“Que não se repita o que aconteceu na década de 1980”, diz defensor público sobre remoção de quilombolas no MA

Gisele Barbieri, Terra de Direitos

Em meio às incertezas e temores vividos no Brasil em consequência da pandemia da covid-19, o governo brasileiro publicou, no dia 27 de março, uma resolução que prevê a remoção de aproximadamente 800 famílias quilombolas de Alcântara, no Maranhão, para dar continuidade ao seu plano de ampliação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). A expansão das atividades do CLA, assim como a remoção das famílias que ocupam há mais de três séculos esse território ancestral, foi aprovada por meio do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas votado às pressas pelo Congresso em 2019 e sancionado pelo presidente da República neste ano. O que as comunidades não esperavam é que, mais uma vez, esse processo que envolve ações que afetam diretamente a vida das comunidades de Alcântara voltasse ao debate nesse momento de crise epidemiológica, por meio de uma resolução publicada sem qualquer tipo de debate com as comunidades e prevendo ações como a remoção das famílias. 

A Defensoria Pública da União considera inviável qualquer ação nesse contexto de isolamento imposto pela pandemia, e exige do governo mais detalhes sobre as ações contidas na Resolução. Um pedido de informações foi enviado na segunda-feira (30) para o Gabinete Institucional de Segurança, órgão da presidência da república, solicitando o detalhamento das ações previstas na Resolução e a garantia de essas famílias serão consultadas para qualquer medida adotada. A normativa também não traz informações de quando as famílias seriam removidas. 

“Os pedidos são basicamente o detalhamento daquilo que no ato normativo está de forma genérica. Eles falam de um plano de comunicação, de um plano de consulta, de uma equipe institucional que vai atuar. A resolução prevê a consulta prévia às comunidades quilombolas, só que precisamos ter toda a cautela, pelo histórico do governo federal, do que eles estão chamando de consulta às comunidades. Deixamos claro para eles o que nós entendemos por consulta prévia. Encaminhamos o protocolo de consulta elaborado pelas comunidades de Alcântara. Esse é um formato legítimo porque vem das comunidades e obedece ao parâmetro internacional. Que não se repita nada parecido com o que aconteceu na década de 1980. Outra coisa que, realmente, nos preocupa é que haja qualquer tipo de avanço nesse contexto de isolamento social em decorrência da pandemia. Isso, entendemos que é inviável”, enfatiza o defensor público federal, Yuri Costa. 

De acordo com o defensor, o governo federal tem um prazo de dez dias para responder o pedido de informações feito pela Defensoria Pública da União. Caso isso não ocorra, ele aponta a necessidade de adotar procedimentos jurídicos. A Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) emitiu, nesta semana, uma nota de repúdio à decisão do governo de remover as famílias. 


Resistência desde a primeira remoção 

À época da primeira remoção, entre 1980 e 1985, mais de 300 famílias foram expulsas de seus territórios para a instalação da base de Alcântara.  A retirada das famílias ocorreu de forma autoritária, sem qualquer diálogo e consulta às  comunidades. Por essa razão, as comunidades se mobilizam para que esse processo não se repita e que as decisões contidas no Protocolo Comunitário de consulta prévia das comunidades de Alcântara, lançado em 2019, sejam respeitadas. 

“Essa luta vem desde os anos de 1980 e com vários ataques do governo federal durante esse longo período.Então, recebemos essa notícia como mais uma etapa de luta. Aqui temos uma vida muito dura, trabalhamos muito e ganhamos pouco. Temos que correr atrás. Nós começamos a nos reorganizar e vamos levar nosso protocolo de consulta pelas comunidades no território e criar uma conscientização para que o que está ali seja respeitado. Vamos atuar  com resistência e no campo jurídico. O primeiro decreto de desapropriação foi feito em plena ditadura militar, de lá pra cá é só resistência e muito sofrimento para essas comunidades quilombolas”, relata Fátima Diniz Ferreira, integrante do Movimento das Mulheres Trabalhadoras de Alcântara (Momtra). 

Ela lembra também que a remoção afetará outros territórios não compreendidos pelo raio de expansão do Centro de Lançamento.  De acordo com o relatório antropológico  realizado para o processo de titulação do território de Alcântara, existe uma interligação histórica entre todos os povoados da região. “Essa inter-relação torna os territórios muito dependentes uns dos outros – economicamente, culturalmente e pelas relações de parentesco. Essa remoção vai desorganizar a vida de muita gente e vai empobrecer mais ainda essas famílias. Foi o que aconteceu com a primeira remoção na década de 1980”, lembra ela. A ampliação da Base de Alcântara em 12 mil hectares pela área costeira, é outra medida prevista na resolução que reduzirá, ainda mais, as áreas de pesca das comunidades, uma das principais atividades de subsistência. 

Manifestações contrárias às remoções 
Durante a discussão e aprovação do Acordo no Congresso, as comunidades afetadas pela medida fizeram uma intensa campanha de mobilização exigindo do Estado transparência no processo, a não remoção das famílias e que elas fossem consultadas, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário desde 2002. A Convenção da OIT prevê que povos e comunidades tradicionais devem ter participação garantida nos processos decisórios diante de qualquer mudança em seus modos de vida ou territórios. O pedido de informações da Defensoria Pública reforça que as comunidades desconhecem o que está previsto nos Planos de trabalho citados na Resolução. 
A assessora jurídica da Terra de Direitos, a advogada quilombola Vercilene Dias, critica a falta de transparência em todo esse processo e destaca o quanto as diretrizes da Lei de Acesso à Informação (LAI), são negligenciadas para as comunidades quilombolas. A LAI foi sancionada em 2011 e regulamenta o direito constitucional de acesso dos cidadãos às informações públicas.

“A Lei de Acesso à Informação é muito importante, no limite que ela facilita a luta dos quilombolas na defesa dos direitos, principalmente no direito de consulta. Como reivindicar o direito de consulta de alguma coisa que você não tem informação?. A maioria das vezes quando as comunidades descobrem que vai acontecer um empreendimento, ele já está acontecendo.É o caso de Alcântara. Só soubemos depois que o presidente Bolsonaro assinou  Acordo. É importante que eles tenham acesso à LAI até mesmo para eles reivindicarem esse direito de consulta que é legítimo”, ressalta a assessora jurídica.  

“De fato, o acesso à informação seria fundamental para conhecer o Plano de comunicação com a comunidade e os relatórios produzidos pelo Grupo de Trabalho naquilo que pode afetar as comunidades”, reforça a também assessora jurídica da Terra de Direitos, Maira Moreira. 

A nota do Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara (MABE), com o apoio de vários movimentos sociais e organizações, entre elas a Terra de Direitos, foi lançada nessa semana, também repudia a remoção das famílias e classifica a medida como “ arbitrária e totalmente ilegal, uma vez que afronta diversos dispositivos legais de proteção dos direitos das comunidades remanescentes de quilombo, bem como, tratados e convenções internacionais referidos aos direitos destas comunidades”, diz trecho da nota. 

O Ministério Público Federal (MPF) também encaminhou uma recomendação à União pedindo que a remoção não seja realizada nesse momento de pandemia da covid-19. Na Câmara Federal vários projetos foram apresentados nesta semana pedindo a suspensão da medida. Para Danilo Serejo, assessor jurídico das comunidades, integrante do Movimento dos Atingidos pela Base Especial de Alcântara (Mabe) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a remoção das famílias poderia ter sido evitada se a titulação definitiva dos territórios, reivindicação de mais de 40 anos dessas comunidades quilombolas, fosse atendida.  

“É uma medida que causa tensões nesse cenário de extrema vulnerabilidade da humanidade pelo coronavírus. A ameaça de deslocamento é uma realidade que convive com Alcântara desde a década de 1980, e não é segredo pra ninguém que o Estado brasileiro quer ocupar todo o litoral de Alcântara para uso do programa aeroespacial. Sucessivos governos passaram e não romperem com essa lógica, e nem resolveram a situação das comunidades quilombolas titulando o território. Mesmo com diversas decisões favoráveis à titulação, a União não cumpriu [não realizou a titulação das áreas]. Esse fato se justifica por uma lógica que se chama racismo estrutural. Só isso justifica passar por sucessivos governos de esquerda e de direita e ainda estarmos nesse cenário. A ausência de titulação nos coloca numa extrema vulnerabilidade jurídica, não temos uma decisão jurídica para negociar com o Estado brasileiro. Sem a titulação não existe segurança jurídica e não temos autonomia para discutir sobre nossa vida”, denuncia o assessor jurídico do Mabe. 

Denúncia na OIT – Em 2019, as comunidades quilombolas de Alcântara  ingressaram com uma reclamação na Organização Internacional do Trabalho , denunciando as graves violações de direitos do projeto espacial do Estado Brasileiro. O documento apontava as inúmeras violações de direitos cometidas desde a instalação desse projeto. 

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