Esplanada da Morte (XIII) — Ministro da Justiça ignora invasão de terras indígenas na pandemia

“Bom nome” para o STF entre os “terrivelmente evangélicos”, conforme as palavras de Bolsonaro, André Mendonça busca agradar o presidente e se omite na defesa dos direitos dos povos originários, assim como seu antecessor, Sérgio Moro

Por Leonardo Fuhrmann*, em De Olho nos Ruralistas

Pastor da Igreja Presbiteriana Aliança, de Brasília, e apontado como candidato a ser indicado para o Supremo Tribunal Federal (STF) pelo presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, é responsável por tocar uma política de omissão em relação aos direitos indígenas e de inoperância quando o assunto é a pandemia de Covid-19, que já tem mais de 110 mil mortes no Brasil.

A omissão do ministro vai além da situação da Fundação Nacional do Índio (Funai), já mostrada pelo De Olho nos Ruralistas nesta série de reportagens sobre a necropolítica do governo Bolsonaro e a escalada do genocídio durante a pandemia: “Esplanada da Morte (II) — Chefe da Funai foi aliado de invasores de terra indígena no MT”.

O descaso passa pela falta de compromisso com a proteção das terras indígenas, como explica o advogado Luiz Henrique Eloy, o Eloy Terena, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib): “Para proteger a vida dos povos indígenas, necessariamente tem que proteger as terras indígenas. A pandemia escancara essa omissão”.

A Covid-19 tornou a situação mais grave porque, além das ameaças de violência e devastação provocadas pelas invasões, os indígenas têm se mostrado mais vulneráveis do que o restante da população em relação à doença, como mostrou reportagem do Nexo.

Se o novo coronavírus é visto como uma ameaça entre os indígenas, entre os grileiros e garimpeiros ilegais ele é visto como uma oportunidade. Dados do Greenpeace mostram um aumento de 59% no desmatamento dentro de terras indígenas durante a pandemia. O motivo é a invasão dos territórios.

Uma das situações mais graves é a dos Yanomami. “Existem pelo menos 40 mil garimpeiros ilegais lá dentro”, descreve Luiz Henrique Eloy. “É fato público, notório e a Funai não toma nenhuma providência.” O advogado afirma que há registro de solicitações da Funai para que a Força Nacional de Segurança combata as invasões em terras indígenas. Mas esses pedidos foram negados.

No meio da crise, os indígenas não ficaram livres nem da invasão de missionários religiosos, assunto particularmente delicado para um governo que busca ter boas relações com os grupos evangélicos, inclusive os que defendem a conversão dos indígenas ao cristianismo.

MINISTRO JÁ HAVIA DEFENDIDO TESE DE RURALISTAS NA AGU

A publicação da Instrução Normativa número 9 da Funai, publicada em 22 de abril, durante a pandemia também agravou a situação. A instrução trata da emissão de declaração de reconhecimento de limites de terras indígenas em relação a imóveis privados, considerando apenas terras indígenas já homologadas — e não as pendentes de homologação. Na prática, a medida permite a ocupação e até a venda dessas terras.

“É aquela fala do ministro do Meio Ambiente, ‘vamos aproveitar a pandemia para passar a boiada’”, diz Eloy. De acordo com o assessor da Apib, a IN 9 abre caminho para a regularização de áreas griladas. “Nossa maior preocupação é com relação a terras com a presença de indígenas isolados. São terras com restrição de uso, mas não demarcadas. Com essa instrução normativa, estão desprotegidas. É um precedente muito grave”.

Ele informa que o Ministério Público Federal ajuizou ações e que a Justiça já concedeu liminares suspendendo a instrução.

Mendonça já tinha um histórico anti-indígena que vinha desde sua atuação da AGU. Ele era um dos defensores do Marco Temporal, tese que reconhece o direito indígena somente às terras que já eram ocupadas antes da promulgação da Constituição de 1988. O Marco Temporal é uma obsessão da bancada ruralista, outro setor importante na sustentação do governo Bolsonaro.

Assim como seu antecessor, o ex-juiz federal Sergio Moro, o ministro tem visto o cargo como uma ponte que pode leva-lo à Corte. A possibilidade de indicação não surgiu pelo trabalho de Mendonça na Justiça, tampouco na Advocacia-Geral da União, cargo que ocupou antes, mas de um compromisso assumido por Bolsonaro com líderes evangélicos. Em um culto na Câmara, Bolsonaro prometeu indicar um ministro “terrivelmente evangélico” para uma das vagas no STF que serão abertas no tribunal durante seu mandato, por conta da aposentadoria compulsória dos atuais integrantes.

Logo após o culto, Bolsonaro participou de uma sessão solene em homenagem aos 42 anos da Igreja Universal do Reino de Deus. Dias depois, o presidente admitiu que Mendonça era um “bom nome“.

MORO TAMBÉM TEVE ATUAÇÃO ANTI-INDÍGENA

— Para nós, não mudou nada. O ministro Sérgio Moro não deixa nenhuma saudade, é lógico, porque ele não tinha nenhuma afeição aos povos indígenas.

Para Luiz Henrique Eloy, a troca de ministro da Justiça durante a pandemia, o assessor jurídico da Apib considera que a mudança não fez diferença, do ponto de vista da proteção dos povos indígenas: “Desde o início do governo Bolsonaro, o Ministério da Justiça tem sido muito ausente. A primeira medida que o Bolsonaro assina, na sua posse, é mandando a Funai para o Ministério da Agricultura, o que depois foi revertido por decisão do STF”.

A falta de ação já havia criado um aumento das invasões de terras indígenas, que se tornou ainda mais grave por conta da pandemia. Símbolo da Operação Lava Jato e de um discurso forte do governo de suposto combate à corrupção, o ex-juiz em Curitiba jamais associou seu nome à defesa dos povos originários.

No dia 12 de março, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarava a pandemia e o Brasil acordava para a chegada do novo coronavírus ao país, Moro enviou a Força Nacional para a sede da Funai, diante da reunião que 70 líderes indígenas do Xingu e 1120 do sul da Bahia tinham com o presidente do órgão, Marcelo Xavier. Eles queriam audiência com o ministro, mas não conseguiram. E ficaram impressionados com o forte policiamento.

“Ficamos surpresos de ver esse governo truculento que nos recebe com a Força Nacional dentro da Funai”, criticou o cacique Sival Tupinambá, da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, conforme o relato do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

BOLSONARO PROMETEU: ‘NEM UM CENTÍMETRO A MAIS’

Não foi um caso isolado de atitude anti-indígena na gestão Moro. O ex-juiz usou um parecer aprovado pelo então presidente Michel Temer para devolver à Funai dezessete processos de demarcação de terras indígenas que dependiam apenas da decisão do ministro. O parecer de Temer impõe a aplicação administrativa do Marco Temporal.

O atraso nos processos atendia a uma promessa de campanha repetida à exaustão pelo presidente Jair Bolsonaro, que não demarcará “nem mais um centímetro de terra indígena” em todo seu governo. Em um dos processos havia inclusive uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que não havia nenhum impedimento à demarcação. A decisão era para a demarcação da  Terra Indígena Tupinambá de Olivença, na Bahia, onde vivem cerca de 5 mil indígenas.

Moro também nomeou para a diretoria de proteção territorial da Funai, área responsável pelos processos de demarcação de terras, a advogada Silmara Veiga de Souza. Ela havia advogado no ano anterior para fazendeiros que contestavam, em processo administrativo, a identificação e delimitação da Terra Indígena Ka’aguy Hovy, no município de Iguape, litoral sul de São Paulo.

Além de colocar dentro da Funai pessoas com histórico anti-indígena, a gestão Moro afastou de seu cargos quem tinha uma trajetória de defesa dos povos originários. Um exemplo emblemático foi a exoneração do caiapó Patxon Metuktire. Ele afirmou ter sido demitido por ser neto do cacique Raoni, conhecido por suas campanhas internacionais em defesa da Amazônia, e um de seus auxiliares mais próximos.

Raoni tinha sido um dos principais signatários de um manifesto contra as propostas do governo de liberar a mineração, o agronegócio e o arrendamento das terras em territórios indígenas.  “O atual presidente da República está ameaçando os nossos direitos, a nossa saúde, o nosso território”, afirmava o documento, lançado antes da pandemia.

No ano anterior, Bolsonaro já havia usado a abertura da 74ª Assembleia Geral das Organizações das Nações Unidas (ONU) para atacar Raoni e seu legado. “Muitas vezes alguns desses líderes, como o Cacique Raoni, são usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia”, afirmou.

A saída de Moro foi um dos momentos mais tensos do Ministério da Justiça, quando a pandemia ainda começava seu avanço no Brasil. Em 24 de abril, ele pediu demissão, acusando Bolsonaro de interferir na Polícia Federal. O fato jogou luz sobre uma reunião ministerial ocorrida na antevéspera, quando o presidente e integrantes do primeiro escalão haviam expressado suas convicções sem meias palavras.

Do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ouviu-se que a pandemia monopolizava a atenção da imprensa e, por isso mesmo, era hora de “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”. Do então ministro da Educação, Abraham Weintraub, as palavras de ódio não se restringiram aos ministros do STF, que ele definiu como “filhos da puta”: “Odeio o termo povos indígenas, odeio esse termo”.

Moro, presente à reunião, escutou o presidente da República reclamar de dificuldades para indicar nomes na estrutura de segurança − o Ministério da Justiça é responsável, entre outras, pela Polícia Federal. “Não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final”, declarou Bolsonaro. Dois dias depois, Moro foi substituído por André Mendonça, então ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU).

Como titular da Justiça, Mendonça tem chamado atenção por defender bolsonaristas e o próprio presidente da República — papel que compete ao advogado-geral da União.

MINISTRO VIRA ADVOGADO DO BOLSONARISMO

Mendonça apresentou um habeas corpus, no Supremo, para trancar o inquérito que investiga as declarações de Weintraub e de outros participantes na reunião ministerial. “A medida visa garantir liberdade de expressão dos cidadãos”, escreveu o ministro no Twitter, em 28 de maio. E acrescentou, em defesa dos colegas: “Vivemos em um Estado Democrático de Direito. É democrático porque todo o poder emana do povo. E a este povo é garantido o inalienável direito de criticar seus representantes e instituições de quaisquer dos poderes.”

Menos de um mês depois, o ministro da Justiça pediu a abertura de inquérito à Polícia Federal e à Procuradoria-Geral da República, com base na Lei de Segurança Nacional, para investigar a publicação de uma charge crítica a Bolsonaro, reproduzida pelo blog do jornalista Ricardo Noblat no Twitter. Na charge, o presidente é associado ao nazismo, por meio de uma suástica. “A democracia pressupõe o respeito às suas instituições democráticas”, tuitou Mendonça.

Em 07 de julho, Mendonça anunciou outro pedido de abertura de inquérito, também com base na Lei de Segurança Nacional. Dessa vez, para investigar artigo do jornalista Hélio Schwartsman, da Folha, intitulado “Por que torço para que Bolsonaro morra”. O ministro escreveu que entre os princípios básicos do Estado de Direito há direitos fundamentais, mas “não há direitos fundamentais absolutos”. E que as liberdades de expressão e imprensa são direitos fundamentais, mas “tais direitos são limitados pela lei”.

O mês de julho terminou com mais uma ação dentro do Ministério da Justiça de alinhamento às tendências menos democráticas do bolsonarismo. Um dossiê da Secretaria de Operações Integradas (Siopi) mostrou o monitoramento de um grupo de 579 servidores federais e estaduais de segurança identificados como integrantes do “movimento antifascismo” e três professores universitários: Paulo Sérgio Pinheiro, ex-secretário nacional de direitos humanos no governo de FHC e ex-integrante da Comissão da Verdade; Luiz Eduardo Soares, secretário nacional de Segurança Pública no primeiro governo Lula e co-autor do livro “Elite da Tropa”; e Ricardo Balestreri, ex-presidente da Anistia Internacional no Brasil.

Mendonça se recusou a entregar o documento produzido por sua pasta ao STF, mas acabou entregando-o para a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso.

PARA GILMAR MENDES, ‘PILOTO FUGIU’

Se tem sido atuante em defesa do presidente, o mesmo não se pode dizer em relação à atuação na proteção à população atingida por um estado considerado pelo próprio governo como de calamidade pública. A atuação do Ministério da Justiça e Segurança Pública em meio à pandemia de Covid-19 tem sido duramente criticada. Em 07 de abril, ainda na gestão de Moro, o ministro Gilmar Mendes, do STF, afirmou que o então titular da pasta era um “ilustre ausente”.

Em entrevista ao canal MyNews, no YouTube, Mendes declarou: “Se há um órgão faltante nesse debate, é o Ministério da Justiça, que deveria ser, talvez, a grande instituição jurídica, neste momento, pacificando conflitos entre o presidente e o governador, dizendo que a matéria, esta, é da competência da União e não do estado ou coisa do tipo. E aqui o piloto fugiu”.

Acionado pelo PDT, o Supremo acabou reconhecendo a “competência concorrente” de estados e municípios para criar políticas de combate à pandemia, como o isolamento social, alvo de críticas de Bolsonaro. Na mesma entrevista, Mendes valeu-se de uma metáfora futebolística para ilustrar a falta de foco e o esvaziamento do Ministério da Justiça: “Estamos disputando a Champions League e o sujeito está com tema da terceira divisão”.

Avaliação semelhante é feita pelo procurador da República aposentado Eugênio Aragão, que foi ministro da Justiça ao fim do governo Dilma Rousseff, entre março e maio de 2016: “A atuação é zero. O Ministério da Justiça está muito mais focado hoje em fazer a defesa do presidente da República do que em cuidar dos assuntos do cotidiano administrativo”.

Na mesma linha, o ex-secretário-executivo da pasta Marivaldo Pereira é taxativo: “O Ministério da Justiça tem competências complexas e que estão abandonadas durante a pandemia. Uma delas, a questão indígena. O governo faz um discurso que estimula a ocupação de terras indígenas e tem um ministério omisso”. Ele chegou a ocupar interinamente o cargo de ministro, na gestão de José Eduardo Cardozo, também no governo Dilma.

Marivaldo, que atualmente assessora o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP), lamenta o que considera “acanhamento” e “redução da pasta”: “Na gestão do ex-ministro Cardozo, o Ministério da Justiça era central na articulação com o Supremo e com os estados e na implementação das grandes políticas públicas”, diz. “Hoje está focado na defesa do presidente ou no sentido de instaurar inquérito contra quem ofende ou discorda do presidente. É ausente e grande parte das pessoas nem sequer sabe quem é o ministro”.

SUPREMO TEVE DE INTERVIR NA PROTEÇÃO A INDÍGENAS

As ações e omissões da política indigenista do atual governo em meio à pandemia levaram a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, juntamente com seis partidos (PSB, PSOL, PCdoB, Rede, PT, PDT), a ajuizar uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no Supremo. Na ADPF 709, a Apib e os partidos afirmam que “está em curso um genocídio”.

Eles pediram ao STF que obrigue o governo a instalar barreiras sanitárias para proteger povos indígenas isolados ou de recente contato, a retirar invasores de terras indígenas e a garantir o atendimento, pelo Subsistema de Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (SUS), de indígenas não aldeados (urbanos) ou que vivem em áreas em fase de demarcação. “Lamentavelmente, o Estado brasileiro vem falhando gravemente no seu dever de proteger a saúde dos povos indígenas diante da Covid-19, gerando o risco de extermínio de muitos grupos étnicos”, diz a ação.

Em 08 de julho, o ministro do STF Luís Roberto Barroso concedeu liminar, determinando ao governo que tome providências. Entre elas, a elaboração de planos para a criação de barreiras sanitárias em terras indígenas e para o enfrentamento da Covid-19 entre indígenas, com medidas de contenção de invasores — em ambos os casos, assegurando a participação das comunidades. Barroso determinou a instalação de uma “sala de situação” para gerenciar as ações de combate à pandemia, com a presença de representantes da Apib, da Procuradoria-Geral da República e da Defensoria Pública da União.

O ministro do STF explicitou a inação do governo federal em relação à saúde dos povos indígenas. Fez isso ao esclarecer que a ordem de instalação da sala não caracterizava interferência no Poder Executivo, uma vez que tal ação está prevista em portaria do Ministério da Saúde e da Funai, que integra a estrutura do Ministério da Justiça.

*Com reportagem de Demétrio Weber, jornalista, criador do site Educa 2022.

Foto principal (Tiago Miotto/Cimi): no dia 12 de março, líderes indígenas foram recebidos por PM e Força Nacional no Ministério da Justiça

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

5 + onze =