde 1990 e a única coisa que posso fazer é defender a civilização, sustentar as virtudes da democracia e tentar garantir, dentro dos limites legais e na minha esfera de atuação, a higidez do sistema constitucional que está sendo demolido. Não estou em condições de interromper o processo histórico que levará o Judiciário brasileiro a afundar definitivamente na infâmia e no crime. A única coisa que eu posso fazer é sustentar a dignidade da minha profissão no futuro me recusando a defender qualquer juiz que for acusado de ser diretamente responsável ou conivente com o crime de genocídio que será praticado por Jair Bolsonaro e seus milicianos fardados.
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Foto: Justiça. Lady with a Emine, do jogo Layers of Fear, no Voyager