No Maranhão, maior ameaça vem do governo federal: entenda o caso da BR 135 que afetará quilombolas

Sem consulta prévia e sem diálogo com comunidades, duplicação da BR 135 em plena pandemia pode afetar mais de 10 mil pessoas

Franciele Petry Schramm, em Terra de Direitos

Antônia já tinha saído para o serviço naquela manhã de 2017 quando a irmã ligou avisando que máquinas escavadeiras estavam dentro da comunidade ondem moravam. Não pensou duas vezes: pegou uma moto-táxi e voltou para a comunidade, no Quilombo Cariongo, em Santa Rita (MA). Quando chegou no local, a máquina já estava cavando em um igarapé. Antônia Cariongo sabia o motivo de a máquina estar lá: era o início das obras de duplicação da BR 135, entre a capital do Maranhão, São Luís, até a cidade de Miranda do Norte.

“Desça já daí”, ela ordenou para o operador da máquina. “Me mostre um documento assinado por moradores da comunidade autorizando você a estar aqui dentro. Pegue a sua máquina e saia da nossa comunidade, ou ligue para seu chefe vir até aqui”.  Apenas após os protestos dos quilombolas as obras que ligavam Bacabeira à Miranda do Norte foram paradas, no ano de 2017.

Os protestos não são à toa: todo o projeto de duplicação foi feito sem que houvesse qualquer forma de diálogo entre o Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (DNIT) – o responsável pela obra – com as comunidades. Além disso, nenhum dos mais de 100 quilombos foi previamente consultado sobre o projeto, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Apesar de toda a luta para serem consultadas, passados quase três anos da paralisação, a possibilidade de duplicação da BR 135 volta agora a assombrar as comunidades. No dia 15 de julho, o Tribunal de Contas da União autorizou o início das obras de duplicação de 18 km da rodovia, entre os municípios de Bacabeira a Santa Rita. Mais uma vez, os quilombolas não foram consultados para a ação.  Mais de 10 mil pessoas devem ser impactadas pelo projeto nessa área.

Novo acordo

A briga por informações já é antiga. Os quilombolas buscaram o DNIT para estabelecer algum diálogo. Em 2017 Antônia até tentou ligar para a autarquia para encontrar alguma informação. No telefone, ouviu o responsável responder à secretária de que ele “não devia explicação nenhuma para ninguém a respeito do projeto”.

Antônia sabe que a obra não pode ser feita sem um Estudo de Impacto Ambiental que considere as comunidades quilombola. E de uma coisa ela tem certeza: de que esse estudo ou não existe, ou é irregular. “A gente sabe que não tem estudo [do componente quilombola]. A gente nunca recebeu nos nossos quilombos uma visita que tratasse da duplicação da BR”.

No novo acordo para retomada da duplicação, mais uma vez a falta de diálogo é marca do processo – agora, com o aval da Fundação Cultural Palmares, órgão cujos quilombolas não reconhecem a representatividade em razão do atual governo federal. O problema ainda se agrava pelo fato de que as negociações estarem acontecendo em meio à pandemia de coronavírus.

A possibilidade de retomada das obras é resultado de uma decisão da Justiça Federal dentro de uma ação movida pelo Ministério Público Federal. Em 2019, o MPF ajuizou uma Ação Civil Pública para garantir a continuidade do projeto, na qual reivindicou uma série de medidas que precisariam ser regularmente adotadas pelo DNIT para que houvesse a continuidade das obras, entre elas, que a autarquia de transporte e infraestrutura apresentasse um estudo de componente quilombola identificando todas as comunidades impactadas em um raio de 40 km – como sugere a Portaria Interministerial 60/2015.

Na decisão, o juiz liberou que as obras desse trecho de 18km fossem retomadas, desde que estivessem em acordo com o Termo de Referência para elaboração do Estudo do Componente Quilombo, feito pela Fundação Cultural Palmares, neste ano. O termo, no entanto, abre brecha para que as obras iniciem antes que o estudo esteja finalizado

A decisão judicial também flexibiliza a Consulta Prévia, Livre e Informada –  estão apenas indicadas a realização de audiências públicas, que possivelmente serão realizadas após o início das obras, e formas alternativas de comunicação unilateral entre a autarquia e as comunidades, que não são consideradas formas de consulta pelos quilombolas.

O caso é acompanhado pelo Comitê de Defesa dos Direitos dos Povos Quilombola Santa Rita e Itapecuru-Mirim, que Antônia é uma das coordenadoras, pela Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombola (Conaq).  A Terra de Direitos também atua no caso, prestando assessoria jurídica às comunidades quilombolas Cachoeira, Cariongo, Centro dos Violas, Fé em Deus, Ilha das Pedras, Joaquim Maria, Oiteiro, Pedreiras, Picos e Santana, que fazem parte da Ação. 

“Em nenhum momento houve concordância ou a participação das comunidades nesse processo”, destaca a advogada popular da Terra de Direitos, Vercilene Dias.

Vercilene, que é também assessora jurídica da Conaq, ressalta que a proposta evidencia o tratamento que o Estado dispõe aos quilombolas do país em até mesmo negar o direito de consulta sobre obras que afetam a dinâmica de vida das comunidades. “Isso revela o racismo institucional por parte do Estado, que nega em reconhecer a presença do povo negro quilombola, nega a proteger pessoas vítimas de um sistema que não os enxerga como sujeitos de direitos”.

Tragédia anunciada

Tanto receio em relação às obras na rodovia são resultados dos desafios diários encarados pelas comunidades. No quilombo Cariongo, duas pessoas já morreram atropeladas na BR 135. A Comunidade também se dividiu ao meio. “Os idosos não visitam mais os parentes do outro lado”, conta Antônia. “Muita gente não consegue atravessar para o outro lado. Com a criação de mais duas pistas, os desafios também serão duplicados. “São tragédias anunciadas que a gente tem com essa obra”, lamenta.

Um dos maiores questionamentos dos quilombolas também está relacionado ao objetivo do projeto. “O DNIT fala que é para reduzir o número de acidentes, mas a gente sabe que só tem um propósito: transportar milho e soja”.

E é aí que o ciclo se completa: comunidades estão sofrendo com o avanço da plantação de soja sobre seus territórios em diversas regiões do país, são afetadas pela duplicação das rodovias, e são expulsas de suas terras para a construção de portos, como aconteceu com a Comunidade Cajueiro, em São Luís, que foi despejada para a construção de um terminal portuário privado.

Antônia ressalta que todos os temores, no entanto, não representam oposição à obra. O que os quilombolas reivindicam é transparência e participação no processo, de modo que medidas que possam ser adotadas para causar menos impactos sejam adotadas, com escuta e consideração.  “Nós, do Comitê, não somos contra o projeto, até porque não conhecemos o projeto”, lembra.

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O estudo de Impacto Ambiental e a Consulta Prévia, Livre e Informada devem apontar soluções para ajudar a garantir a travessia das comunidades e garantir a reparação dos danos ambientais e às famílias que moram na beira da rodovia e que preferem ser removidas com o desenvolvimento da obra. “Ninguém pode viver em uma situação de medo constante de que um carro perca o controle e invada sua casa e mate sua família”, reforça Antônia.

No caminho da Mãe D’Água

O ano era 2018 quando o Quilombo Cariongo conseguiu um projeto para a construção de uma Casa de Farinha para a comunidade. Escolhido o local, pedreiros experientes começaram a obra. Ao fim do primeiro dia, viram que a parede estava torta. Não pensaram duas vezes: no dia seguinte derrubaram a parede, e começaram uma nova. Mais uma vez a parede não estava certa. Os pedreiros – que já tinham feito obras a perder a conta – não entenderem o que havia de errado: as paredes foram construídas com todas as orientações técnicas corretas. Resolveram construir a parede pela terceira vez. A surpresa não foi grande quando encontraram a parede torta mais uma vez. Só depois a comunidade entendeu o que estava acontecendo: a casa de farinha estava na passagem da Mãe D’Água.

A Mãe D’água é uma entidade protetora das águas, que vive dentro dos poços e igarapés, muito encontrada nas comunidades quilombolas do Maranhão. Com a forma de uma bonita mulher, ela sai durante a noite, quando é possível ouvir, de dentro de casa, os assovios da Mãe D’água passando. Segundo a lenda, ninguém pode mexer em sua passagem.  

Agora, não é apenas a casa de farinha que está no caminho dela. Uma obra de proporções muito maiores, a duplicação da BR 135 é que estará na passagem da Mãe D’água.

“O impacto [da duplicação] não só é estrutural, mas é também imaterial”, reforça Antônia. O medo é que, além de impactos ambientais e sociais, a obra da BR 135 traga também impactos culturais. “Temos que pensar nos encantados, na Mãe D´água, nas nossas histórias, que para a gente são muito importantes e que não se pode arrancar daí”.

Imagem: Em 2017, máquinas para duplicação da BR 135 chegaram nos quilombos antes que comunidade tivesse sido previamente consultada

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