O populista, que tanto critica o “viés ideológico” de seus opositores, chancela uma política externa subalterna e ideologicamente afinada aos interesses dos EUA, que não coincidem com os interesses nacionais. Tal modalidade de inserção internacional tem contribuído para o enfraquecimento do Mercosul
Por Carlos Eduardo Santos Pinho, no Le Monde Diplomatique
A eleição de Jair Bolsonaro, potencializada pela difusão de fake news por meio de mídias sociais, redefiniu o pacto político da Nova República (1985-1989) e sucumbiu a polarização política entre PT e PSDB, vigente em seis eleições presidenciais. Foi sufragado nas urnas um projeto de poder fortemente conservador nos costumes, radicalmente liberal na economia e submisso, do ponto de vista das relações exteriores, aos interesses econômicos e geopolíticos dos EUA, como mostram as evidências empíricas.
Apesar do legado de concentração de renda, hiperinflação, endividamento externo, crise fiscal e exclusão social, no que concerne à economia política, nem a ditadura militar (1964-1985) – a quem o atual mandatário-populista da República devota constante admiração – seguiu rigorosamente as premissas do livre mercado e negou a importância de uma estratégia de desenvolvimento doméstica vinculada a uma inserção internacional assertiva. Esta brevíssima reflexão tem como objetivo apresentar algumas semelhanças e diferenças entre a ditadura militar (1964-1985) e a coalizão de extrema direita populista, do ponto de vista das relações domésticas e internacionais.
Com o apoio de uma heterogênea coalizão abarcando as classes média e abastada, a grande imprensa, a Igreja Católica, autoridades políticas, o empresariado industrial e os EUA, o golpe civil-militar de 1964, que retirou o presidente João Goulart (1961-1964) do poder, teve como justificativa ideológica salvar a democracia do “comunismo”, que, de fato, nunca existiu no Brasil. Em sua plataforma de governo, João Goulart contemplou reformas estruturais, como a bancária, tributária, política, educacional, agrária, urbana, a limitação da remessa de lucros das multinacionais para o exterior e o nacionalismo econômico. O quadro macroeconômico foi marcado pela desaceleração das taxas de crescimento do PIB e pelo aumento da inflação, ensejando o agravamento do conflito distributivo seguido da ampliação das greves dos trabalhadores. No espectro político-institucional delineou-se o estremecimento das relações Executivo/Legislativo e a instabilidade política. Nesse contexto, segmentos empresariais como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), a Associação Comercial de São Paulo (ACSP), o Sindicato dos Bancos, a Federação do Comércio e a Sociedade Rural Brasileira (SRB), atribuíram ao presidente a responsabilidade pelo apoio concedido às demandas sindicais e pela crise de autoridade, cuja solução seria a restauração da ordem (AARÃO REIS FILHO, 2014; JAGUARIBE, 1977; LOUREIRO, 2017). Assim como Getúlio Vargas (1930/1945-1951/1954) – que pavimentou as bases para o processo de urbanização e industrialização por substituição de importações (ISI) – João Goulart deu prosseguimento à política de valorização do salário mínimo e instituiu o 13º salário, desencadeando a insatisfação das elites político-empresariais, que deram respaldo à instauração da ditadura militar de 1964.
Conquanto um modelo de desenvolvimento que priorizou a indústria de bens de capital, os grandes conglomerados econômicos da construção pesada (CAMPOS, 2014) e o consumo de bens duráveis e luxuosos, acessíveis exclusivamente às camadas média e alta, as primeiras medidas de política econômica do Nacional-Desenvolvimentismo Autoritário, particularmente no governo do general Castello Branco (1964-1967), reduziram expressivamente o custo do trabalho via contenção salarial e coerção sobre os sindicatos. O objetivo era aumentar as margens de acumulação do empresariado, alavancar o capitalismo produtivo, controlar a inflação e conter o “populismo distributivista e estruturalista”, segundo a retórica da tecnocracia destinada a executar a política macroeconômica. São exemplos a criação do Conselho Monetário Nacional (CMN), do Banco Central e a reforma financeira; o fim da estabilidade no emprego e sua substituição pelo FGTS, aumentando a rotatividade dos trabalhadores; a reforma tributária de cunho regressivo, que penaliza até hoje as classes de baixa renda; a repressão aos canais de participação popular; o arrocho e a perda de poder aquisitivo do salário mínimo; a subordinação da política social à política econômica. Tais medidas foram executadas mediante forte centralização decisória e organizacional, concentração de poder, exclusão da participação social no processo de formulação e implementação de políticas.
No que concerne à dimensão das relações exteriores, embora o governo Castelo Branco fomentasse um alinhamento quase automático aos EUA, o governo Geisel (1974-1979), particularmente na gestão do Chanceler Azeredo da Silveira, formatou o “pragmatismo responsável”, buscando amalgamar desenvolvimento econômico e aumento de poder na esfera das relações internacionais. Azeredo da Silveira manifestava uma visão mais inovadora em matéria de política internacional, somada à força e autonomia da parceria com o presidente Geisel com relação a outros atores dentro da arena decisória de política externa. Assim, “pragmatismo” significa dizer que a projeção dos “interesses nacionais” brasileiros deve preceder a questões de natureza ideológica e requer a capacidade de adaptação a qualquer mudança potencial no sistema internacional. Havia uma preocupação do governo Geisel no que dizia respeito às dimensões da independência, da soberania nacional, da não submissão aos EUA e da consecução de um projeto diplomático de maior envergadura. Para Geisel, o que era bom para os EUA não necessariamente era benéfico ao Brasil. O Brasil rompeu com o apoio concedido ao colonialismo português e reconheceu os governos de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Paralelamente, reforçou os laços com Nigéria e Argélia, sobretudo em função da necessidade de petróleo; estabeleceu relações diplomáticas com a República Popular da China e perseguiu uma parceria política orientada para o fortalecimento das posições brasileiras no âmbito do Terceiro Mundo. O ditador Geisel primou pela crítica à situação de fragilidade desencadeada pela crescente dependência aos fatores exógenos, pelo afastamento do centro hegemônico e pela aproximação da Europa Ocidental e dos países subdesenvolvidos da Ásia, África e América Latina. O presidente, contudo, enfrentou resistência da ala mais conservadora do regime autoritário, refratária à diversificação dos parceiros comerciais, ao abandono do alinhamento automático aos Estados Unidos e à construção de uma relação mais próxima com o Terceiro Mundo. O esforço de implementação de uma nova política externa tornou-se também parte do processo de redemocratização, embora de forma menos intensa (LIMA, 2013; LIMA e MOURA, 1982; PINHEIRO, 1994, 2000).
No governo seguinte, do general João Batista Figueiredo, (1979-1985), a forma de atuação do Brasil foi mantida, contudo, com alguns ajustes. Preservou-se a política de fomento à diversificação de parcerias, que aspirava ao enfrentamento de problemas provenientes do aprofundamento do protecionismo das economias centrais, da segunda crise do petróleo de 1979 e do aumento do serviço da dívida externa. Decerto que a significativa retração do crédito e da liquidez internacionais, bem como a crise da dívida externa do Terceiro Mundo, desencadearam certa paralisia decisória na área de política externa em razão da necessidade de gerir a crise financeira do Estado brasileiro. Todavia, tal cenário não chegou a abalar os princípios orientados para a promoção do desenvolvimento e a busca de autonomia como prioridade histórica da diplomacia brasileira (PINHEIRO, 2004).
Quais os elementos de similitude e como a coalizão ultraliberal-conservadora no poder se diferencia do experimento autoritário instaurado em 1964, no tocante às dimensões endógena e exógena? Em 100 dias de governo, a coalizão de Bolsonaro – constituída por militares e predominantemente influenciada pelo escritor Olavo de Carvalho, como ideólogo da extrema direita e do conservadorismo – é marcada por entraves na articulação política no tocante às relações Executivo/Legislativo. Ao defender a “nova política” – como uma reivindicação de seu eleitorado – Bolsonaro se contrapõe aos partidos políticos e às negociações tradicionais conducentes à concessão de cargos ministeriais e indicação de aliados para postos estratégicos na administração pública, bem como a provisão de emendas parlamentares a fim de construir maioria legislativa no Congresso. Nesse contexto, é importante não limitar o presidencialismo de coalizão aos aspectos relativos à corrupção, ao fisiologismo e à barganha despudorada. É imperativo da governabilidade que o presidente negocie com o Congresso e as lideranças partidárias a formação de maioria parlamentar para viabilizar a implementação da agenda de políticas públicas, modificar as políticas em curso e empreender reformas.
O governo Bolsonaro e seu Ministério da Economia, liderado por Paulo Guedes, extinguiram o Ministério do Trabalho e aprofundam as reformas pró-austeridade do governo parlamentar de Michel Temer. Este, por sua vez, comprimiu os investimentos em saúde/educação (Emenda Constitucional N. 95) durante 20 anos, promoveu a desregulamentação das relações laborais, a terceirização irrestrita e o fim do imposto sindical, asfixiando as organizações sindicais e instituições de pesquisa destinadas a mensurar, por meio de dados estatísticos e evidências empíricas, as condições de vida dos trabalhadores. Tamanha radicalização da ortodoxia neoliberal, orquestrada pela coalizão ultraliberal-conservadora do populista, volta-se prioritariamente para aprovar a reforma da previdência social com base no regime de capitalização individual, reduzindo os benefícios a patamares insignificantes. Além de institucionalizar a desproteção social, desfere um golpe mortal no legado institucional de regulação das relações capital/trabalho e de fiscalização da legislação laboral, ampliando o abismo entre acumulação capitalista e equidade social. São medidas de austeridade que assemelham o governo em curso à política econômica instaurada na primeira fase da ditadura militar.
Trata-se de erradicar o contrato social civilizatório simbolizado pela Constituição Federal de 1988, após duas décadas de modernização autoritária e excludente. Com o fito de reduzir a dívida pública e retomar o crescimento da economia, o populista realizou leilões de infraestrutura com predomínio de estrangeiros, assinou um projeto para viabilizar autonomia ao Banco Central, acelerar as privatizações, vendas de imóveis do governo, corte de despesas com funcionalismo público e regras rígidas para realização de concursos públicos. Segundo pesquisa do Datafolha, Bolsonaro registra a pior avaliação após três meses de governo entre os presidentes eleitos para um primeiro mandato desde a redemocratização de 1985 e 30% dos brasileiros consideram o seu governo ruim ou péssimo.
No tocante à inserção internacional, o governo populista deixa de lado uma duradoura tradição da política externa brasileira e da diplomacia fundamentada na ênfase conferida à dimensão multilateral e ao pragmatismo. O populista, que tanto critica o “viés ideológico” de seus opositores, chancela uma política externa subalterna e ideologicamente afinada aos interesses dos EUA, que não coincidem com os interesses nacionais. Tal modalidade de inserção internacional tem contribuído para o enfraquecimento do Mercosul, rejeitado a cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento e, com o propósito de enterrar a Unasul, criou o Prosul, mobilizando governos de direita e conservadores, como Argentina, Chile, Peru e Colômbia. Há um completo desprezo do populista pelo conhecimento científico, pela relevância dos dados estatísticos e evidências empíricas, que são centrais para subsidiar a formulação e implementação de políticas públicas tanto domésticas como internacionais, tão caras aos interesses nacionais e à população. O Brasil precisa de uma estratégia nacional que aglutine a importância do mercado interno a uma inserção internacional soberana e não subserviente.
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Carlos Eduardo Santos Pinho é Professor/Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (PPGCS/UNISINOS).
Referências Bibliográficas:
AARÃO REIS FILHO, Daniel. A vida política. In: REIS, Daniel Aarão. (Org.), Modernização, ditadura e democracia: 1964-2010. v. 5. Rio de Janeiro: Objetiva/Fundación Mapfre, 2014. (História do Brasil Nação: 1808-2010. Direção: Lilia Moritz Schwarcz).
CAMPOS, Pedro. H. P. Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988. Niterói: UFF, 2014.
JAGUARIBE, Hélio. Brasil: estabilidade social pelo colonial-fascismo? In: FURTADO, Celso (Org.). Brasil: tempos modernos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
LIMA, Maria Regina S. de e MOURA, Gerson. A Trajetória do Pragmatismo – Uma Análise da Política Externa Brasileira, Dados – Revista de Ciências Sociais, vol. 25, n. 3, p. 349-363, 1982.
LIMA, Maria Regina S. de. The Political Economy of Brazilian Foreign Policy: nuclear energy, trade and Itaipu. Brasília: FUNAG, 2013.
LOUREIRO, Felipe Pereira. Empresários, trabalhadores e grupos de interesse: a política econômica nos governos Jânio Quadros e João Goulart, 1961-1964. São Paulo: Unesp, 2017.
PINHEIRO, Letícia. Unidades de Decisão e Processo de Formulação de Política Externa durante o Regime Militar. In: ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon (Org.), Sessenta Anos de Política Externa Brasileira (1930-1990): Prioridades, atores e políticas. vol. 4. São Paulo: Annablume/NUPRI/USP, 2000.
PINHEIRO, Leticia. Foreign policy decision-making under the Geisel government: The president, the military and the foreign ministry. PhD thesis, London School of Economics and Political Science (United Kingdom), 1994. Disponível em: http://etheses.lse.ac.uk/2838/1/U615787.pdf. Acesso em: 12/04/2019.
PINHEIRO, Letícia. Política Externa Brasileira (1889-2002). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Diogo Rocha.
Jair Bolsonaro durante posse em janeiro. Foto: Sérgio Moraes /Reuters