Na piauí
Jair Bolsonaro sempre teve clareza de que chegou ao poder por uma confluência única de circunstâncias, uma janela no tempo difícil de se repetir. Desde que se elegeu, tem apenas duas preocupações: evitar o impeachment e se reeleger. A tática para atingir suas metas é a mesma: manter o sólido apoio de uma parcela do eleitorado que não é maioria, mas que é grande o suficiente tanto para resistir a um impeachment como para chegar ao segundo turno em 2022.
A partir do terceiro mês de mandato, a parcela que apoia o atual presidente se estabilizou em torno de um terço do eleitorado. Mesmo que o apoio venha a cair para um quarto dos eleitores, ainda assim Bolsonaro tem boas chances de ser bem-sucedido. O sinal vermelho para seu projeto só acenderá caso caia abaixo desse patamar.
A grande ameaça está no fato de que o duplo objetivo – evitar o impeachment e conseguir a reeleição – não é um fim em si mesmo. É apenas um meio. O objetivo real de Bolsonaro é destruir a democracia. Manter-se no poder e vencer a eleição em 2022 são apenas requisitos para alcançar esse objetivo maior.
É claro que esse roteiro pode mudar. Bolsonaro pode tentar um golpe antes de 2022. Mesmo que seja uma tarefa ainda mais difícil neste momento de dispersão e de fragmentação, as forças democráticas têm de se preparar como puderem também para isso. Este texto é otimista. Acredito que, pelo menos por enquanto, as condições para um golpe não estão dadas e que está mantido o roteiro de destruição da democracia pela via eleitoral.
Apesar de todas as indicações, tem muita gente que ainda duvida de que o objetivo de Bolsonaro seja destruir a democracia. Os atos e palavras antidemocráticos do atual presidente não passariam, segundo essas pessoas, de “arroubos”. Outra parcela da sociedade acha que “as instituições democráticas” irão mantê-lo na linha. Porque, afinal, Bolsonaro continua apostando em eleições. E está realizando o que prometeu durante a campanha de 2018.
Mas o que Bolsonaro prometeu em 2018 foi exatamente isso – destruir as instituições democráticas. Na campanha, as “instituições democráticas” eram “o sistema”. E o sistema é “de esquerda”. O liberalismo que ele abraçou é meramente econômico – Bolsonaro tem ojeriza ao liberalismo político. Entre outras razões, é por isso que não passa de conversa fiada dizer que se trata de um governo “liberal na economia e conservador nos costumes”. É um governo liberal na economia e antiliberal em política.
No mundo todo, movimentos antidemocráticos destroem a democracia pela via eleitoral. Para isso, reduzem a democracia à realização de eleições, justamente. Insistem que a democracia não depende de instituições democráticas e de uma cultura política democrática para existir, precisa apenas de eleições e de consultas populares. Pelo contrário, as instituições democráticas e a convivência democrática na vida cotidiana são “ideológicas”, “de esquerda”.
É um liberalismo autoritário, um Frankenstein político. Para que cada pessoa possa fazer o que bem entende em sua vida privada, deve ter sua vida política reduzida a votar. Uma democracia reduzida ao voto não precisa de imprensa livre, Judiciário independente, escola que fomente a tolerância, Legislativo que fiscalize, movimentos sociais de contestação, autocontrole democrático da burocracia estatal.
Quando Eduardo Bolsonaro falou em “um novo AI-5”, a repulsa foi de tal ordem que não se prestou a devida atenção ao que ele disse em seguida: “Se a esquerda radicalizar a esse ponto, vamos precisar dar uma resposta. E essa resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada por plebiscito, como ocorreu na Itália.” É claro que quem define o “ponto” da “radicalização” é quem fala. Especialmente se estiver no poder. O primeiro caminho escolhido por Eduardo Bolsonaro é usar a Presidência para decretar um novo AI-5, assim como o pai falou em invocar a Lei de Segurança Nacional contra Lula.
O outro caminho imaginado por Eduardo Bolsonaro foi o de um “plebiscito”. Quando a democracia é reduzida ao ato de votar, a realização de plebiscitos ou referendos dá a aparência de tornar o processo político “mais democrático”, já que “se vota mais”. E a referência à legislação aprovada na Itália pode ser à Lei de Legítima Defesa, cuja cópia foi entregue em mãos a Eduardo Bolsonaro pelo então homem forte do governo, o líder da extrema direita italiana, Matteo Salvini. Mas pode ser também uma referência a qualquer plebiscito da Itália de Mussolini, sempre lembrado veladamente por Salvini de maneira elogiosa.
Para realizar seu projeto autoritário, Bolsonaro precisa investir em duas frentes simultâneas. Precisa manter as instituições democráticas existentes no mesmo estado de colapso em que já se encontravam desde as manifestações de Junho de 2013 – uma das razões decisivas para explicar sua eleição, aliás. Com isso, ele pretende eliminar entraves ao seu projeto que possam vir da própria burocracia de Estado, pretende eliminar a diversidade no fomento à cultura e os controles institucionais penosamente conquistados ao longo da redemocratização. Ao mesmo tempo, Bolsonaro quer introduzir uma nova cultura institucional, aparelhando o Estado com o máximo de adeptos do autoritarismo que conseguir. É marcante como aposta na formação de quadros jovens em seu governo. É visível a tentativa de construir um dispositivo cultural de extrema direita para chamar de seu. Com isso, tornará o aparelho de Estado o quanto possível uma arma eleitoral em 2020 e em 2022.
Na outra frente, Bolsonaro espera tornar mais orgânica sua base de apoio, convencendo-a paulatinamente de que a saída autoritária é não só a melhor, mas a única possível. Foi o que pretendi dizer há um ano, logo após a eleição, aqui mesmo na piauí (“A revolta conservadora”, edição 147, dezembro de 2018): “Como venceu a eleição com muita mobilização, mas sem nenhuma organização, Bolsonaro tem de convencer seu eleitorado mais fiel de que a revolução conservadora apenas começou. Precisa pedir tempo e paciência para desmontar de uma vez por todas o sistema político. Precisa conseguir que as pessoas de sua rede se engajem e se candidatem na eleição de 2020 para preparar uma renovação geral que prometerá completar apenas em 2022. A tática de identificar tudo que não é o seu governo – ou seja, a ‘esquerda’ – com o ‘sistema político’ o impede de utilizar os mecanismos clássicos do mesmo sistema para atingir esse objetivo.”
No mundo todo, não só no Brasil, eleições estão produzindo impasses. O exemplo mais recente é o da Espanha, um país de regime parlamentarista que realizou quatro eleições nos últimos quatro anos. Por toda a parte, as forças políticas adotaram posições meramente defensivas. Empenham-se em manter as bases eleitorais que têm, sem qualquer pretensão de ampliação ou de solapamento das bases de adversários.
Mas, apesar do travamento e do impasse, o Brasil não é a Espanha. É um país governado por um presidente de extrema direita que sinaliza o tempo todo sua intenção de instaurar um governo autoritário na primeira oportunidade. O atual presidente tem clareza de que propostas autoritárias têm tanto mais chance de vingar quando se apresentam em situações de travamento e de impasse como a nossa.
Mesmo quem considera que a situação é gravíssima age como se estivéssemos diante de um governo normal. Há um descolamento flagrante entre repetir à exaustão que a democracia está em risco e a ausência do sentido de urgência que deveria acompanhar essa constatação. O resultado é uma paralisia da ação que pode colocar tudo a perder.
Bolsonaro é agora presidente e não mais um candidato outsider. Mas, paradoxalmente, continua a ser tratado como candidato e como se ainda outsider fosse. O paradoxo tem sua razão de ser: ele se põe de fato como um presidente outsider; e é de fato candidato. Lançou-se à reeleição com menos de seis meses no cargo. E então a imprensa cobre seu governo como se fosse campanha eleitoral. Mais do que isso, tanto as mídias sociais como as forças políticas lidam com o governo como se estivéssemos em campanha eleitoral.
Continuamos a subestimar o atual presidente e as chances que tem de realizar seu projeto autoritário. Como todo outsider que se preze, Bolsonaro age sempre como se estivesse acuado, encurralado. E acreditamos. Acreditamos que o presidente da República está sempre na defensiva, perdendo. O presidente da República!
Tratamos Bolsonaro como se ele ainda fosse um candidato azarão e não o presidente do país. Como se fosse algo óbvio que seu projeto fracassará. Afinal, “não é possível que um sujeito tosco como esse, que não faz articulação política” possa chegar a 2022 com qualquer chance – é o que ouvimos dia sim, outro também. Mesmo porque – assim continuam os mantras da preguiça mental que tomou conta de nós nos últimos tempos – “a economia não vai decolar” e Bolsonaro pagará o preço.
Sério? Vamos agora acreditar em unicórnios em lugar de fazer política? Vamos colocar em risco a democracia brasileira com base em palpites de botequim?
O efeito dessa preguiça política generalizada é favorável a Bolsonaro em pelo menos três sentidos. Entra no ritmo eleitoral em que ele se sente confortável. Acredita no show de um presidente acuado, nas cordas, sem margem de ação. E, paradoxalmente, trata seu governo como se fosse um governo normal. A prova mais cabal dessa normalidade é que todas as forças políticas continuam a fazer cálculos meramente eleitorais, sem levar em conta que é a própria democracia que está em risco.
A campanha midiática de normalização do governo Bolsonaro como um governo democrático ficou delegada sobretudo ao ministro da Economia, Paulo Guedes. Na semana em que a Folha de S.Paulo foi frontalmente atacada por Bolsonaro, Guedes concedeu uma entrevista ao jornal, em 3 de novembro último. A entrevista pretendeu mandar o recado de que o governo continua contando com gente esclarecida, ciosa das liberdades democráticas, verdadeiramente liberal no sentido político da expressão. A normalidade foi expressa com perfeição já na chamada da entrevista, que reproduziu a seguinte fala de Guedes: “Dá para esperar quatro aninhos de um liberal-democrata após trinta anos de centro-esquerda?” Como se estivéssemos diante de uma simples “alternância no poder”. Como aconteceu em outra ocasião, quando Guedes afirmou que iria “enterrar o modelo econômico social-democrata” dos governos do PSDB e PT.
E, no entanto, ao identificar PSDB e PT como farinha do mesmo saco social-democrata, Guedes ecoa Bolsonaro, que identifica todas as forças políticas que não a sua ao “sistema”, à “esquerda”. O ministro fala como se integrasse um governo liberal sem mais. Ao mesmo tempo, deixou claro na entrevista que seu horizonte não se restringe a apenas “quatro aninhos”. Perguntado sobre a inclusão da Petrobras na lista de empresas a serem privatizadas, Guedes respondeu assim à jornalista Alexa Salomão: “Não agora. Num segundo mandato o presidente vai considerar as grandes [empresas estatais]. Nós, da equipe econômica, queríamos tudo agora.”
Para não deixar dúvidas de que se trata de um governo revolucionário, que vai muito além da adesão incondicional ao projeto reeleitoral dos “oito aninhos”, Paulo Guedes também entrou de cabeça no discurso apocalíptico-salvacionista dos mártires. No anúncio de sua proposta de refundar o Estado e a sociedade no Brasil, em 5 de novembro, usava uma pulseira com os dizeres “Apocalipse 12:11”.
O texto bíblico do versículo 11 do capítulo 12 do livro do Apocalipse (o “livro da revelação”) diz: “Eles, pois, o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra que testemunharam, pois desprezaram a própria vida até a morte.” Trata-se do capítulo bíblico que introduz o tópico das batalhas com o Diabo, que foi jogado para fora do Céu, para a Terra. O capítulo narra nada menos do que o conflito cósmico entre o bem e o mal: o mártir vence, mas morre; e morre para vencer.
A pulseira bíblica indica o que está por trás da versão liberal-tecnocrática do caos como método implantado por Bolsonaro como estilo de governo. Guedes propõe tanta mudança radical ao mesmo tempo que é impossível debater com alguma seriedade. O discurso nacionalista, o religioso e o tecnocrata se uniram para abolir de uma tacada o lento trabalho constituinte e constitucional realizado nos últimos 31 anos pela sociedade e pelos três poderes.
Sem nem entrar no mérito das inúmeras propostas e de suas muitas incoerências e iniquidades, o ministro age como se jogasse no colo do Congresso uma Constituinte específica. Isso, com eleições municipais pela frente, sem qualquer preparação anterior. Trata-se, além disso, de um pacote de medidas que poderia ter sido debatido de maneira escalonada, em uma série coerente.
Vai passar pelo Congresso? De que maneira? Essas são as perguntas que miram o alvo errado. O pacotaço de Guedes vai na contramão do consenso que se formou na elite do capitalismo global. Todas as políticas adotadas para enfrentar a crise econômica mundial iniciada em 2008 salvaram os sistemas financeiros, mas apenas empurraram o real problema com a barriga. O ciclo de revoltas de 2011 a 2013, que mirou essa primeira gambiarra, está sendo agora retomado em diferentes partes do planeta em novo patamar. Duas coisas já estão claras para a elite do capitalismo global: a desigualdade chegou a níveis inadministráveis; estamos efetivamente em estado de emergência ambiental.
O plano Guedes quer introduzir com trinta anos de atraso as mesmas políticas que levaram à crise de 2008. Somada à política de vale-tudo ambiental do governo Bolsonaro e ao estado deplorável das instituições, caminhamos para um acirramento das nossas crises superpostas. É nesse contexto que deve ser compreendida a declaração de Guedes durante entrevista coletiva em Washington, no último dia 25 de novembro: “Sejam responsáveis, pratiquem democracia. Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem, então, se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?” Não há democrata que tenha o direito de permanecer indiferente a um ataque dessa magnitude à democracia. Não há democrata que tenha o direito de continuar a acreditar que Paulo Guedes é um democrata depois de uma declaração como essa.
Do pacotaço de Guedes o que de fato importa para o projeto de poder do atual presidente é culpar “o sistema” pelo resultado “distorcido” que vier do Congresso. Seja lá qual for. A narrativa oficial já está preparada de antemão: Bolsonaro apresentou um projeto de reformulação de cima abaixo do país e não foi ouvido pelo “sistema”. Como queríamos demonstrar.
Com alguma variação, as pesquisas de opinião sobre o presidente mostram que o eleitorado se divide em três terços: aprovação, rejeição, nem aprovação nem rejeição. Também os principais nomes colocados para 2022 se organizam segundo essa divisão: Bolsonaro, Lula, João Doria/Luciano Huck. Não importa aqui se o eleitorado se divide exatamente em três terços. O que importa é que se consolidou na política institucional uma tática de organização que se baseia na divisão em três partes, seja lá o tamanho que tenha cada uma. Para a manutenção dessa lógica, o que não pode acontecer é alguma das partes cair para um patamar abaixo de um quinto do eleitorado.
A tática de cada terço é a mesma: fidelizar o eleitorado que acredita ser seu. Não há empenho de ninguém em minar a base das outras forças ou em estender a sua própria para além de seu terço.Por paradoxal que possa parecer, é confortável para todas as demais forças políticas dar por certo, por exemplo, que a parcela do eleitorado que está com Bolsonaro não pode ser reconquistada para a democracia. A tática de cada um dos três terços reforça a dos demais.
Desapareceu do horizonte a lucidez do discurso de Mano Brown no último comício no Rio de Janeiro do então candidato Fernando Haddad, em 2018: “Não sou pessimista, sou realista. Eu não consigo acreditar que pessoas que me tratavam com tanto carinho, pessoas que me respeitavam, me amavam, que serviam o café de manhã, que lavavam meu carro, que atendiam meu filho no hospital se transformaram em monstros. Eu não posso acreditar nisso. Não posso acreditar que… Essas pessoas não são tão más assim.”
Uma importante figura de referência do terço do meio, por exemplo, considera que não vale a pena perder tempo em solapar a base de apoio de Bolsonaro. Em entrevista a Igor Gielow publicada pela Folha em 24 de outubro, Jorge Bornhausen avaliou que o “centro deverá apoiar Luciano Huck na disputa com o PT para enfrentar Jair Bolsonaro no segundo turno em 2022, deixando João Doria de lado”. Para o ex-governador, ex-ministro e ex-senador, “Huck e um nome do PT irão disputar a vaga no segundo turno contra Bolsonaro (PSL). O presidente manterá seus 25%, 30% de apoio, apesar de tudo”. O político de 82 anos, que já pertenceu à Arena, ao PDS, ao PFL, ao DEM e ao PSD, deixou claro que não quer conversa com o terço à esquerda. Diz ter votado em Bolsonaro no segundo turno de 2018 “por exclusão, porque não voto no PT”. Bornhausen faz do partido de Lula, e não de Bolsonaro, o adversário a ser primeiramente batido em 2022.
Também Lula, já livre, aposta fundo na fidelização de seu terço do eleitorado. Em reunião da Executiva Nacional do PT em Salvador, em 14 de novembro, disse: “Vocês já viram alguém pedir para FHC fazer autocrítica? […] Quem quiser que o PT faça autocrítica, que faça a crítica você. Quem é oposição que critica, ela existe para isso. […] Na dúvida, a gente defende nosso companheiro.” É claro que exigir autocrítica de outra pessoa ou outra instituição é uma contradição em termos. Se é autocrítica, não cabe exigir que outra pessoa a faça. Lula tem razão, quem quer criticar, que critique.
Mas por que mirar em FHC quando é Bolsonaro o presidente? Lula fala de “oposição” como se ainda estivesse na Presidência da República e como se o PSDB ainda tivesse força para liderar a oposição a seu governo. Como se ainda estivéssemos na República do Real, encerrada definitivamente com a eleição de Bolsonaro. Como se o adversário a derrotar fosse o terço “nem nem” – que nem apoia nem rejeita Bolsonaro – e não o próprio Bolsonaro.
Sobretudo, Lula fala como se a tática do PT na eleição de 2018 tivesse sido sem mácula. Como se a total ausência de empenho efetivo em trazer o eleitorado “nem nem” para a candidatura Haddad não tivesse qualquer relação com o resultado. Em seu discurso na abertura do Congresso Nacional do PT em São Paulo, em 22 de novembro, Lula disse: “Não fomos nós os responsáveis, ativos ou omissos, pela eleição de um candidato que tem ojeriza à democracia.” O que mais se ouve na parte mais mobilizada do terço fiel ao PT é que quem não votou em Haddad não passa de canalha sem remissão. Trabalham com a convicção de que repetindo o mesmo erro de 2018 terão um resultado completamente diferente em 2022. Porque o PT já estará preparado para enfrentar as fake news. E porque não haverá a facada que garantiu Bolsonaro no segundo turno em 2018. Então tá.
O que é necessário para que um acordo mínimo entre as forças que não apoiam Bolsonaro possa acontecer? O que é necessário para que uma agenda pública alternativa à lógica de campanha eleitoral mantida por Bolsonaro consiga se impor? Menos do que isso ainda: o que é necessário para dar o primeiro passo para evitar a catástrofe, para que forças políticas adversárias, mas dispostas a manter a democracia, aceitem simplesmente sentar para conversar?
Há uma montanha de desconfianças acumuladas de lado a lado. Mas, se a convergência em torno de um acordo mínimo em defesa da democracia não começar a ser construída desde já, a democracia já perdeu. Porque a construção de um acordo desse tipo tem de elaborar anos de golpes duríssimos, de mágoas e de acusações graves. E isso leva tempo.
É justamente da continuidade dessa desconfiança generalizada no campo democrático que se alimenta Bolsonaro. O atual presidente conta com a divisão no interior do campo democrático, aposta que continuarão dinamitadas todas as pontes entre as forças desse campo. Bolsonaro ainda não dispõe de uma maioria de extrema direita para chamar de sua. Só tem chance de realizar seu projeto autoritário se as forças democráticas não forem capazes de chegar a um acordo para isolá-lo.
O eleitorado “nem nem” é uma realidade. Mas o “centro” de Jorge Bornhausen é uma abstração política. O que se costuma chamar de centro é um estacionamento composto por aquela parte do eleitorado que não quer ser obrigada a escolher previamente se votará mais à esquerda ou mais à direita na próxima eleição. Foi sempre o sonho de parte da direita e de parte da esquerda tornar o centro algo orgânico, uma força política com identidade própria. Funciona como recurso retórico. Mas só.
É enorme a responsabilidade de uma direita comprometida com a democracia. Mesmo que não exclusivamente, ela tem o papel de roubar votos de Bolsonaro, de minar sua base de apoio, de disputar a sério a representação à direita para isolar a extrema direita. Em setembro último, o Datafolha tentou medir o efetivo apoio a Bolsonaro e chegou ao resultado de que o “núcleo duro de entusiastas” do atual presidente é de cerca de 12% da população, sendo algo como 22% os “entusiastas médios” do bolsonarismo. Ou seja, há muito apoio a Bolsonaro a ser roubado se houver um esforço real nessa direção. Parte desse esforço terá de ser feito pela esquerda, mas a responsabilidade da centro-direita é ainda maior. O único que tentou isso até agora foi João Doria – o mesmo que Bornhausen achou por bem tirar do jogo sucessório. Foi atrás de Alexandre Frota e de Joice Hasselmann, por exemplo. Mas Doria continua restrito a São Paulo, não tem capacidade de articulação nacional.
Isolar Bolsonaro requer ainda outro passo: a centro-direita precisa parar de fazer o jogo “me engana que eu gosto”, como se estivesse “usando” o atual governo para passar as mudanças legislativas com que sonha há mais de duas décadas. Quem usa os outros é quem está no poder. E quem está no poder é a extrema direita.
Em suma, Rodrigo Maia não preside o país, preside a Câmara dos Deputados. E seu mandato acaba bem antes do de Bolsonaro, em fevereiro de 2021. Os candidatos a substituí-lo nada têm a ver com o projeto do “novo centro”. É bom começarem a pensar nisso desde já.
Por fim, para que o movimento de ataque à base de apoio de Bolsonaro seja bem-sucedido, é necessário um cessar-fogo de parte a parte entre a centro-direita e Lula. O “centro” precisa parar de tratar Lula e o PT como inimigos preferenciais e passar a considerá-los como adversários com os quais é necessário se entender sobre o que será a democracia brasileira. Porque, como se sabe, na democracia há apenas adversários, e não inimigos.
Por isso mesmo, o único inimigo de fato é Bolsonaro. Porque é inimigo da democracia. Diante da ameaça autoritária representada pelo atual presidente, é politicamente irresponsável agir como se a polarização ainda fosse entre PT e PSDB. Irresponsabilidade, aliás, que é um presente para Bolsonaro.
A centro-esquerda alternativa ao PT desejada por Ciro Gomes e pelo PSB é um espaço ainda mais imaginário do que o “centro” de Bornhausen. Ciro quer abrir um espaço onde espaço não há, quer fazer política entre Lula e Luciano Huck. Para isso, resolveu hostilizar Lula e o PT de maneira permanente. Mais um presente para Bolsonaro.
Se uma candidatura de esquerda chegar ao segundo turno contra Bolsonaro em 2022, é evidente que vai precisar do eleitorado “nem nem” para vencer a eleição. Ainda mais se for um candidato do PT, um partido que registra hoje taxa de rejeição por volta de 43% no eleitorado. A parcela “nem nem” não virá para uma candidatura de esquerda “por gravidade”, por “não ter para onde ir”, como muita gente insiste em fantasiar.
O eleitorado “nem nem” só poderá vir a apoiar um candidato da esquerda contra Bolsonaro se sentir que novas regras de disputa política foram acordadas, se acreditar que um novo solo democrático para o exercício da divergência foi construído entre os adversários de ontem. Não para apagar as diferenças, muito pelo contrário. Como escrevi no texto de dezembro de 2018 aqui na piauí: “Uma concertação democrática como essa teria ao mesmo tempo de defender instituições indefensáveis na sua forma atual e propor uma renovação radical dessas mesmas instituições. Cada força política de oposição teria de ter garantido o espaço de fazer oposição à sua maneira e como bem entender, ao mesmo tempo que se perfilaria ao lado de todas as outras forças de defesa das instituições democráticas e de sua reforma.” O eleitorado “nem nem” só poderá apoiar uma candidatura da esquerda contra Bolsonaro se tiver a segurança de que não será hostilizado, de que sua posição será respeitada. Hostilizar essa parcela do eleitorado por não ter votado em Haddad em 2018 é o mais vistoso dos presentes para Bolsonaro.
Ao sair da cadeia, em 1945, após nove anos de prisão, Luiz Carlos Prestes apoiou o ditador que tinha mandado prendê-lo. Elegeu-se senador e viu seu partido, o PCB, ser posto na clandestinidade dois anos depois. Independentemente da montanha de equívocos de sua posição, o que Prestes fez ao apoiar Getúlio Vargas em 1945 foi política. Mesmo perseguido, mesmo na clandestinidade, aquele PCB -stalinista fez mais pela frágil democracia da Constituição de 1946 do que muito autoproclamado democrata histórico.
Lula e o PT ocupam hoje um lugar histórico ainda mais importante do que ocuparam Prestes e o antigo PCB em 1946. O PT governou por treze dos 22 anos da República do Real, tem a maior bancada na Câmara dos Deputados. É enorme a responsabilidade política de Lula e do PT na sustentação da democracia em seu momento de maior fragilidade desde a redemocratização.
“Sistema” é o lugar que o vencedor da eleição presidencial de 2018 atribuiu a quem perdeu. Quem hoje defende a democracia faz parte do “sistema”. Bolsonaro conseguiu transformar em “sistema” até mesmo o próprio partido pelo qual se elegeu. Essa é a lógica da política atual. Mostra a hegemonia de Bolsonaro no debate público, mesmo sendo apoiado por apenas um terço da população.
Se as forças democráticas entrarem em concertação (explícita ou implícita, não importa) para tentar encontrar uma convergência mínima que permita salvar a democracia, com certeza receberão o carimbo de “sistema”, darão razão à tática antissistema de Bolsonaro. Mas a atual tática meramente defensiva dos grupos não bolsonaristas também não se mostrou até agora capaz de escapar dessa consequência. Pelo contrário, apenas reforçou a posição de Bolsonaro. Porque o impasse dos três terços mantém tudo como está sem apontar para nenhuma saída, sem apontar para nada além da permanência do atual estado de crise da democracia. Se alguma das forças políticas não bolsonaristas vier a vencer o atual presidente em 2022 mantendo sua tática de hoje, apenas adiará a crise. Apenas produzirá novos Bolsonaros.
É por isso também que uma convergência mínima das forças não bolsonaristas não pode se resumir a restaurar o que foi a democracia brasileira. Tem de ir além de seu importante primeiro passo de um cessar-fogo nos bombardeios mútuos e permanentes. Tem de ser uma concertação que aponte para o futuro, para a construção de um novo espaço comum de divergência democrática, para reformas significativas das instituições.
Pode ser pura miragem o encontro entre Lula e Rodrigo Maia anunciado pelo colunista do UOL Tales Faria, em 19 de novembro último. Mas, mesmo sendo uma luz ainda fraca demais para o tamanho do túnel em que nos metemos, seria já um sinal alentador. Vai no mesmo sentido a tese da corrente majoritária do PT apresentada no último congresso nacional do partido, em novembro: “Não há contradição entre consolidar a unidade dos progressistas e, ao mesmo tempo, buscar alianças mais amplas, até com personalidade e setores de centro, em prol do Estado de Direito.” Já o discurso de Lula na abertura do mesmo congresso do PT vai em sentido contrário, segue na mesma linha dos pronunciamentos em Curitiba e no Recife, feitos após a sua libertação.
Os canais de diálogo e de concertação política estão hoje entupidos e enferrujados. Uma verdadeira DR [discussão da relação] do campo democrático vai exigir disposição, paciência e tempo. Um tempo que parece curto para o tanto de conversa que ainda precisa acontecer. Na melhor das hipóteses, o campo democrático tem menos de três anos para encontrar um acordo mínimo, tem menos de três anos para evitar a catástrofe.
Se o projeto autoritário em curso ainda mantiver seu roteiro eleitoral, o imperativo categórico da política brasileira é derrotar Jair Bolsonaro na eleição de 2022. Dar prioridade a qualquer outro objetivo em relação a esse significa arriscar tudo. Significa arriscar a pouca democracia que ainda temos.
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MARCOS NOBRE – É presidente do Cebrap e professor de filosofia da Unicamp. Publicou Imobilismo em Movimento e Como Nasce o Novo.
Destaque: Hieronymus Bosch – detalhe de O Juízo Final