Bolsonaro prometeu fazer dos indígenas “latifundiários ricos”. Mas quem vai se dar bem são as mineradoras e os banqueiros

O índio não quer ser latifundiário pobre em cima de terras ricas. Especialmente das terras mais ricas do mundo. Jair Bolsonaro, de ascendência italiana, falando em nome de 305 etnias que estavam aqui antes do Brasil existir.

Por Luiz Carlos Azenha, em Viomundo

O principal anúncio do presidente Jair Bolsonaro durante seu discurso à Assembleia Geral das Nações Unidas é de que o governo insistirá em seu projeto de autorizar a mineração em terras indígenas.

Bolsonaro citou especificamente as terras indígenas Raposa Serra do Sol e Ianomâmi, ricas em nióbio, ouro, diamantes e terras-raras.

A China tem quase o monopólio das terras-raras, utilizadas especialmente na produção de materiais que conduzem energia praticamente sem perda, os chamados supercondutores.

O inciso terceiro do artigo 231 da Constituição Federal de 1988 diz:

§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

Porém, Bolsonaro quer dar um balão no Congresso e colocar as empresas para negociar diretamente com os indígenas, com mediação do Executivo.

Assim, como quase aconteceu com a energia elétrica de Itaipu, os amigos do presidente podem fazer bons negócio$. E ele, fazer o PSL crescer em 2020 e reeleger-se em 2022.

No caso de Itaipu, hoje a empresa estatal binacional — ou seja, controlada pelos governos do Brasil e do Paraguai — tem o monopólio da venda da energia para o consumidor.

Mas o governo Bolsonaro, na calada, tentou mudar o acerto.

Tentou permitir que uma empresa privada brasileira comprasse a energia de Itaipu e revendesse no Brasil.

O intermediário do negócio foi o empresário Alexandre Luiz Giordano.

Ele é suplente de senador.

Pertence ao PSL, o mesmo partido de Jair Bolsonaro.

É suplente do Major Olímpio, líder do governo Bolsonaro no Senado.

De acordo com o colunista Elio Gaspari, se o negócio tivesse sido realizado, a energia de Itaipu seria comprada pela empresa por 24 reais o megawatt e vendida por 119 reais o megawatt.

O negócio não saiu porque o acordo vazou e o Congresso do Paraguai, país que teria um grande prejuízo, quase derrubou o presidente Mario Abdo Benítez.

O AUTOR DO GOLPE CONTRA DILMA E O NIÓBIO

Para explorar o ouro, o nióbio, os diamantes e as terras-raras das terras indígenas existem muitas empresas interessadas.

Do Brasil e de todo o mundo.

Por exemplo?

A Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), hoje controlada pela família Moreira Salles (leia-se Banco Itaú), poderia ser um delas.

Ela já explora nióbio, mas em Minas Gerais.

Trinta por cento da empresa é de estrangeiros da Nippon Steel, Baosteel (maior siderúrgica chinesa) e outros, inclusive sul-coreanos.

A CBMM só cresceu tanto por causa da mão amiga do homem que deu o pontapé inicial no golpe contra Dilma Rousseff, em 2016: o senador Aécio Neves, ex-presidente do PSDB, ex-governador de Minas Gerais.

Quando governador, Aécio Neves deu uma tremenda força à CBBM: prorrogou na surdina o arrendamento da lavra de nióbio de Araxá, cidade do interior de Minas Gerais, até primeiro de janeiro de 2033!

A Codemig, Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais, fica com 25% do lucro líquido da CBBM. Pois, então, a taxa de entreguismo de Aécio Neves é de APENAS 75%.

A denúncia foi feita com exclusividade aqui mesmo no Viomundo, pelo jornalista Marco Aurélio Carone.

Não teve grande repercussão.

A grande mídia não gosta de falar mal do banco Itaú.

Mesmo o cheque especial do Viomundo é do banco Itaú!

De qualquer forma, isso ajuda a explicar por que o Aécio Neves está solto e é deputado federal.

Pois bem, embora a esta altura isso seja mera especulação, é provável que a CBMM esteja interessada no nióbio da Amazônia.

“As reformas deixam o Brasil em uma situação tão boa como eu nunca vi em minha carreira”, disse recentemente o presidente do Itaú, Candido Bracher, elogiando o governo Bolsonaro.

Tá bom para ele, né?

Quem mais poderia explorar o ouro na reserva Raposa Serra do Sol ou na terra indígena Ianomâmi?

Bem, na verdade este ouro já vem sendo explorado.

Na terra ianomâmi, com certeza.

Lá e em muitos outros lugares da Amazônia.

Legal ou ilegalmente, o que dá mais ou menos na mesma.

Por que?

Porque os garimpeiros legais assumem compromissos ambientais que não cumprem.

Eles dizem, por exemplo, que vão preservar a cobertura original das covas que abrem para procurar o ouro.

Eles prometem devolver a matéria orgânica ao lugar de origem, depois de lavar os sedimentos em busca do ouro.

Não o fazem.

O jeito mais fácil de juntar as partículas de ouro, depois de coar o sedimento da terra, é misturar tudo com mercúrio e coar de novo.

O mercúrio junta o ouro mas não se mistura com a água. Depois você queima a “junção” do mercúrio com ouro, chamada de amálgama, e fica o ouro verde.

Depois você queima o ouro verde e fica o ouro que vai para o mercado a 200 reais o grama (em alta e subindo…)

Os garimpeiros legais prometem não devolver nenhum mercúrio ao rio, até porque é um insumo caro, ninguém é louco de perder dinheiro.

Mas, não há como garantir, nem há fiscalização, nem há vigilância sanitária, nem há monitoramento das águas.

Por fim, mesmo os garimpeiros legais prometem reflorestar tudinho, depois da mineração.

Nada fazem.

Portanto, quando alguém falar em “garimpo legal” na Amazônia, ouça com um pé atrás.

Há um problema adicional no garimpo dito legal.

Quem fez a lei mais recente diz que pretendia democratizar a riqueza, mas não foi isso que aconteceu.

As lavras regularizadas estão nas mãos de poucos.

É só olhar nos registros oficiais: são poucos patrões com o capital para bancar as máquinas e o combustível e milhares de pessoas trabalhando para garantir três refeições por dia.

ELE ENGANA OS GARIMPEIROS, MAS QUER SABER É DAS MINERADORAS

Bolsonaro se elegeu com o voto maciço dos garimpeiros.

Ele prometeu legalizar todos os garimpos.

Mas, nas Nações Unidas, não discursou para os garimpeiros, aqueles que vivem esfarrapados no meio do mato.

Bolsonaro está disposto a descer a borracha dos agentes da Força Nacional nos garimpeiros, como aliás andou fazendo — faz dias agentes públicos queimaram máquinas do garimpo ilegal.

Isso será feito sempre que o governo quiser demonstrar que está defendendo a Amazônia.

Ações de fachada, para aparecer na TV.

Quando discursou na ONU, Bolsonaro estava falando para os homens da grande mineração.

Tem eleição em 2020 e os filhos do presidente da República, instalados nas presidências do partido em São Paulo e no Rio de Janeiro vão escolher os candidatos do PSL, o partido do presidente, a prefeito.

É preciso dinheiro para fazer campanha espalhando fake news.

Fake news podem ser distribuídas de Richmond, na Virgínia, ou de Budapeste ou de Varsóvia.

Podem ser pagas em dólar ou euro.

Bolsonaro discursou na ONU para os donos do Itáu (CBMM), do Bradesco (Vale), da BHP, da Rio Tinto, da Anglo American — das grandes corporações mineradoras do mundo.

Esses homens movem montanhas de minério e de dinheiro, vivo ou eletrônico, mundo afora.

Crédito ou débito?

São os homens que já convenceram os donos do Grupo Globo — e, portanto, quase todos os jornalistas do Grupo Globo — que a mineração é compatível com a defesa do meio ambiente.

A “mineração verde”, “ecológica”.

Bolsonaro aproveitou seu discurso na ONU para falar mal do indígena caiapó Raoni.

É que Raoni é contra a mineração em terras indígenas.

Ele é candidato ao prêmio Nobel.

Ele denunciou Bolsonaro ao papa Francisco.

Bolsonaro quer tirar o Congresso das negociações. O Congresso e Raoni.

O presidente brasileiro quer colocar de um lado da mesa uma empresa como a CBMM, por exemplo, que pertence ao Banco Itaú.

Do outro lado da mesa, a Ysani Kalapalo, para negociar em nome dos kalapalo.

Ysani é a indígena youtuber que o presidente da República levou até Nova York como “representante” dos povos do Xingu.

O problema é que Ysani nem mora mais no Xingu.

Mas Bolsonaro tem uma solução para tudo, mesmo que imaginária.

No meio de seu discurso, o presidente mencionou uma carta de apoio a Ysani.

Teria a assinatura de indígenas que seriam líderes de 53 etnias diferentes.

Como a carta ainda não foi divulgada pelo Palácio do Planalto, a gente não sabe se tem o nome de um indígena ianomâmi lá. Nem de um wapichana.

Os wapichana vivem na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que Bolsonaro mencionou no discurso.

É possível que os 53 indígenas que assinaram a carta de apoio a Ysani sejam aqueles que um dia serão escolhidos a dedo para negociar os direitos minerários de suas respectivas comunidades.

Vai ficar de um lado o indígena escolhido pelo Bolsonaro.

Do outro o trator gigante dirigido pelo minerador dono do Itaú.

Sem VAR.

Se por acaso houver consenso no Congresso de que o Brasil deve discutir mineração em terras indígenas, cabe aos indígenas opinar sobre absolutamente tudo: onde, como e, principalmente, participar da fiscalização, divisão e destinação dos recursos auferidos.

O Brasil tem muito minério fora de área indígena para explorar.

Na minha singela opinião, trata-se de uma paranoia dos militares que sustentam Bolsonaro, cujo objetivo primário é promover uma ocupação desastrosa no entorno e no interior das reservas (onde vão ficar as máquinas, as vilas, os acampamentos, a infraestrutura?), para evitar uma inexistente invasão estrangeira.

O objetivo secundário “catequizar” os indígenas para o capitalismo, mas na condição de porteiros de suas próprias terras, vendo as máquinas entrar e o ouro, o nióbio, os diamentes e as terras-ricas sairem.

Feito, aliás, já acontece em Carajás, quando aquele imenso trem da Vale sai de Carajás levando minério de ferro e atravessa comunidades miseráveis.

OS MUNDURUKU

Numa recente viagem ao vale do Rio Tapajós, eu e o colega repórter Lumi Zúnica testemunhamos a divergência entre indígenas Munduruku sobre o garimpo no rio Jari.

Deitado numa rede, doente, o cacique de uma aldeia, que já havia queimado muito ouro, respirando o vapor do mercúrio resultante da queima, especulava sobre a origem de sua doença.

Um parente, sentado por perto, dizia que os Munduruku já haviam decidido, por consenso, fechar o rio para a passagem de dragas ou balsas carregando máquinas, além de barcos trazendo combustível e garimpeiros.

Mas eles desistiram do bloqueio, pois o consenso se desfez.

Diferentemente dos ocidentais, os indígenas de uma mesma etnia raramente brigam entre si.

Existe um grande respeito aos mais velhos e às decisões comunitárias.

Porém, as redes sociais aceleraram a diferenciação de objetivos entre as gerações.

Ouvimos um indígena mais jovem, vestido com roupa de marca, defendendo o garimpo como fonte de renda: é preciso “evoluir”, disse ele, e os Munduruku não têm de onde tirar dinheiro.

Além de dar emprego, o garimpo deixa um trocado para o combustível, foi o que testemunhamos numa aldeia que é ponto de passagem de garimpeiros.

A aldeia fica longe da cidade mais próxima, Jacareacanga, e a gasolina para os barcos custa caro, por perto dos 6 reais o litro.

Quem observa de longe diz que alguns Munduruku abandonaram os plantios de subsistência e passaram a depender da comida de supermercado.

Foram fisgados pelo garimpo, que frequentam aqui e ali desde os anos 80.

Como são cerca de 15 mil e vivem espalhados em ampla área do vale do Tapajós, a realidade não é uniforme: depende muito da proximidade entre as aldeias, as cidades e os garimpos.

O diretor da escola de uma aldeia, bem informado sobre a questão do mercúrio, diz que ele mesmo sente sintomas típicos da contaminação: contrações musculares, por exemplo.

Impressionou o repórter: tem o rosto cinza.

O homem sentado ao lado do cacique doente se disse desgostoso com as promessas de riqueza do garimpo, que no passado já o seduziram: os donos das grandes máquinas agora são de São Paulo e do Rio, o ouro que tiram daqui vai todo para fora, o Brasil não ganha nada com isso — é o que ele diz.

Uma investigação da Polícia Federal feita no vale do Tapajós, o mesmo percorrido por nós, demonstrou que ele pode ter razão.

Ela focou numa empresa que faz a maior parte dos seus negócios em São Paulo, a Ourominas.

Descobriu que a empresa emitia notas fiscais frias para encobrir a origem do ouro que comprava de garimpos ilegais, aumentando sua margem de lucro.

Diferentemente da madeira, o Brasil ainda não emite guias de certificação da origem do ouro.

Ou seja, o ouro que você compra para sua aliança de casamento pode ter contaminado peixes na Amazônia.

É uma possibilidade remota, mas existe.

Na internet, a Ourominas se apresenta como “especializada em soluções financeiras no mercado de ouro ativo financeiro para investidores ou para consumo industrial e no mercado de câmbio de moedas estrangeiras para turismo e negócios internacionais”.

APROVEITEM. AS INVESTIGAÇÕES NA AMAZÔNIA CORREM RISCO

A Ourominas compra e vende ouro.

A compra é feita em cidades como Itaituba, no Pará. Em Santarém, a sede da Ourominas foi fechada pela Polícia Federal. Tornou-se uma casa de câmbio.

Em São Paulo, a Ourominas tem onze lojas para vender ouro.

Vende também pela internet.

“Todo ouro comercializado pela Ourominas possui teor de pureza 999 e, portanto, está em conformidade com os mais altos padrões internacionais. Através do site, a Ourominas disponibiliza ouro laminado até 49 gramas, a partir de 50 gramas o cliente pode adquiri-lo no formato de barra”, anuncia.

Mesmo torcendo o nariz para políticas de Bolsonaro, adotando boas práticas e se dizendo defensores do meio ambiente, empresários ganham dinheiro com a exploração da Amazônia hoje e, potencialmente, podem ganhar muito dinheiro com a mineração em terras indígenas.

A não ser que ativistas e consumidores do Brasil e de todo o mundo sejam esclarecidos e comecem a cobrá-los.

Ação direta parece ser o que resta àqueles que acreditam que outro rumo para a Amazônia é possível.

O discurso nas Nações Unidas não deixou dúvidas.

Os inimigos somos os jornalistas, as ONGs, os ambientalistas, os cientistas.

Policiais federais, os procuradores estaduais ou federais, qualquer agente público que se coloque no caminho dos planos de transformar os indígenas em “latifundiários ricos” correm risco — basta lembrar que a embaixada do Brasil retirou apoio de um coral de crianças que cantava músicas de Chico Buarque.

Por isso, é importante disseminar conteúdo como o que segue abaixo.

Talvez seja uma das últimas grandes denúncias oficiais feitas de maneira coerente pelo MPF na Amazônia.

Neste caso, envolvendo a mineração ilegal no vale do rio Tapajós.

De maneira independente do MPF, a partir de suas próprias fontes, Zúnica tratou da contaminação por mercúrio.

De nossa viagem resultaram cinco reportagens, que podem ser baixadas aqui (estão reproduzidas no pé do post).

O mais interessante é que a ação da Polícia Federal que desativou dragas da mineração de ouro na Terra Indígena Munduruku aconteceu em maio de 2019.

Em julho, sobrevoaramos o rio Jari e filmamos uma draga trabalhando normalmente, como se nada tivesse acontecido.

A draga chupa o fundo do rio em busca de fragmentos de ouro.

Ela espalha sedimentos.

Como o mercúrio ocorre naturalmente no solo da Amazônia, aumenta o risco.

Mobilizado, o mercúrio é digerido por bactérias e se transforma no metilmercúrio, que ingressa na cadeia alimentar dos peixes e acaba consumido pelo homem.

Dias depois, subindo o rio das Tropas, encontramos outra draga.

Os tripulantes se diziam a caminho do Bananal, que fica em terra Munduruku.

Ou seja, uma única ação na região não vai resolver o problema.

É uma questão que envolve presença física e monitoramento de longo prazo — policial e de saúde pública.

Existe vontade política para tanto?

O Fantástico, da TV Globo, também fez uma boa reportagem — sobre a questão específica do ouro –, que merece ser assistida e compartilhada.

Fiquem com a denúncia do Ministério Público Federal.

Leiam, sigam os links, baixem, reeditem, traduzam, assistam, compartilhem:

Por negligência, entes públicos têm que indenizar e recuperar danos da mineração ilegal de ouro, defende MPF

MPF acusa União, Agência Nacional de Mineração e Banco Central de serem omissos na tomada de medidas contra ilegalidades da cadeia econômica

Do Ministério Público Federal

O Ministério Público Federal (MPF) pediu à Justiça que, em conjunto com um grupo responsável por fraudes no comércio de ouro no sudoeste do Pará, a União, a Agência Nacional de Mineração (ANM) e o Banco Central (BC) sejam obrigados a recuperar a área degradada e a indenizar povos indígenas e a sociedade em geral.

O grupo de fraudadores é acusado de incentivar a extração ilegal do ouro, e os entes públicos são acusados de terem sido omissos na tomada de medidas para evitá-la e combatê-la.

Os pedidos foram feitos na ação civil pública ajuizada pelo MPF neste segundo semestre de 2019 com base em provas e dados coletados durante três anos pela instituição e pela Polícia Federal (PF).

A investigação inédita esmiuçou o funcionamento de uma das maiores empresas compradoras de ouro na bacia do rio Tapajós, o maior polo da mineração ilegal no Brasil.

O MPF pede à Justiça que todos os réus – os responsáveis por um posto de compra de ouro da empresa Ourominas em Santarém (PA), a Ourominas, União, ANM e BC – sejam obrigados a indenizar a sociedade pelos danos ambientais decorrentes da compra de ouro extraído em garimpos ilegais, e que também sejam obrigados a recuperar as áreas degradadas, a serem indicadas pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Fundação Nacional do Índio (Funai).

O MPF também pediu que todos os réus paguem indenização moral coletiva em valor a ser destinado ao Fundo dos Direitos Difusos e aos povos indígenas cujos territórios sejam alvo da atividade garimpeira ilegal e estejam localizados nas bacias dos rios Tapajós e Jari, com intermédio da Funai, inclusive mediante consulta prévia, livre e informada, nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

No primeiro semestre, o MPF já havia pedido à Justiça Federal, na ação criminal do caso, que os responsáveis pelo posto de compra e a Ourominas sejam condenados a pagar à União os prejuízos provocados.

Só entre 2015 e 2018, o grupo fraudou a compra de 610 quilos de ouro, causando um prejuízo de R$ 70 milhões aos cofres públicos.

E esse prejuízo pode ser muito maior, tendo em vista que o valor foi calculado com base nas indicações das notas fiscais, que são preenchidas apenas pelos criminosos, com indicações bem inferiores ao valor de mercado.

Prejuízos socioambientais – Segundo parecer elaborado por peritos da Secretaria de Perícia, Pesquisa e Análise (Spea) do MPF, documento publicado nesta segunda-feira (16), o valor dos prejuízos socioambientais causados pela extração de cada quilo de ouro pode ser de oito a quinze vezes maior que o valor da cotação de mercado do quilo do minério neste setembro de 2019.

Para cada quilo de ouro extraído ilegalmente, os prejuízos socioambientais podem ser de R$ 1,7 milhão a R$ 3 milhões, dependendo do tempo estimado para recuperação, ainda que parcial, da área degradada pelo garimpo.

O parecer, fundado em ferramentas econômicas de valoração de danos ambientais, analisa o impacto causado pelo garimpo de ouro na floresta amazônica e as perdas decorrentes dessa atividade, que abrangem desde o desmatamento e a inviabilização da exploração sustentável das matas, mediante extração de produtos madeireiros e não madeireiros, até a desestruturação de serviços ecossistêmicos, como regulação climática, oferta de água e manutenção da biodiversidade.

Segundo o parecer, o método de lavra a céu aberto, usado pela maioria das minas de minerais metálicos, provoca impactos consideráveis no nível fisionômico, químico, biológico e humano.

“Desmatamento, destruição da fauna e da flora locais, alterações físico-químicas dos leitos aquáticos e poluição com insumos químicos utilizados na mineração estão entre os principais danos ocasionados”, assinala o MPF no documento.

Só em quantidade de sedimentos lançados nas águas do Tapajós, por exemplo, a mineração ilegal de ouro despeja 7 milhões de toneladas por ano, de acordo com laudo elaborado pela PF e pela Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).

A cada 11 anos, a quantidade de sedimentos despejados é equivalente à barragem da Samarco que rompeu em Mariana (MG) em 2015, destruindo a calha do rio Doce, entre Minas Gerais e Espírito Santo.

O estudo técnico ainda do MPF considera, ainda, o valor existencial intrínseco que pode ser economicamente conferido às espécies não-humanas.

O parecer foi feito a pedido da força-tarefa Amazônia do MPF, que também elaborou um manual de atuação da instituição para o combate à mineração ilegal, documento citado pela primeira vez nas ações ajuizadas a partir das investigações das transações feitas no posto de compra da Ourominas em Santarém.

Danos do mercúrio – Os peritos do MPF deram ênfase especial aos danos gerados pelo uso de mercúrio.

Sobre o tema, o estudo aponta que o metilmercúrio é associado a danos cerebrais, com potencial de perda de inteligência e retardo mental, e cita o caso da comunidade ribeirinha São Luiz do Tapajós, em Itaituba (PA), onde 80% das crianças apresentaram redução de quociente de inteligência (QI) relacionada à contaminação dos recursos naturais pela atividade garimpeira do entorno, segundo pesquisa publicada ainda nos anos 90 pelos pesquisadores Elisabeth Santos, Iracina de Jesus, Edilson Brabo, Edvaldo Loureiro, Artur Mascarenhas, Judith Weirich, Volney Câmara, e David Cleary.

O mercúrio é usado na purificação do ouro. Os resíduos contaminam a água e o ar.

Devolvido à natureza como metilmercúrio, esse elemento causa um dano grave e altamente tóxico graças à acumulação permanente.

O composto afeta o sistema nervoso central, causando problemas de perda de visão, de ordem cognitiva e motora, doença cardíaca e outras deficiências, alertam os pesquisadores da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (Raisg) no relatório “Amazônia Saqueada”.

“As cicatrizes na terra, as águas turvas dos rios são danos óbvios da mineração ilegal. Mas há um mal invisível que contamina a fauna amazônica e os habitantes da região. O mercúrio, de acordo com diferentes estudos, está afetando populações indígenas e locais que vivem perto ou trabalham em áreas de mineração de ouro, bem como aqueles que consomem peixe da Amazônia como parte de sua dieta”, resumem os especialistas da Raisg, que reúne técnicos de seis países da Amazônia.

Eles representam oito organizações da sociedade civil que atualizam constantemente bancos de dados sobre as principais ameaças à região amazônica.

Há estimativas de que até 221 toneladas de mercúrio são liberadas por ano para o meio ambiente pela mineração ilegal no Brasil, indicam estudos preliminares apresentados em 2018 na primeira reunião do Grupo de Trabalho Permanente da Convenção de Minamata sobre Mércurio (GTP-Minamata), realizada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA).

A Convenção de Minamata é um acordo global para controlar o uso do mercúrio, tendo em vista a letalidade da substância para a saúde humana e para o meio ambiente.

Em agosto de 2018 foi publicado decreto presidencial que concluiu a internalização jurídica, pelo Brasil, da Convenção. Com a promulgação do decreto, as determinações da Convenção de Minamata tornaram-se compromissos nacionais oficiais.

Contaminação em indígenas – Neste segundo semestre de 2019, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) chamou atenção para os dados preliminares de uma pesquisa inédita que revela a contaminação por mercúrio em mulheres e crianças Yanomami, das aldeias de Maturacá e Ariabu, localizadas na região de Maturacá, no estado do Amazonas.

De acordo com o estudo que analisou amostras de cabelo de quase 300 indivíduos, 56% dos indígenas apresentaram concentrações de mercúrio acima do limite estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de dois microgramas por grama (ou ppm).

Em 4% da população analisada havia concentrações acima de seis microgramas por grama, considerado o limite para o surgimento de efeitos adversos à saúde.

A partir dessa concentração de mercúrio no cabelo, aumentam as chances de surgirem danos neurológicos graves, destaca o material de divulgação da pesquisa.

Uma criança indígena de apenas três anos chegou a apresentar 13,87 microgramas por grama, cerca de sete vezes mais mercúrio que o limite preconizado pela OMS (2,0 ppm) e o dobro da concentração limite para o surgimento de efeitos adversos à saúde (6,0 ppm).

“No caso de crianças pequenas, de meses a três anos, por exemplo, a exposição ao mercúrio pode estar associada ao consumo de leite materno (que também pode conter mercúrio caso a mãe se alimente de peixes contaminados), mas também pode ser reflexo da exposição intrauterina”, aponta a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Ana Claudia Vasconcellos, especialista em mercúrio.

“A pessoa na vida sabe de alguns nomes de doenças e de outros desconhecidos. Algumas doenças são curáveis e outros não. Mas não se sabe quando vai ser atingido. Melhor seria se proteger com vacina. Mas os desconhecidos atingem alguém, leva-se tempo para se desenvolver a solução, mas que deixa cicatrizes para sempre. Não dá para indicar remédio enquanto você não é atingido pela doença, enquanto você não faz diagnóstico depois que a doença te ataca. Portanto, deverá ser caso a caso, um processo, por isso mesmo deveria nem ser mexido, pois o minério é a fonte de doenças e muitas doenças”, disse um dos indígenas entrevistados pelas pesquisadoras Ana Catarina Zema de Resende e Suliete Gervásio Monteiro no estudo Percepções Indígenas sobre a mineração no Médio Rio Negro, no Amazonas, publicado este mês.

Ponta de um iceberg – “A contaminação mercurial é a ponta de um iceberg de problemas. É um dos sintomas de uma cadeia de alterações e ambientais e desestruturações sociais e culturais”, explica o médico neurocirurgião Erick Jennings, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde.

Os garimpeiros ilegais estão em busca de enriquecimento rápido, a todo custo, e esse modo de viver entra em choque com o modo de vida dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. Para dominar a população local, esses invasores usam dois métodos: o aliciamento ou a intimidação, com o uso de ameaças e violência física, explica Jennings.

A contaminação por mercúrio é um reflexo dessa destruição maior. O peixe, que era a garantia de proteína e saúde, passa a ser sinônimo de doença, e acaba sendo trocado por alimentos enlatados.

“O indígena se vê entre dois venenos: ou o peixe contaminado por mercúrio, ou esses alimentos com altas quantidades de sódio e corantes.”

Na região do Tapajós, já foram detectadas alterações cardiológicas e neurológicas em pessoas que têm alto nível de metilmercúrio, relatou o médico em audiência pública realizada em abril deste ano pela Câmara dos Deputados.

A constatação foi de pesquisa realizada pela professora Heloísa de Moura Meneses, do Instituto de Saúde Coletiva (Isco) da Ufopa.

Jennings destacou que não há cura para esses problemas originados pela contaminação por mercúrio, e que as pesquisas da professora Heloísa de Moura Meneses indicaram que a contaminação tem afetado até mesmo moradores de áreas urbanas distantes da região de garimpo, como os moradores de Santarém, um dos municípios mais populosos do Pará, com cerca de 300 mil habitantes.

Uma das lideranças indígenas presentes na audiência pública da Câmara dos Deputados, Alessandra Korap, da etnia Munduruku, denunciou que as crianças estão reclamando de dores e que as mulheres grávidas estão sofrendo abortos espontâneos, algo que não acontecia nas aldeias.

Segundo o neurocirurgião Erick Jennings, o metilmercúrio consegue atravessar a placenta, podendo causar danos irreversíveis ao feto.

Para pesquisadores do Ministério da Saúde e da Ufopa ouvidos por deputados federais, deve ser classificado como “urgência sanitária” o monitoramento clínico e laboratorial das populações submetidas à contaminação de mercúrio na bacia do Tapajós.

Demais pedidos da ação – Na ação civil pública, o MPF também pediu à Justiça Federal que obrigue a União e a ANM a informatizar o sistema de controle da cadeia econômica do ouro no país, a fiscalizar o uso das licenças simplificadas para garimpos, e a definir quem pode ter acesso a essas licenças.

Também foi pedido que o BC apresente à Justiça e execute plano de implantação de medidas administrativas que garantam um maior controle da custódia do ouro adquirido pelas Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs) e pelos Postos de Compra de Ouro (PCOs).

O MPF pediu, ainda, que a União, a ANM e o BC sejam obrigados a apresentar à Justiça um conjunto de ações de combate à extração e comercialização de ouro ilegal, e relatórios com informações sobre todas as medidas tomadas, nos últimos cinco anos, para combater a comercialização ilegal do minério.

Série – Desde o final de julho o MPF está publicando uma série de notícias para resumir como as várias fragilidades do sistema de controle da cadeia do ouro possibilitam a atuação de organizações criminosas como a denunciada pela instituição e geram prejuízos financeiros, sociais e ambientais de proporções devastadoras.

Também estão sendo descritos os pedidos feitos pelo MPF à Justiça relativos às instituições públicas e às empresas processadas.

Este é o sétimo e último texto da série. Os anteriores podem ser acessados pelos links abaixo.

O conteúdo integral das ações, com todos os detalhes disponíveis, estão nos seguintes links:

Ação cível: processo nº 1003404-44.2019.4.01.3902 – 2ª Vara da Justiça Federal em Santarém (PA)

Íntegra da ação

Consulta processual

Ação criminal: processo nº 0000244-28.2019.4.01.3902 – 2ª Vara da Justiça Federal em Santarém (PA)

Íntegra da ação

Decisão judicial

Consulta processual

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