A racionalidade armada da Guardiões do Estado – GDE e a guerra das facções em Fortaleza. Entrevista especial com Jania Aquino

Por: Patricia Fachin, em IHU On-Line

expansão das facções do Sudeste, como o Primeiro Comando da Capital – PCC e o Comando Vermelho – CV, para os estados do Norte e Nordeste, gerou um fenômeno recorrente: o surgimento de novas facções locais e o  acirramento dos conflitos, diz a antropóloga Jania Aquino, que estudou a guerra das facções no estado do Ceará entre 2013 e 2018. “Em Fortaleza, a facção não domina um bairro inteiro, mas rua a rua: uma rua é de uma facção até certo ponto, e dali para frente passa a pertencer a outra facção. O morador, pelo simples fato de residir no lado de um traficante, não podia ir até o outro lado da rua”, relata.

Entre as novas facções locais, a Guardiões do Estado – GDE surgiu como uma dissidência do PCC do Ceará e tem como uma de suas marcas de atuação a “violência ostensiva”. “A GDE, que emerge de modo muito semelhante às gangues que atuam na periferia de Fortaleza desde os anos 80, compreende a guerra como parte da dinâmica. Suas lideranças são vistas como pessoas valentes, jovens são vistos como fortes, como alguém que mata e morre. Essa ideia da guerra incessante é característica da GDE e tinha se generalizado para as outras facções que atuam na cidade de  Fortaleza”, informa.

De acordo com Jania, membros da GDE compreendem a “guerra” a partir de uma perspectiva política. “Uma parte das pessoas com quem conversei se coloca como uma espécie de um movimento anticolonialista em relação ao domínio das facções externas. O próprio nome Guardiões do Estado é no sentido de ser guardião de uma dinâmica criminal local, que estaria ameaçada por causa da atuação das facções do Sudeste, que operaria uma espécie de domínio sobre os jovens cearenses envolvidos com o crime”, diz.

Na entrevista a seguir, concedida via WhastApp à IHU On-Line, a socióloga explica como a racionalidade da GDE impôs uma “socialidade armada às outras facções” que atuam em Fortaleza, dando origem à guerra que se estendeu na cidade entre 2013 e 2018. Ela também expõe as razões que permitiram uma pequena trégua entre as facções em 2016 e o “acordo de pacificação” neste ano.

Jania ainda comenta a relação das facções com a política local. Segundo ela, “o dinheiro do tráfico tem um papel importante no caixa de certos políticos locais”, e as facções atuam na política porque elas “detêm o capital em regiões pobres”.

Jania Perla Diógenes de Aquino é graduada em Ciências Sociais e mestra em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará – UFC, e doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente leciona no Departamento de Ciências Sociais da UFC.


Confira a entrevista.

IHU On-Line — Segundo o Atlas da Violência 2019, o estado com o maior número de homicídios foi Roraima, seguido por Rio Grande do Norte, Acre, Ceará e Goiás. Como você caracteriza o atual quadro de violência nos estados do Norte e Nordeste do país?

Jania Aquino — Cada estado tem a sua especificidade, mas as  estatísticas  dos homicídios costumam envolver algumas variáveis. Há elementos da conflitualidade cotidiana: pessoas que não se entendem e isso acaba tendo um resultado fatal, a morte. Contudo, esses casos costumam ser uma minoria. O que tem elevado os números de homicídios no Brasil é, em parte, decorrência do tráfico de drogas, tanto por execuções de dívidas não quitadas com os traficantes, quanto pelas disputas entre facções criminais.

É possível haver tráfico de drogas — isso já está evidente no país — sem que haja uma letalidade tão alta, como é o caso de São Paulo, em que várias pesquisas têm mostrado que os “Tribunais do Crime”, instituídos pelo Primeiro Comando da Capital – PCC, funcionam resolvendo uma série de situações de conflitos nas periferias, o que incidiu na redução dos números de homicídios. No entanto, as notícias de jornal e as pesquisas nas regiões Norte e Nordeste têm mostrado que este não é o caso dessas regiões, e sim que tem havido confronto entre coletivos criminais relacionados ao tráfico tanto nas prisões como nas periferias e, geralmente, quando há guerra entre as facções, a letalidade é muito alta. Portanto, há indícios muito fortes de que o aumento dos homicídios nas regiões Norte e Nordeste têm, sim, bastante relação com conflitos relacionados ao mercado de drogas nessas regiões.

IHU On-Line — Como tem sido a atuação das facções nas regiões Norte e Nordeste? É possível estimar quantas facções existem hoje nos estados?

Jania Aquino — As duas principais facções do país, Primeiro Comando da Capital e Comando Vermelho – CV, têm se instaurado em quase todos os estados. Um fenômeno recorrente é que a chegada dessas facções fez surgir outras facções locais ou, se não fez exatamente surgir, permitiu que se acirrassem os conflitos com uma facção local já existente que se fortaleceu em contraposição a essas facções do Sudeste.

No Ceará, por exemplo, surgiu a facção Guardiões do Estado – GDE, que foi criada a partir de uma ruptura dentro do PCC. Uma parte das pessoas integrava o PCC, mas não queria mais pagar a taxa mensal exigida pela facção e também achava que o PCC tinha muitas regras e normas que tiravam a liberdade do cotidiano. Assim, fundaram a facção GDE, que posteriormente, em 2017 até o início de 2019, estava em uma guerra acirrada com o Comando Vermelho.

Em quase todos os estados surgiram facções em contraposição à presença das facções do Sudeste, mas existem muitas especificidades referentes a cada estado. Na Paraíba, por exemplo, tem a facção Okaida – OKD e a Estados Unidos. No Rio Grande do Norte tem o Sindicato do Crime – SRN. No Ceará tem a Guardiões do Estado e, ao mesmo tempo, atuam o CV e o PCC. Há também a Família do Norte – FDN, mas ela já está com atuação bem reduzida desde o ano passado. Eu não saberia precisar quantas facções existem, isso só seria possível reunindo as pesquisas por estado, mas as principais são essas. Tem as duas facções principais do Sudeste e sempre há uma ou duas que já existiam ou que passaram a existir no estado em decorrência da chegada do CV e do PCC.

IHU On-Line — Por que PCC e CV migraram para o Norte e Nordeste? Há alguma especificidade nessas regiões que atraiu as facções?

Jania Aquino — Existem muitos elementos. Uma das características dessas regiões que atrai as facções do Sudeste é a questão geográfica, como as orlas do Ceará e do Rio Grande do Norte, pois de alguns estados do  Nordeste se tem uma distância reduzida das rotas em relação a outras regiões para chegar à Europa, ou seja, para a partir do Norte e Nordeste  exportar drogas para os países do Atlântico. Os estados do  Nordeste, como Ceará e Rio Grande do Norte, ficam em posição privilegiada porque já recebem as drogas a partir do Norte do país e, com isso, conseguem exportar diretamente para os mercados dos países do Atlântico. Essa especificidade é um dos fatores que atrai essas facções, mas também há outras causas relacionadas ao tráfico de varejo, ao consumo interno. Mas também houve questões históricas relacionadas às dinâmicas criminais e aos dispositivos de controle do Estado. O que aconteceu na década em curso foi uma intensificação da vigilância das polícias nas fronteiras do Brasil  com o Paraguai e com a Argentina. Nessa tríplice fronteira, a vigilância se tornou acirrada e tanto o PCC quanto o CV passaram a usar outras rotas. Uma rota que tem sido muito utilizada e que se relaciona com o Nordeste é a da região Norte, na qual a droga vem da Colômbia e da Venezuela.

A invasão do Complexo do Alemão em 2010, que foi amplamente noticiada, fez com que o CV e lideranças conhecidas não concentrassem sua atuação apenas no Rio de Janeiro. Com isso, houve uma intensificação em outras periferias urbanas, inclusive em Fortaleza. O PCC teve uma inserção importante em Fortaleza a partir de grandes assaltos que ocorreram na cidade e foi consolidando uma parceria com traficantes locais: assaltos contra a [empresa de segurança privada] Corpvs em 1999, contra a Nordeste Segurança de Valores – NSV em 2000 e contra a agência do Banco Central em Fortaleza em 2005. Por causa desses episódios, alguns integrantes do PCC ficaram presos no Ceará e pessoas do crime local foram batizadas pela facção. A partir disso, intensificou-se a distribuição de drogas do PCC nas periferias de Fortaleza e foi se consolidando um conjunto de relações, de modo que até o ano passado Fortaleza era um importante entreposto para receber a droga da região Norte e exportar para o Atlântico. Assim, a cidade passou a ser um lugar importante na articulação da facção, tanto nas vendas para o tráfico de varejo local — a distribuição para esse mercado —, como na localização privilegiada para realizar as exportações, que ocorrem em embarcações clandestinas e em containers nos principais portos do Ceará — já houve apreensões dessas embarcações e elas também ocorrem em outros portos do Nordeste.

IHU On-Line — Como, em que contexto e por que surgiu a facção Guardiões do Estado – GDE, que você estuda no Ceará? Como a GDE tem imposto sua “socialidade armada” às outras facções atuantes na cidade?

Jania Aquino — A GDE surge, como mencionei anteriormente, dentro de um conflito com o PCC, porque seus membros se negavam a pagar taxas ao PCC e a seguir seu estatuto. Ela se fortaleceu mais recentemente por conta dos ataques que sofreu do CV, a quem declarou guerra e tomou alguns bairros. Uma das marcas da GDE é a violência ostensiva: ataques a prédios públicos e chacinas em que morreram quase duas dezenas de pessoas. Ela acabou construindo a imagem de uma facção muito sanguinária.

Quando entrevistamos seus integrantes, percebemos que há uma conotação política na perspectiva deles de olhar para a guerra. Uma parte das pessoas com as quais conversei se coloca como uma espécie de movimento anticolonialista em relação ao domínio das facções externas. O próprio nome Guardiões do Estado é no sentido de ser guardião de uma dinâmica criminal local, que estaria ameaçada por causa da atuação das facções do Sudeste, que operaria uma espécie de domínio sobre os jovens cearenses envolvidos com o crime.

Quando entrevistamos os interlocutores da GDE, ouvi que uma das coisas opressivas no CV e no PCC são as muitas normas que seus integrantes têm que seguir. A GDE, ao contrário, entende o crime como liberdade, como fazer o que é proibido por lei e, portanto, não faz sentido estar em uma vida amarrada em regras do próprio crime. Então, a GDE tem a marca da rebeldia a normas instituídas, inclusive no crime.

A invasão do Complexo do Alemão em 2010, que foi amplamente noticiada, fez com que o CV e lideranças conhecidas não concentrassem sua atuação apenas no Rio de Janeiro. Com isso, houve uma intensificação em outras periferias urbanas, inclusive em Fortaleza. O PCC teve uma inserção importante em Fortaleza a partir de grandes assaltos que ocorreram na cidade e foi consolidando uma parceria com traficantes locais: assaltos contra a [empresa de segurança privada] Corpvs em 1999, contra a  Nordeste Segurança de Valores – NSV em 2000 e contra a agência do  Banco Central em Fortaleza em 2005. Por causa desses episódios, alguns integrantes do PCC ficaram presos no Ceará e pessoas do crime local foram batizadas pela facção. A partir disso, intensificou-se a distribuição de drogas do PCC nas periferias de Fortaleza e foi se consolidando um conjunto de relações, de modo que até o ano passado Fortaleza era um importante entreposto para receber a droga da região Norte e exportar para o Atlântico. Assim, a cidade passou a ser um lugar importante na articulação da facção, tanto nas vendas para o tráfico de varejo local — a distribuição para esse mercado —, como na localização privilegiada para realizar as exportações, que ocorrem em embarcações clandestinas e em containers nos principais portos do Ceará — já houve apreensões dessas embarcações e elas também ocorrem em outros portos do Nordeste.

IHU On-Line — Como, em que contexto e por que surgiu a facção Guardiões do Estado – GDE, que você estuda no Ceará? Como a GDE tem imposto sua “socialidade armada” às outras facções atuantes na cidade?

Jania Aquino — A GDE surge, como mencionei anteriormente, dentro de um conflito com o PCC, porque seus membros se negavam a pagar taxas ao PCC e a seguir seu estatuto. Ela se fortaleceu mais recentemente por conta dos ataques que sofreu do CV, a quem declarou guerra e tomou alguns bairros. Uma das marcas da GDE é a violência ostensiva: ataques a prédios públicos e chacinas em que morreram quase duas dezenas de pessoas. Ela acabou construindo a imagem de uma facção muito sanguinária.

Quando entrevistamos seus integrantes, percebemos que há uma conotação política na perspectiva deles de olhar para a guerra. Uma parte das pessoas com as quais conversei se coloca como uma espécie de movimento anticolonialista em relação ao domínio das facções externas. O próprio nome Guardiões do Estado é no sentido de ser guardião de uma dinâmica criminal local, que estaria ameaçada por causa da atuação das facções do Sudeste, que operaria uma espécie de domínio sobre os jovens cearenses envolvidos com o crime.

Quando entrevistamos os interlocutores da GDE, ouvi que uma das coisas opressivas no CV e no PCC são as muitas normas que seus integrantes têm que seguir. A GDE, ao contrário, entende o crime como liberdade, como fazer o que é proibido por lei e, portanto, não faz sentido estar em uma vida amarrada em regras do próprio crime. Então, a GDE tem a marca da rebeldia a normas instituídas, inclusive no crime.

Mas no ano de 2016 houve um evento que foi comentado e que teve impacto, sobretudo, na vida cotidiana da periferia, que foi a chamada  pacificação. Para que essa pacificação ocorresse, segundo as investigações policiais e também narrativas dos nossos interlocutores, houve uma atuação muito forte do Alejandro Camacho, que é conhecido por ser irmão do Marcola [Marcos Willians Herbas Camacho]. Ou seja, pessoas importantes das quatro facções atuaram para que houvesse um acordo de paz entre elas, o qual foi comemorado em Fortaleza com um desfile de motos pela cidade, assim como em Sobral, no Ceará, houve várias comemorações que repercutiram na imprensa local. Nesse momento em que as facções se diziam “pacificadas”, houve um impacto muito grande na vida de algumas favelas de Fortaleza em que os moradores sofriam com assaltos. Em vários muros das facções foi pintada a seguinte frase: “É proibido roubar”.

Uma orientanda minha, que fazia um trabalho com adolescentes em conflito com a lei no socioeducativo, disse que simplesmente pararam de chegar adolescentes no socioeducativo porque praticamente não havia jovens roubando nas periferias, na cidade; houve uma eficiência nesse  decreto do tráfico. Infelizmente, para a população da periferia, esse período de pacificação foi muito curto, porque houve, na cidade, o impacto da morte do Jorge Rafaat, que era um fornecedor importante do CV e da  FDN e que teria sido executado pelo PCC na fronteira do Brasil com o  Paraguai. Esse caso teve muita repercussão porque o CV e a  FDN  declararam guerra ao PCC. Isso se deu quando aconteceram aqueles episódios das mortes no início de 2017 nas prisões de Belém e Natal.

As aliadas, CV e FDN, trataram de expandir sua atuação em diversos bairros e favelas e, nessa escalada de obter mais mercados e dominar várias regiões, elas passaram a dominar favelas que eram do GDE. O GDE, que, como expliquei, tinha nascido de uma ruptura com o PCC, fez algumas pontes de diálogo com o PCC durante o processo de pacificação e, no momento em que se viu atacado pela expansão do CV na cidade, fez uma aliança informal com o PCC, a qual nunca foi declarada. Com isso, o  GDE  teve condições de declarar guerra ao CV e à FDN, que tinham declarado guerra ao PCC. Então, por ter algumas das suas “quebradas” invadidas pelo CV e pela FDN, o GDE passou a enfrentar as duas facções, de modo que entre 2017 e início de 2019 ocorreram muitas guerras, enfrentamentos, e um fenômeno que impactou o cotidiano dos moradores: a expulsão de familiares das facções rivais das favelas ocupadas pelo GDE.

IHU On-Line – Naquele mesmo artigo menciona-se que as questões familiares e de gênero são centrais para compreender o funcionamento das guerras entre as facções. Pode explicar qual é a centralidade dessas questões familiares para se entender o funcionamento das guerras entre as facções?

Jania Aquino — As questões familiares e de gênero são mais exploradas pelo meu colega Leonardo, com quem escrevi o artigo que você referiu. Ele investiga bastante o impacto dessa guerra na juventude: há uma alta  letalidade de jovens do sexo masculino, negros, moradores das periferias. Também tem sido recorrente o choro das mães pelos seus filhos mortos nessa guerra, adolescentes viúvas porque seus companheiros morreram nessa guerra, e crianças que têm seus pais mortos.

Analisamos essa guerra das facções pela perspectiva de uma categoria analítica que chamamos de “masculinidade guerreira”, a qual explica a dinâmica das guerras de gangues que ocorriam nos anos 1980 em  Fortaleza, antes da chegada das facções. Desde os anos 80, temos visto uma letalidade impressionante por conta das guerras de gangues, mas com a chegada das facções a letalidade aumentou em razão do aumento da circulação de drogas e do acesso facilitado a armas. Consideramos a categoria gênero importante para a análise, porque ela mostra a guerra de jovens do sexo masculino nas periferias, a qual impacta os vínculos de parentescos. São muitas as casas nas periferias em que permanecem só mulheres, porque os jovens morrem nessas guerras.

IHU On-Line — Qual é a centralidade do WhatsApp na comunicação e na vigilância das facções?

Jania Aquino — O WhatsApp tem um papel muito importante, porque pelo Whats circulam os áudios entre os integrantes das facções, circulam retratos de pessoas executadas, informações de como as pessoas devem se comportar. Por exemplo, para entrar na favela de carro, as pessoas têm que abrir o vidro. Durante um período, o GDE estava atacando pessoas que usavam roupas ou cabelo vermelho ou pessoas que aparecessem em fotos nas redes sociais fazendo o símbolo de um V, que é o símbolo do CV. Muitos jovens que apareceram em fotos fazendo esse símbolo foram executados. Ou seja, circulam via WhatsApp decretos das facções regulando o cotidiano dos moradores e punições para aqueles que descumprem as regras. É pelo Whats que as facções regulam tanto os seus integrantes, quanto os moradores das periferias, assim como punem aqueles que não seguem os regulamentos.

IHU On-Line —  Como as facções atuam junto aos jovens, especialmente nas periferias de Fortaleza?

Jania Aquino — Quando falamos de bairros e favelas em que há pouca  oportunidade para os jovens, as facções exercem um fascínio e a adesão a elas é considerável. Os jovens que não fazem parte das facções têm uma vida muito regulamentada porque são vistos como suspeitos pela polícia, mas também têm que se submeter às normas específicas impostas pelos traficantes locais.

IHU On-Line – A partir das suas pesquisas, qual diria que é a racionalidade das facções?

Jania Aquino — Cada facção tem os seus objetivos, seus estatutos. O PCC é uma facção muito marcada por uma ideia de negociação racional e, em  Fortaleza, tentou instaurar a pacificação para expandir seu mercado e ter mais ganhos. No entanto, a racionalidade das gangues, que está presente na socialidade da GDE, foge, na nossa perspectiva de análise, da racionalidade dos mercados. Tem mais a ver com jovens que veem no crime não uma forma de ascensão social, mas de ter uma reputação na sua comunidade ou na prisão, de ter algum poder, seja de compra, seja de imposição de normas. Nesse sentido, o CV, que embora seja uma grande facção no Rio de Janeiro, em Fortaleza atuou de modo muito parecido ao da GDE, porque foi seu grande oponente na guerra entre 2017 e 2018.

IHU On-Line — Nas suas pesquisas, o universo das facções é apresentado como um universo obcecado com etiquetas, cerimoniais e boas maneiras, que funcionam como um tipo de background cultural para a “questão ética do proceder”. Pode explicar essa ideia?

Jania Aquino — A ideia de proceder é uma categoria que inicialmente foi etnografada no universo criminal paulista. Embora exista a ideia de proceder, o que é considerado “alguém que tem de proceder”, depende muito do contexto de cada periferia ou, no máximo, de cada cidade. A questão da etiqueta se constitui no cotidiano da guerra, por exemplo, se alguém é do CV e fizer o símbolo do “V” com os dedos, isso é uma etiqueta que traz capital simbólico dentro do CV, mas se a pessoa estiver em um bairro que é dominado por outra facção, isso é um desrespeito. Muitas dessas normas foram impostas ao comportamento das mulheres: muitas meninas foram executadas por causa da sua cor de cabelo ou por fazer o “V”. Existem regras que dizem quais são as posturas corretas frente aos moradores e aos colegas do crime. Essas etiquetas são construídas no cotidiano tanto da guerra quanto da relação que um dado traficante tem com outro membro da sua facção, com também com pessoas do seu bairro. É nesse sentido que se fala que há, sim, uma etiqueta, um conjunto de normas do que deve e do que não deve ser feito.

IHU On-Line — Pode explicar como se deu o processo de pacificação entre as facções em Fortaleza?

Jania Aquino — Como disse anteriormente, em 2016 houve a pacificação. Ela aconteceu a partir de um trabalho e de uma política entre integrantes das facções, em que se destaca o “diplomata” Alejandro Camacho. A partir de 2016, as facções passaram a conviver em situação de cessar-fogo e isso teve um grande impacto para os moradores das periferias.

Em Fortaleza, a facção não domina um bairro inteiro, mas rua a rua: uma rua é de uma facção até certo ponto, e dali para frente passa a pertencer a outra facção. O morador, pelo simples fato de residir no lado de um traficante, não podia ir até o outro lado da rua. Isso acabou durante a pacificação: as pessoas da periferia puderam passar a andar em seus bairros, em bairros vizinhos e se sentiam seguras de que não seriam assaltadas, porque os traficantes da região haviam proibido os roubos. Esse foi um período curto, mas que teve um impacto considerável na vida das pessoas e na vida da cidade. No entanto, esse período foi interrompido com a morte do Jorge Rafaat, que teria levado o CV e a FDN a declarar guerra nacional ao PCC. O desfecho dessa guerra em Fortaleza foi a tentativa de expansão dessas facções e a tentativa de minar a presença do PCC. Como disse, esse objetivo não foi alcançado porque o enfrentamento da GDE foi muito importante para que essas facções não conseguissem se expandir tanto.

IHU On-Line — Qual é a relação das facções com o meio político? Em 2018, no Ceará, falou-se que facções financiaram campanhas eleitorais. Que notícias têm sobre isso? Há indícios de que facções interferiram nas eleições do Ceará?

Jania Aquino — A dinâmica das facções nas periferias elegeu, sobretudo, vereadores, que são os representantes políticos locais. Quem se torna político nas periferias, nas regiões pobres e no interior? Geralmente são aqueles comerciantes que têm a renda de um comércio para financiar uma campanha. Agora, aqueles comerciantes de mercadoria ilegal também passaram a ser procurados para financiar campanhas.

Como as facções estavam mais presentes na periferia, fala-se que a GDE e o  CV fizeram esse tipo de financiamento, mas essa relação entre tráfico e política local não se restringe a Fortaleza e ao Nordeste. Essa é uma dinâmica que vemos em grandes cidades do Sudeste, pois o dinheiro do tráfico tem um papel importante no caixa de certos políticos locais. Mas, em uma região pobre, as pessoas que têm algum dinheiro financiam as campanhas. É nesse sentido que gostaria de relativizar e de não sensacionalizar a atuação das facções na política local: elas, de certa forma, estão atuando porque detêm o capital em regiões pobres. O mesmo acontece com pessoas que desenvolvem outras atividades ilegais, como o caso dos garimpos no Norte do país e madeireiros que são fortes na política local.

IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?

Jania Aquino — Essa era a dinâmica que, até o início deste ano, aconteceu no Ceará, quando houve um pronunciamento do governo do estado para que membros de diferentes facções ficassem numa mesma prisão. Desde então, foi estabelecida uma trégua entre as facções para não haver mortes ou execuções por parte das próprias facções nas prisões. Inclusive, circularam “salves” da GDE dizendo aos seus integrantes para respeitar as pessoas das facções inimigas, porque o governo estava querendo que eles se matassem entre si, e que eles não podiam fazer o jogo do Estado, da polícia e da administração carcerária. No geral, isso acabou tendo um impacto nos confrontos sangrentos, que praticamente deixaram de ser registrados durante este ano nas mídias sociais e locais. As disputas por mercados continuam, mas não de uma forma sangrenta.

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