O impacto dos gestos concretos de acolhimento de Francisco para a comunidade LGBT+. Entrevista especial com Cris Serra

Por: Ricardo Machado, em IHU On-Line

 A “imagem gay-friendly” do papa Francisco, construída em contraste com seus dois últimos antecessores, não contempla as declarações do pontífice condenando a teoria de gênero. Apesar desta posição aparentemente antagônica, a mudança de enfoque pastoral de seu pontificado “é inegável”, pontua Cris Serra, pesquisadora do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos – CLAM, coordenadora nacional da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT e ativista de Católicas pelo Direito de Decidir. “Francisco não se limita a defender uma ‘Igreja em saída’, uma Igreja que vá em direção às periferias, uma Igreja de ‘pastores com cheiro de ovelha’. Ele demonstra o que diz com seus atos ao receber em audiência o homem trans espanhol e sua companheira; ao lavar os pés da travesti numa Quinta-feira Santa; ao dizer para o gay chileno vítima de abuso por sacerdotes que Deus o fez assim e o ama como ele é; ao receber o grupo de católicos LGBT ingleses; entre tantas outras iniciativas”, afirma.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-LineCris Serra ressalta que “esses gestos concretos de acolhimento por parte do Papa, por mais que ele afirme e reafirme que não passa de ‘um filho da Igreja’ e que ‘a doutrina da Igreja é uma só e permanece a mesma’, têm um impacto efetivo justamente por entrarem em profunda contradição com toda a atitude moralista, de condenação e exclusão, que foi preponderante nos dois pontificados anteriores”.

A psicóloga também reflete sobre o ativismo em prol da diversidade sexual e de gênero nas comunidades cristãs e salienta os desafios no interior do cristianismo. “Os desafios são muitos; contudo, de longe o principal, hoje, no tocante aos cristianismos em geral e ao catolicismo romano em particular, são os ataques antigênero, a partir da criação da famigerada ‘ideologia de gênero’. Essa expressão, criada para deslegitimar simultaneamente o campo de estudos de gênero, os movimentos LGBTI+ e feminista e as lutas pela garantia e expansão de direitos sexuais e reprodutivos, foi forjada e elaborada inicialmente em ambientes católicos, a partir dos anos 1990, e depois adotada e disseminada também por segmentos de outras igrejas cristãs – bem como por movimentos, grupos e atores que se apresentam como cristãos e/ou se valem de um vocabulário e uma retórica (supostamente) cristãos”. Apesar da postura antigênero, menciona, “são crescentes a demanda e o interesse de religiosas e religiosos ordenados por informações, subsídios e orientação para a realização de um trabalho de acompanhamento pastoral de pessoas LGBTI+ verdadeiramente baseado na escuta, no acolhimento e no respeito em relação a suas experiências de Deus e à prerrogativa de suas consciências”.

Cris Serra é psicóloga, graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, mestre e doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, com pesquisa em gênero e religião. Ela esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU no dia 20-8-2019, apresentando seu livro “Viemos pra comungar: Os grupos de católicos LGBT brasileiros e suas estratégias de permanência na Igreja” (Rio de Janeiro: Metanoia editora, 2019).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De onde vem a ideia de que diversidade sexual e religião são dimensões incompatíveis?

Cris Serra – A oposição entre “sexualidade” e “religião” como dimensões dicotômicas e inconciliáveis é uma característica muito central e peculiar da visão de mundo ocidental moderna. Predomina na modernidade ocidental uma representação da “religião” como um domínio antiquado (quando não retrógrado, ou mesmo obscurantista) e pudico (ou mesmo francamente repressivo). Em contraste, a “sexualidade” corresponderia ao que há de mais expressivo e autêntico em termos da “verdade de si” dos sujeitos. Entretanto, tanto essas duas categorias quanto o antagonismo entre elas são resultado de uma construção cultural que é situada historicamente, como nos lembra o antropólogo Talal Asad. Há que se ter em mente que esse entendimento do que seja o “religioso” tem raízes no Iluminismo, quando se consolidou a atribuição de um caráter “ilusório” à “religião”, entendida como sendo da ordem da “crença” e, portanto, identificada com o domínio da subjetividade. Estabeleceu-se, assim, a inferioridade da “religião” em relação à “ciência” como fonte de conhecimento sobre o mundo “objetivo”.

No caso da diversidade sexual e de gênero, sua suposta incompatibilidade com o que seja o “religioso” é reforçada pela maneira como o constante diálogo entre a religião – especialmente os cristianismos, que nos interessam aqui – e as lutas pela garantia e expansão de direitos daquela parcela da população hoje abrigada sob siglas como LGBTLGBTQILGBTI+ e afins vem sendo invisibilizado tanto quando se conta a história dessas lutas quanto quando se rememora a trajetória recente dos cristianismos. De fato (e a despeito desse apagamento), à medida que se organizava, ao longo do século XX, um ativismo em prol da diversidade sexual e de gênero, e à medida que emergiam e se consolidavam novas identidades, despontaram em diferentes ambientes cristãos iniciativas de atenção pastoral e debates acerca das concepções vigentes sobre a sexualidade em geral, e a diversidade sexual e de gênero em particular. Inaugurou-se, assim, uma interlocução constante, que se deu – e continua se dando – nos mais diversos âmbitos: nas orações e elaborações pessoais e comunitárias dos cristãos e cristãs; nas atividades paroquiais; nas pastorais da família, da juventude e outras; nos seminários e outras esferas de formação de religiosos; nas instituições de ensino cristãs; na academia; em diferentes campos da teologia; e muitos outros.

Trata-se de um diálogo multilateral e multidimensional, no sentido de que não são apenas cristãos refletindo sobre a “diversidade sexual” como algo que lhes é estranho e alheio. Cristãos e cristãs são também pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgênero, queer, intersexo – e acrescente-se aqui quaisquer outras identidades que venham a se constituir e se consolidar socialmente. Cristãos e cristãs são também pais e mães, irmãos e irmãs, filhos, primos, sobrinhos, amigos, amigas, vizinhos, conhecidos de pessoas LGBTQI+. Historicamente, cristãos e cristãs se sentiram e sentem chamados a refletir, de maneira sistemática ou não, sobre identidades, sexualidades, orientações sexuais, experiências de gênero, desde suas próprias vivências religiosas e concepções cristãs – e, do mesmo modo, sobre suas vivências religiosas e concepções também desde suas próprias identidades, sexualidades, orientações sexuais, experiências de gênero. E essas reflexões, em seu conjunto, são muito mais ricas, matizadas e multifacetadas do que a ênfase de alguns na univocidade, na unidirecionalidade e na ortodoxia das doutrinas cristãs, dos discursos eclesiásticos oficiais e da autoridade magisterial podem nos levar a crer. Para além do discurso hegemônico sobre sexualidade e gênero nos cristianismos, há uma multiplicidade de concepções contra-hegemônicas que atravessam desde as atividades pastorais mais “pé no chão” até as elaborações teológicas mais sofisticadas – e se somam aos discursos oficiais para compor uma vasta rede de linhas de força que se cruzam e se tensionam, em permanente negociação e busca de legitimação.

IHU On-Line – Quais são os desafios no mundo contemporâneo no que concerne às relações entre sexualidade e confissões religiosas?

Cris Serra – Os desafios são muitos; contudo, de longe o principal, hoje, no tocante aos cristianismos em geral e ao catolicismo romano em particular, são os ataques antigênero, a partir da criação da famigerada “ideologia de gênero”. Essa expressão, criada para deslegitimar simultaneamente o campo de estudos de gênero, os movimentos LGBTI+ e feminista e as lutas pela garantia e expansão de direitos sexuais e reprodutivos, foi forjada e elaborada inicialmente em ambientes católicos, a partir dos anos 1990, e depois adotada e disseminada também por segmentos de outras igrejas cristãs – bem como por movimentos, grupos e atores que se apresentam como cristãos e/ou se valem de um vocabulário e uma retórica (supostamente) cristãos. Sobretudo na Europa (onde é chamada também de “teoria do gender”) e América Latina, tornou-se uma arma crucial no debate público, servindo de “aglutinante simbólico” para consolidar alianças que agregam os mais diferentes interesses e grupos os mais distintos em torno de agendas que vão diretamente de encontro à perspectiva dos direitos humanos e à lógica democrática. Vem sendo, inclusive, um dos eixos em torno dos quais tem se articulado a escalada do populismo de extrema direita nesses dois continentes.

O sintagma “ideologia de gênero” serve para amalgamar todos os elementos que escapam, questionam ou criticam um determinado ordenamento normativo de gênero e sexualidade. Tal ordenamento baseia-se na essencialização e naturalização do que seja ou signifique ser “homem” e “mulher”; na suposta universalidade e compulsoriedade da cis-heterossexualidade; em uma concepção reificada de família, reduzida única e exclusivamente àquela composta por um casal heterossexual e seus filhos e organizada segundo uma hierarquia que sobrepõe os homens às mulheres e os adultos aos jovens e crianças, nessa ordem. Qualquer alternativa que escape a tais normas, assim estritamente definidas, é inferiorizada – quando não patologizada, ou mesmo criminalizada – e marginalizada.

Em termos retóricos, é uma estratégia muito inteligente. Ao insistir em caracterizar como “ideológico” todo e qualquer alvo de seus ataques, a posição antigênero – ainda mais por ser articulada em linguagem cristã – reforça sua própria sacralidade. Afinal, “ideologia” é sempre o que “o outro” defende. O que “eu” defendo é “ordem natural”, “ordem sagrada”, “ordem divina”, “transcendente”. Evidentemente, trata-se de uma inverdade. A norma cis-heterossexual é tão arbitrária, construída social e culturalmente e situada historicamente – e, portanto, “ideológica” – quanto qualquer outra.

Desse modo, a “ideologia de gênero” vem se configurando como o rótulo ideal sob o qual arregimentar o que quer que se queira definir como aberrante, abjeto ou abominável. Sejam pessoas LGBT ou feministas, ou seus aliados e aliadas, ou a quem quer que interesse a alguém em dado momento atribuir a pecha de “ideologia de gênero”, esta tem o dom de converter pessoas e grupos inteiros em inumanos, justificando e endossando seu extermínio, simbólico ou real. Nesse sentido, a cruzada antigênero em curso vem se configurando como uma nova perseguição a “feiticeiras” e a “hereges”, cuja definição foi atualizada para nossos tempos. E, como toda “caça às bruxas”, deve ser inequivocamente condenada por sua intolerância, virulência e capacidade de destruição.

IHU On-Line – Em especial, de que ordem é o desafio de superar o preconceito comum de que não é possível ser cristão e LGBT ao mesmo tempo? Como as pessoas que se identificam com essas duas dimensões – cristã e LGBT – lidam com a questão da religiosidade na construção das próprias identidades?

Cris Serra – O desafio mais imediato é o da violência. Além da violência psicológica e, não raro, física das tentativas de “exorcismo”, das orações de “cura e libertação”, das “terapias de reversão”, há a violência do estigma, que leva à vergonha, ao medo, à culpa, ao silenciamento e à invisibilização. O fantasma do “pecado” ou o temor de ser uma “abominação” acompanha a pessoa mesmo quando ela já foi expulsa ou se autoexilou de sua comunidade de origem, de sua família, das referências religiosas, dos símbolos sagrados e da experiência de fé em que foi socializada. A pessoa muitas vezes é convencida de que carrega algo tão maligno que se crê indigna do amor de Deus ou, de resto, de qualquer forma de amor. Crendo-se condenada à danação eterna, na tentativa de se salvar, deixa-se submeter – ou se submete espontaneamente – a todo tipo de mutilações, do corpo e da alma, chegando não raro ao suicídio.

Os grupos de católicos LGBT brasileiros trabalham na perspectiva de um segundo desafio, que representa, em parte, uma superação do primeiro: a autonomização moral. Como ultrapassar a concepção eclesiológica que deposita a prerrogativa da verdade última sobre Deus e do sentido da existência humana na autoridade magisterial e encontrar uma posição de maior autonomia pessoal, através do diálogo e do encontro com Deus no sacrário da consciência (Constituição Dogmática Gaudium et Spes, §16) de cada um, de cada uma? Como apropriar-se da autoridade sobre si mesmo, da responsabilidade de enunciar a verdade sobre si, a ponto de superar a atitude apologética e, em vez de pedir permissão para entrar ou permanecer na Igreja, ao contrário, afirmar não só sua presença, mas o direito inalienável de quem simplesmente já está aí e cujo lugar à mesa não será tirado? A inversão promovida por essa mudança de perspectiva é de tal ordem que permite a esses grupos questionar, ao contrário, qual a legitimidade de uma Igreja que se diz seguidora de Cristo mas promove a violência e a exclusão.

IHU On-Line – De que forma se caracterizam os grupos católicos LGBT no Brasil? Quantos existem?

Cris Serra – Os grupos de católicos LGBT no Brasil têm perfis e trajetórias bastante distintos, refletindo uma riqueza e diversidade muito grande de experiências. O primeiro, por exemplo, foi o Diversidade Católica do Rio de Janeiro, que surgiu em 2007 a partir de um pequeno grupo de pessoas que começaram a se reunir para refletir sobre como viver o que chamavam de uma “dupla identidade” – ser católico e ser LGBT. A proposta inicial era criar um site com subsídios para apoiar a possibilidade de conciliar essas duas dimensões; só que, uma vez no ar, o site começou a atrair interessados que entravam em contato perguntando se havia encontros presenciais. As reuniões mensais começaram a partir dessa demanda.

Já o primeiro grupo de São Paulo surgiu por iniciativa do Pe. James Alison, que à época morava aqui no Brasil. O Diversidade Cristã, de Brasília, e o Diversidade Católica de Fortaleza surgiram, ambos, por iniciativa de membros do Diversidade Católica do Rio que se mudaram para essas cidades. Outros grupos surgiram a partir do contato sobretudo com esses coletivos pioneiros. Nesse sentido, a internet em geral e as redes sociais em particular, especialmente o Facebook (e, mais recentemente, aplicativos como o WhatsApp), têm desempenhado um papel muito importante de agregação e formação de comunidade. Graças a elas, pessoas e grupos distantes fisicamente conseguem se encontrar e partilhar experiências e o conhecimento produzido e acumulado através das práticas e especificidades de cada coletivo.

Em 2014, representantes de sete grupos existentes na época – alguns já consolidados, outros ainda em formação – se reuniram no Rio de Janeiro no I Encontro Nacional de Católicos LGBT. Naquela ocasião, foi fundada a Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT e lançado um manifesto, que começava afirmando: “nós, cristãs e cristãos católic@s LGBT reunid@s em nosso I Encontro Nacional, no Rio de Janeiro, somos filhas e filhos de Deus e da Igreja”. Em 2018, aconteceu o II Encontro Nacional de Católicos LGBTI, em São Paulo, com representantes de quinze grupos, de quatro regiões do país. Nesse encontro criou-se uma constituição para a Rede, elegeu-se uma equipe de coordenação para o biênio 2018-2020 e estabeleceram-se metas para esse período, a fim de tornar a Rede mais atuante e efetiva. Pouco mais de um ano depois, neste início de setembro de 2019, o número de grupos reunidos na Rede Nacional já chega a 21: dois no Rio de Janeiro, um em Nova Iguaçu (RJ), dois em São Paulo, um em Campinas (SP), um em Ribeirão Preto (SP), dois em Belo Horizonte, um em Passos (MG), dois em Brasília, um em Curitiba, um em Londrina (PR), um em Maringá (PR), um em Brusque (SC), dois em Fortaleza, um em Iguatu (CE), um em Teresina e um em Mossoró (RN). Uma das tarefas dessa equipe de coordenação é organizar subsídios pastorais para facilitar a formação de novos núcleos, mas alguns grupos, como o Porta da Misericórdia (o segundo grupo de Fortaleza) e o Prisma da Fé (grupo ecumênico de Brasília) vieram se juntar à Rede já consolidados.

Assim, as características dos grupos, como suas origens e formação, são bastante distintas, embora quase todos procurem promover encontros presenciais regulares, em sua maioria mensais, e muitos realizem eventos abertos ao público, ou participem da sua organização junto com outros parceiros. Na maioria dos casos, a partilha de experiências e o acolhimento são partes importantes desses encontros, como também a oração, a busca de desenvolvimento espiritual e, sempre que possível, a celebração eucarística.

Alguns desses coletivos surgiram a partir do interesse de religiosos ordenados ou mesmo de leigos que desejavam realizar um trabalho pastoral junto a pessoas LGBT. O segundo grupo do Rio de Janeiro, o Abraço Cristão, foi criado numa paróquia do bairro do Recreio (Zona Oeste) a partir da movimentação de paroquianos que eram pais de pessoas LGBT. Entretanto, a maioria nasce da iniciativa de católicas e católicos leigos que se identificam como LGBT e procuram criar espaços de partilha, acolhimento e vivência da fé em comunidade. Em sua maioria, os grupos contam com a direção espiritual, acompanhamento pastoral e/ou o apoio de algum padre ou freira, às vezes mais de um.

Diversidade Cristã de Brasília, por exemplo, desde o começo foi acolhido pelos jesuítas daquela cidade, e inclusive realizam eventos abertos e são responsáveis, uma vez ao mês, por uma das missas realizadas no seu centro cultural. De fato, a maior parte dos grupos se reúne em espaços cedidos por religiosos – embora haja experiências peculiares como a do grupo Filho de Davi, de Iguatu (CE), que hoje se reúne no centro pastoral de uma paróquia, mas, durante boa parte de sua história, reuniu-se nas praças e espaços públicos da cidade. Também há experiências de reuniões em casas de membros dos grupos; foi assim que o Filho de Davi, por exemplo, celebrou um tríduo de Santa Maria Madalena.

Grupo de Ação Pastoral da Diversidade – GAPD, o primeiro coletivo de São Paulo, se reúne em um espaço dos franciscanos. O Movimento Pastoral LGBT Marielle Franco – MOPA, que celebrou seu primeiro aniversário no último 14 de julho, nasceu acolhido e integrado à comunidade da paróquia de Nossa Senhora do Carmo, em Itaquera (Zona Leste de São Paulo), com o apoio e incentivo de seu pároco e de uma irmã salesiana.

IHU On-Line – Como se dá a relação destes grupos com a Igreja em nível institucional?

Cris Serra – São crescentes a demanda e o interesse de religiosas e religiosos ordenados por informações, subsídios e orientação para a realização de um trabalho de acompanhamento pastoral de pessoas LGBTI+ verdadeiramente baseado na escuta, no acolhimento e no respeito em relação a suas experiências de Deus e à prerrogativa de suas consciências. Essa tendência se manifestou e acentuou claramente a partir do início do pontificado de Francisco, com suas críticas duras ao clericalismo e ao moralismo e sua insistência no respeito e no diálogo. Esse movimento de abertura e acolhimento, que é observado nos ambientes eclesiais não só no Brasil, vem sendo chamado de “efeito Francisco” e não se restringe aos fiéis LGBTI+.

Por outro lado, mesmo no pontificado de Francisco continua sendo um desafio para os religiosos ordenados, sobretudo nos níveis inferiores da hierarquia, assumir publicamente um trabalho pastoral voltado para pessoas LGBTI+, e mais ainda propor qualquer questionamento da doutrina expressa no Catecismo. Ademais, temos visto o quanto esse mesmo “efeito Francisco” vem tensionando o próprio tecido eclesial católico, como se deduz das críticas agressivas e da feroz oposição ao Papa – que culminaram com a acusação de heresia que lhe foi feita em maio. O pomo da discórdia, não à toa, é justamente o afastamento de Francisco em relação à tradição teológica sobre matrimôniofamília e sexualidade que vinha se impondo como hegemônica nos dois pontificados anteriores. O acirramento das disputas em torno desses temas “morais” – tanto no campo católico romano quanto nos cristianismos em geral, no contexto da cruzada antigênero em curso – e sua mobilização nos debates públicos mais amplos tem tido como consequência um certo fechamento e silenciamento desses debates. O “efeito Francisco” começa a ser, de certo modo, compensado pela desconfiança decorrente do clima de “caça às bruxas” e pelo medo de denúncias e perseguições.

Um exemplo foi a criação, em 2017, de Pastorais da Diversidade em duas dioceses brasileiras, uma delas a de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro – cujo bispo à época, D. Luciano Bergamin, chegou a conceder entrevista a um jornal de grande circulação para divulgar a iniciativa. É ilustrativo o contraste com a situação das duas Pastorais da Diversidade criadas em outra diocese naquele mesmo ano. Significativamente, uma delas chegou a ser noticiada por um grande jornal nos seguintes termos: “iniciativa faz parte da nova postura do papa e da revisão da Igreja sobre configurações da família” – um bom exemplo do “efeito Francisco” visto na prática. Um ano e meio depois, porém, ao ser atacado por um youtuber, que o acusou de estar promovendo “ideologia de gênero” na diocese, o bispo responsável voltou atrás e desautorizou os dois grupos. As duas situações são muito emblemáticas das tensões e paradoxos que se observam hoje no campo eclesial católico romano.

IHU On-Line – Você cita o acolhimento às pessoas LGBT por parte da Igreja como uma das evidências do “efeito Francisco”. Mas, de outro lado, o papa Francisco também critica o que ele chama de “ideologia de gênero”. Como interpreta as manifestações dele sobre essa questão? Quais as tensões entre esse acolhimento e essa recusa à ideia de gênero?

Cris Serra – Desde o início de seu pontificado, a partir do célebre “quem sou eu para julgar?”, foi se construindo a imagem de um papa “gay-friendly”, em contraste com seus dois antecessores imediatos. Porém, o mesmo Francisco eventualmente dava declarações condenando a “teoria do gender” (como é conhecida a “ideologia de gênero” na Itália e na França) e denunciando tentativas de “colonização ideológica” – quer dizer, de imposição de valores “alienígenas” à sociedade. Ao mesmo tempo, como sublinhei – e nunca é demais reiterar –, é inegável o impacto da sua mudança de enfoque pastoral, da sua ênfase no diálogo e no acolhimento e, sobretudo, de seus gestos concretos. Francisco não se limita a defender uma “Igreja em saída”, uma Igreja que vá em direção às periferias, uma Igreja de “pastores com cheiro de ovelha”. Ele demonstra o que diz com seus atos ao receber em audiência o homem trans espanhol e sua companheira; ao lavar os pés da travesti numa Quinta-feira Santa; ao dizer para o gay chileno vítima de abuso por sacerdotes que Deus o fez assim e o ama como ele é; ao receber o grupo de católicos LGBT ingleses; entre tantas outras iniciativas.

Esses gestos concretos de acolhimento por parte do Papa, por mais que ele afirme e reafirme que não passa de “um filho da Igreja” e que “a doutrina da Igreja é uma só e permanece a mesma”, têm um impacto efetivo justamente por entrarem em profunda contradição com toda a atitude moralista, de condenação e exclusão, que foi preponderante nos dois pontificados anteriores. Vão de encontro ao ordenamento de gênero defendido por meio dessa atitude e justificado por uma teologia muito doutrinária – uma teologia normativa, abstrata, distante da vivência cotidiana das pessoas e cada vez menos capaz de ouvir, reconhecer como legítimas e responder às questões concretas da vida concreta dos fiéis. Essa contradição abala as estruturas consolidadas e provoca o recrudescimento das tensões. Nesse sentido, entendo que o chamado “efeito Francisco” vai muito além da figura do papa Francisco em si, de suas ideias pessoais, de suas escolhas como pontífice, de suas estratégias políticas. O “efeito Francisco” diz respeito não só às repercussões do que este Papa diz e faz, e às respostas a ele, mas também a todo o contexto mais amplo que permitiu a própria emergência deste Papa, neste momento.

Por isso, tendo a encarar certos paradoxos de Francisco como indicadores visíveis dos paradoxos da Igreja de Roma como um todo. Ao falar em “Igreja”, me refiro não apenas aos hierarcas, mas à totalidade do campo católico romano – e não podemos perder de vista que esse campo católico romano é permeável, suscetível a trocas e influências mútuas e constantes com as redes sociais em que se insere. Nunca é demais lembrar que todos os documentos da Cúria sobre questões de gênero e sexualidade – desde a encíclica Humanae Vitae (1968), passando pela declaração Persona Humana (1975) e pela carta Homossexualitatis Problema (1986), até chegar ao recente “Homem e mulher os criou”, da Congregação para a Educação Católica (2019) – vieram à luz em resposta e reação a uma multiplicidade de debates, inclusive e sobretudo dentro das fronteiras católicas romanas, em diálogo com discussões mais amplas em curso no mundo. É próprio da finalidade normativa desses documentos que se apresentem como expressões legítimas e excludentes de posições inequívocas e uníssonas da “Igreja”, tratada como um corpo monolítico e homogêneo. Muito ao contrário, porém, eles não só se inserem nesse fluxo de negociações e contradições (inclusive, ou principalmente, internas), como estão longe de representar, como pretendem, uma resolução e um ponto final para elas. Daí minha atenção se concentrar mais nos ambientes eclesiais em geral que na figura do Papa. Ainda que não seja possível, evidentemente, ignorar a importância e o impacto do que fazem as autoridades da Igreja, meu foco é mais em como as diferentes linhas de força tensionam o tecido eclesial e como essas tensões afetam as bases da Igreja.

Outro paradoxo: o mesmo Francisco que faz denúncias relativamente recorrentes da “teoria do gender” tem como oponentes mais ferozes, e não por acaso, os mais ferrenhos críticos do que chamam de “ideologia de gênero” – os ultracatólicos e os atores e grupos de extrema direita, não raro indistinguíveis entre si. Em meio à cruzada moral antigênero protagonizada, em grande medida, por atores e grupos cristãos (e não só hierarcas, mas também leigos); face à pressão dos ultracatólicos; e com o recrudescimento do pânico moral, do clima de “caça às bruxas” e da paranoia daí decorrente – acho possível que Francisco acabe por aderir mais estritamente ao discurso antigênero como estratégia para reafirmar sua ortodoxia. Por outro lado, me parece pouco provável que ele vá moderar seus gestos concretos em direção aos LGBT e à ampliação da participação das mulheres – e, por todos os motivos citados, sua atitude pastoral fala mais alto e tem tanto ou mais impacto que suas palavras. O que constitui, no fim das contas, mais um paradoxo.

IHU On-Line – Você poderia falar um pouco mais sobre seu livro Viemos pra comungar? Do que se trata? Qual o público-alvo?

Cris Serra – O livro foi fruto da minha pesquisa de mestrado, e partiu do meu interesse em investigar as estratégias desenvolvidas pelos grupos de católicos LGBT brasileiros para permanecer na Igreja. É dividido em três partes. Na primeira, discuto como vem se estabelecendo essa oposição entre “religião” e “sexualidade” no debate público no Brasil, e procuro entender e desconstruir esse antagonismo. Na segunda, traço um panorama da Igreja Católica Romana hoje, na tentativa de contemplar sua complexidade e heterogeneidade, fazendo contraponto ao lugar comum de que “a Igreja” é um bloco monolítico, destituído de conflitos e contradições. Na terceira, abordo os católicos LGBT propriamente ditos e mostro como se dá seu processo de “tomar a palavra” e dizer, por si mesmos, quem são – e o impacto político dessa estratégia.

Estamos em um momento da história do Brasil em que vem se desvelando de maneira cada vez mais explícita a truculência contra os mais vulneráveis e desprivilegiados que marca nossa construção como país. São tempos em que cristãos e cristãs abusam da linguagem religiosa para justificar a própria intolerância genocida. Nesse contexto, refletir sobre a experiência daquelas e daqueles que, na materialidade de sua própria existência, põem em xeque as dicotomias consideradas intransponíveis de que falamos aqui pode ser crucial para disputar narrativas tanto sobre religião e cristianismo quanto sobre “gênero”; e para possibilitar uma reapropriação do “religioso” e do “cristianismo” em termos favoráveis à liberdade e à diversidade sexual e de gênero.

 Assista à conferência de Cris Serra no IHU:

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