“O governo querendo ou não, nós vamos fazer a conferência”

Em meio a ameaças à participação social nas políticas públicas, 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena corre risco

por Maíra Mathias, em Outra Saúde

Na última quinta-feira (11), o governo Jair Bolsonaro comemorou cem dias. A data foi marcada pela assinatura de diversas medidas, dentre elas o decreto 9.759 que extingue um grande número de conselhos e instâncias de participação social no governo federal, dentre eles o Conselho Nacional de Política Indigenista e a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena. Longe dos holofotes, naquele mesmo dia outra notícia chegou como uma bomba para o movimento indígena. Um parecer da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde assinado na véspera questionava o processo de contratação de empresa para a realização da 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena, marcada para acontecer entre os dias 27 e 31 de maio em Brasília, com previsão de reunir 2,2 mil pessoas. A recomendação é que o processo, aberto em setembro do ano passado, seja jogado no lixo e recomeçado do zero, inviabilizando a manutenção da data, decidida quase um ano atrás. Mas isso não foi tudo.

Naquela noite, Bolsonaro fez mais uma de suas transmissões ao vivo pelo Facebook. E disse: “Vai ter um encontrão de índios agora, semana que vem. Está sendo previsto dez mil índios aqui em Brasília. E quem vai pagar a conta dos dez mil índios que vêm para cá? É você [contribuinte]. Queremos o melhor para o índio brasileiro, que é tão ser humano quanto qualquer um de nós que está na sua frente aqui. Mas essa farra vai deixar de existir no nosso governo”. O presidente se referia ao Acampamento Terra Livre que existe há 15 anos e nada tem a ver com dinheiro público, como rebateu a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. A sucessão de fatos, contudo, deixa muitas dúvidas. Teria Bolsonaro confundido o Acampamento com a 6ª Conferência, esta sim, financiada com recursos públicos – como, aliás, todas as conferências? Será o decreto 9.759 o primeiro dentre outros atos que extinguirão ou inviabilizarão a participação da sociedade civil nas políticas públicas? Seria o parecer jurídico (que está sendo questionado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, a Sesai, conforme documento obtido pelo Outra Saúde) uma forma de encobrir, com argumentos técnicos, uma decisão que na verdade seria política e vinda de um escalão mais alto?

O momento é de incertezas. Na sexta (12), o Conselho Nacional de Saúde se reuniu. Lá, o secretário da Sesai, Marco Antônio Toccolini, afirmou que tinha pedido uma audiência com o ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta para tentar resolver a questão. A posição oficial, contudo, parecia ir na direção de que seria necessário adiar a conferência. Procuramos o Ministério da Saúde, que por sua vez enviou nota, através de sua assessoria de imprensa, em que afirma que a 6ª Conferência “não foi suspensa”. Enquanto isso, o movimento indígena, apoiado por todos os conselheiros nacionais de saúde – incluindo os membros do governo federal – resolveu manter a data da 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena. De fato, talvez nunca tenha havido um contexto em que o evento tenha sido tão necessário. A saúde indígena vive uma crise sem precedentes, com sua estrutura sendo questionada pelo ministro Mandetta, que ameaçou municipalizar as ações e extinguir a Sesai. Recentemente – depois de muita pressão do movimento indígena que ganhou atenção da mídia – ele voltou atrás. Para o conselheiro nacional de saúde Ailson dos Santos – conhecido como Yssô Truka – tudo isso está ligado. Nessa entrevista, o representante do Fórum de Presidentes de Conselhos Distritais de Saúde Indígena e membro da comissão organizadora da 6ª Conferência denuncia: “O governo queria acabar com a Sesai, a gente fez um trabalho de pressão. O governo recuou. Mas, como retaliação, ele de uma hora para outra encontra uma série de empecilhos para a realização da conferência.” Confira.

Vocês já tinham alguma informação de bastidor de que a 6ª Conferência estava em risco? Na medida em que se desenrola uma crise na saúde indígena desde o início do governo, primeiro devido ao impacto do fim da parceria com Cuba no programa Mais Médicos, que atinge também outras populações, mas atingiu muito profundamente os indígenas, e depois com o anúncio de municipalização das ações de saúde indígena e fim da Sesai, que afinal não aconteceu por pressão do movimento indígena…

A gente não sabia de nada. Sabíamos que seria necessário fazer um ajuste, pois eles questionaram o valor da conferência. A comissão organizadora pediu para a área técnica fazer os ajustes, trabalhar com o mínimo necessário. Ontem [quinta, 11] eles mandaram arquivar o processo [de contratação da empresa que realizaria o evento], dizendo que não concordavam com o termo de referência. Decidiram que tinha de iniciar outro processo. Nós estamos a 45 dias da conferência. Se o processo começa do zero agora não dá mais tempo para contratar os serviços. Eles acusaram os trabalhadores, os servidores e a gente da comissão de estar fazendo conluio, de tocar um processo totalmente frouxo, encaminharam para instaurar inquérito administrativo contra os servidores. E o novo processo teria de passar novamente pela área jurídica para ser analisado.

Na última transmissão ao vivo, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que o Acampamento Terra Livre, que vai acontecer essa semana e reúne indígenas de todo o país em Brasília, é pago com dinheiro público, o que é mentira. Você acha que existe algum tipo de orientação de cima? Porque parece que ele confundiu o Acampamento Terra Livre que não tem nada a ver com dinheiro público com a conferência que só iria acontecer no final de maio, mas tem financiamento do governo federal como, aliás, todas as conferências. Dá margem para uma interpretação de que se não foi confusão, a conferência poderia ser posta em xeque pelo presidente também… O parecer jurídico poderia estar encobrindo, com argumentos técnicos, uma decisão que na verdade seria política e vinda de um escalão mais alto?

Com certeza. Bolsonaro tenta jogar a opinião pública contra os povos indígenas. Ele tenta confundir a sociedade, pois o Acampamento Terra Livre acontece todos os anos e nunca teve financiamento do governo. O governo queria acabar com a Sesai, a gente fez um trabalho de pressão. O governo recuou. Mas, como retaliação, ele de uma hora para outra encontra uma série de empecilhos para a realização da conferência. Sabendo que na semana que vem nós, povos indígenas, vamos estar aqui e vamos bater de frente contra essa questão do cancelamento da conferência. Ele está juntando essa argumentação para desqualificar nosso debate. Ontem estivemos em uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do Senado e a senadora Soraya Thronicke [do partido de Bolsonaro, o PSL, eleita pelo Mato Grosso do Sul] nos chamou de miseráveis e de massa de manobra. Sonia Guajajara [presidente da APIB e candidata à vice de Guilherme Boulos na chapa que concorreu à Presidência em 2018 pelo PSOL] respondeu à altura. E esse tipo de resposta vem ferindo o orgulho e a vaidade desse pessoal.

Você buscou interlocução com outras entidades do movimento indígena para tomar a decisão de manter a data da conferência?

Sim. Conversei com a APIB e entidades de base. Não tem segredo entre a gente. Já foram gastos R$ 11 milhões com etapas locais e distritais. Foram realizados 302 etapas locais e 34 etapas distritais. Mais de 60 mil pessoas foram mobilizadas nesse processo no Brasil inteiro… Não estão querendo bancar a conferência por retaliação. Nós decidimos que, eles querendo ou não, nós vamos fazer a conferência. Vamos buscar o apoio de parceiros, como outros movimentos que fazem parte do Conselho Nacional de Saúde e as universidades. A gente vai dar entrada em uma ação civil pública contra o Ministério da Saúde e contra o ministro [Luiz Henrique] Mandetta e contra o próprio Bolsonaro que vai ter que explicar de onde ele tirou que o Acampamento Terra Livre está sendo feito com dinheiro público.

A gente está sendo toda hora atacado. Eles praticamente acabaram com a Funai [transferida do Ministério da Justiça para o Ministério dos Direitos Humanos] atendendo ao interesse dos ruralistas, que não concordam com o processo de demarcação de terras indígenas. Eu não tenho nada contra ruralista, não. Mas o fato é que o Brasil é de todos. O governo deveria olhar para todos, não só para os ruralistas.

Essa decisão de manter a data da conferência, a despeito do financiamento do Ministério, não pode de alguma maneira tirar o governo da berlinda? Por exemplo, hoje [sexta, 12] os representantes do governo no Conselho Nacional de Saúde apoiaram a decisão de que o que a comissão organizadora bata o martelo e decida. Mais tarde, eles poderão argumentar que o processo deu problema, que sinalizaram que poderiam adiar a data e bancar, mas que foi o movimento indígena que não quis e preferiu manter. O custo político não seria maior caso o Ministério tivesse, afinal, que assumir que não vai haver conferência?

Eles não propuseram o adiamento do processo.

Mas aí o secretário da Sesai disse que uma das possibilidades era pedir uma audiência com o ministro e fazer o processo todo do zero…

Foi isso mesmo. Só que o ministro adiou a audiência. Não vai ter audiência.

Não tem data? Seria qual data?

Era para ser hoje, não teve. Aí foi remarcada para o dia 16, mas não pode. Possivelmente essa audiência só vai acontecer em junho…

De modo que propusemos ao pleno [do Conselho], que decidiu que vai se manter a data e eles vão ter que bancar a conferência. Só que não tem mais prazo para contratar os serviços.

O que eu tinha entendido é que a votação apoiava a decisão de manter a data, sem que o MS tivesse de bancar. Entendi que vocês correriam atrás de parcerias para viabilizar a conferência…

Eu fui pedir socorro aos membros do Conselho Nacional. Como a conferência foi chamada pelo CNS e homologada pelo [ex-]ministro da saúde [Gilberto Occhi] é responsabilidade do ministro prover de todas as condições a conferência. Se tem irregularidades, isso logicamente deve ser apurado, sim. E quem estiver implicado precisa ser responsabilizado. O que ele não pode é penalizar a população indígena que só quer participar e avaliar a política pública, além de propor novas diretrizes para sua implementação. O que está sendo feito é o contrário. E a responsabilidade com o recurso que já foi gasto?


“Enquanto eles não acabarem com a gente, eles não vão parar. A sociedade brasileira precisa acordar para isso.”

Para além dessa guerra cultural que o governo tem procurado travar com vários setores da sociedade, dentre eles o movimento indígena, vimos a publicação do decreto que extingue uma série de conselhos e outras instâncias de participação social na estrutura do governo federal. O Conselho Nacional de Saúde não está correndo risco, pois foi criado por lei e, por isso, não se enquadra nos casos previstos pelo decreto, mas de qualquer forma é um indicativo de que o governo não entende a participação da sociedade civil como algo que compõe a administração pública. Qual sua avaliação disso?

Nós estamos num período de muita deturpação. O Conselho Nacional de Saúde está a salvo neste momento, mas o decreto é um indicativo de que, no futuro, eles podem tentar vetar qualquer tipo de deliberação do conselho nacional. E, até mesmo, do fim das conferências. As conferências são espaço social de discussão garantido pela Constituição Federal no artigo 198. Há uma intencionalidade de vetar a participação social e promover um Estado de exceção.

A conferência de saúde indígena talvez nunca tenha sido tão importante quanto nesse momento, em que se viu uma ameaça de extinção da Sesai sem qualquer tipo de diálogo com os maiores prejudicados ou planejamento do que colocar no lugar. O programa Mais Médicos que, por conta dessa disputa ideológica, ficou sem os médicos cubanos e os DSEIs [Distritos Sanitários Especiais Indígenas] foram duramente afetados. Queria que você falasse quais sãos os problemas que precisam ser debatidos.

Todos os setores da sociedade estão sofrendo ameaças. São perigos e ações violentas contra os direitos garantidos pela Constituição Federal. Nós, povos indígenas, defendemos que é preciso fortalecer a saúde indígena e, para isso, é preciso que se mantenha o subsistema. As prefeituras não têm condições estruturais e técnicas para gerir a saúde indígena. Nós não somos contra os municípios, ao contrário. Queremos dialogar cada vez mais com os municípios. Agora, o governo federal precisa entender que nós somos 305 povos indígenas que falam 264 línguas diferentes e vivemos em uma dispersão geográfica gigantesca. Muitos municípios não têm estrutura para chegar onde os povos indígenas estão. E, chegando, não tem pessoal qualificado para falar aquele idioma e lidar com aquela cultura. O subsistema foi pensado por isso. Para contemplar essas especificidades. Nós não queremos ter privilégios, não. O que nós queremos é que se respeite nossa cultura e nossas especificidades. Porque, senão, esse processo genocida em relação aos povos indígenas vai ganhar força se perpetuar. Enquanto eles não acabarem com a gente, eles não vão parar. A sociedade brasileira precisa acordar para isso.

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