Os intelectuais e a decadência ideológica. Por Mauro Luis Iasi

O que parece incomodar uma certa intelectualidade conservadora que ainda procura preservar seu verniz de sofisticação, é que hoje essa sua função pode muito bem ser exercida por um conjunto de desqualificados e toscos representantes de um conservadorismo tacanho: Mainardis, Olavos, Constantinos et caterva.

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“Seria possível dizer que todos os homens são intelectuais,
mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais”.
ANTONIO GRAMSCI

Quando Gramsci afirma que todos são intelectuais, assim como em outro momento afirmou que todos eram filósofos, não está abolindo as distinções que se apresentam nas diversas funções específicas presentes na divisão do trabalho. Na sequência da frase que aqui nos serve de epígrafe, o comunista sardo nos diz que alguém pode eventualmente fritar um ovo ou costurar um paletó rasgado sem que com isso se torne um cozinheiro ou um alfaiate.

Os seres humanos em seu fazer diário, no trabalho ou na vida cotidiana, só podem atuar combinando de diferentes formas as ações práticas e a capacidade intelectiva, o fazer e o pensar, assim como todos têm uma certa visão de si mesmos, dos outros e do mundo que orienta esse fazer numa certa direção. Uma visão de mundo que se materializa na linguagem, nas posturas, nas crenças e costumes. A grande questão para Gramsci é se aderimos conscientemente a uma determinada visão de mundo ou se somos levados por uma que nos é imposta como se fosse nossa.

O senso comum é formado por uma mistura bizarra de valores, representações e ideias que compõem nossa época. Estes nos chegam por meio dos grupos imediatos de inserção social na família, na escola, no trabalho, mas se originam nas relações sociais determinantes em cada período histórico. No senso comum, bizarro e ocasional, não se apresenta a necessidade de unidade e coerência, uma vez que respondemos aos desafios da vida com um arsenal de valores capturados aleatoriamente no tecido cotidiano da vida. O mesmo não vale para as visões de mundo. Sejam elas tradicionais ou orgânicas em relação às classes que compõem nossa sociedade, as visões de mundo aparecem necessariamente articuladas em um sistema de ideias, argumentos, premissas e conclusões que constituem uma determinada doutrina ou pensamento.

Os intelectuais operam como mediadores entre o terreno histórico das relações sociais e os sistemas de pensamento, conferindo assim ao primeiro uma forma ordenada. Por isso, o velho comunista sardo não acreditava que seriamos capaz de encarar o problema dos intelectuais com uma sociologia. Tratava-se, antes, de lançar mão daquilo que ele denominava de uma “história da cultura” (Kulturgeschicht), ou uma história da ciência política. O centro dessa opção encontra-se na recusa de atribuir mecanicamente um sistema de pensamento ou uma visão de mundo a um ou outro segmento social, assim como compreender os intelectuais como um segmento social específico que pode ser entendido de forma separada do desenvolvimento histórico geral e da luta de classes.

Através de ensaios deveríamos ir captando o desenvolvimento das formas de produção da vida e a maneira como se manifestam na consciência daqueles que nela se inserem. Dessa maneira, formações sociais agrárias tendem a desenvolver visões de mundo tradicionais e os intelectuais que lhes correspondem, ao passo que a industrialização levaria a concepções de mundo próprias dos interesses empresariais e proletários e intelectuais orgânicos dessas classes.

No senso comum tudo isso encontra uma amalgama de concepções que vão desde preconceitos até elementos de uma visão mais avançada. Na prática dos intelectuais essa mistura não pode ser aceita. Espera-se dos intelectuais que apresentem unidade e coerência, pressupostos articulados aos argumentos e conclusões.

Aceitando essa premissas gramscianas, ao olhar para nossa formação social e o papel de nossos intelectuais, nos vem um certo desconforto, tal como na consagrada análise de Roberto Schwarz sobre as “ideias fora do lugar”. Parece evidente que por aqui os conservadores não são bem conservadores, os liberais adoram o Estado e os reformistas procuram evitar reformas – sem contar que temos também certos revolucionários que paradoxalmente evitam rupturas muito profundas.

Esse traço de nossa formação parece ter se acentuado nos tempos presentes. O que por si só já é uma constatação desconcertante, uma vez que o pensamento social brasileiro, quase sempre, procurou identificar essa inconsistência com um processo inacabado, lendo-a pelas lentes do atraso em relação às nações centrais e do subdesenvolvimento, de modo que a expectativa era que com o desenvolvimento ou a modernização nacional tal característica iria se diluindo.

O capitalismo dependente e a estrutura de classes que lhe é própria produziu uma formação social cindida por antagonismos inconciliáveis, uma classe dominante diminuta e parasitária, uma massa de explorados e expropriados forçados a sobreviver abaixo dos limites da reprodução. Se no campo político essa formação social tende à autocracia burguesa, como vaticinou Florestan Fernandes, na cultura isto se expressa em um inevitável elitismo de corte oligárquico.

Na sua tentativa de desenterrar as raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda trata da seguinte maneira os intelectuais:

“Mas há outros traços por onde nossa intelectualidade ainda revela sua missão nitidamente conservadora e senhorial. Um deles é a presunção, ainda em nossos dias generalizada entre seus expoentes, de que o verdadeiro talento há de ser espontâneo, de nascença, como a verdadeira nobreza, pois os trabalhos e o estudo acurado podem conduzir ao saber, mas assemelham-se, por sua monotonia e reiteração, aos ofícios vis que degradam o homem.” Sérgio Buarque de Holanda, Raizes do Brasil (Rio de janeiro: José Olympio, 1994, p. 123)

Segundo essa premissa, que me parece ainda presente nos dias que seguiram aos tempos de Sérgio Buarque, não se poderia confundir o intelectual com aquele vil assalariado envolto em aulas, reuniões de departamento, corrigindo trabalhos, fazendo projetos, pesquisas e participando de bancas e seminários intermináveis. O intelectual, graças à uma espécie de dom de nascença, está refletindo sobre seu tempo e o mundo e produzindo espasmos de brilhantismo. Tal postura leva a um segundo traço indicado pelo nosso autor: o alheamento do mundo circundante.

O caráter transcendente e inutilitário, em suas palavras, do pensamento destes intelectuais teria a função de coloca-los “acima do comum dos mortais”. Teríamos, como resultado:

“Certo tipo de erudição sobretudo formal e exterior, onde os apelidos raros, os epítetos supostamente científicos, as citações em língua estranha se destinam a deslumbrar o leitor como se fossem uma coleção de pedras brilhantes e preciosas”.
Raízes do Brasil, cit., p. 123

Por trás desta aparente sofisticação existiria o esforço de “uma concepção de mundo que procura simplificar todas as coisas para colocá-las mais facilmente ao alcance de raciocínios preguiçosos”. Um mundo ou um país complicado exigiria dedicação e trabalhoso processo mental que – ainda segundo o autor – difere muito da sedução de palavras que parecem resolver tudo, graças a uma virtude quase sobrenatural, de forma mágica.

O que parece incomodar uma certa intelectualidade conservadora que ainda procura preservar seu verniz de sofisticação, é que hoje essa sua função pode muito bem ser exercida por um conjunto de desqualificados e toscos representantes de um conservadorismo tacanho: Mainardis, Olavos, Constantinos et caterva. Nestes, os passes de mágica são simplórios e se aproximam mais do senso comum do que propriamente de uma produção intelectual, no entanto, podem ser muito eficientes no sentido de apresentar uma visão simplificada para mentes preguiçosas.

No entanto, o risco é acreditar que tudo se explica pela qualidade do material humano disponível, que nos levaria de Edmund Burke à Samuel P. Huntington, ou de Moreira Salles a Olavo de Carvalho. Não é por aí. Aqui me parece que a categoria de decadência ideológica, tal como apresentada por Marx e seguida por Lukács, pode nos ser útil.

Marx estava convencido de que existe um nexo entre as ideias dominantes e as relações sociais dominantes – ou, mais precisamente, as relações que fazem de uma classe a classe dominante. O movimento histórico, no entanto, caminha por contradições de forma que as relações sociais dentro das quais as forças produtivas se desenvolveram podem se converter em obstáculos. No momento em que isso ocorre, estabelece-se uma contradição e as ideias que antes correspondiam se tornam inautênticas, não correspondentes. Porém, afirmam Marx e Engels, “quanto mais elas são desmentidas pela vida e quanto menos valem para a própria consciência, tanto mais resolutamente são afirmadas, tanto mais hipócrita, moralista e santa se torna a linguagem da sociedade normal em questão.” (A ideologia alemã, p. 283-4) A consciência desta época, nas palavras dos autores, se torna assim uma “ilusão consciente” uma “hipocrisia proposital”.

Lukács, seguindo estas pistas, ao tratar da reviravolta do pensamento burguês no sentido da apologética e da decadência, vai afirmar que se apresenta uma “evasão da realidade, com fuga no predomínio da ideologia ‘pura’”. Esta ideologia “pura” se caracterizaria por um profundo desprezo pelos fatos históricos, abandonando a inicial preocupação da burguesia revolucionária em compreender as “verdadeiras forças motrizes da sociedade”, e colocando em seu lugar uma visão superficial, “deformada em sentido subjetivista e místico” (György Lukács, “Marx e o problema da decadência ideológica”, Marx e Engels como historiadores da literatura, p. 99)

O que Sérgio Buarque de Holanda vê como uma das características de nosso país – um dos elementos de seu caráter, por assim dizer – à luz dessa aproximação teórica pode ser compreendida na verdade como parte do processo maior de crise da ordem capitalista na qual o Brasil se inseria. Uma ideologia própria do modo de produção capitalista nascente tem que se apresentar como mediação de um capitalismo monopolista transitando para a forma imperialista e, o que é ainda mais grave, como legitimação de uma ordem do ponto de vista daqueles que são os alvos de seu desenvolvimento como área de saque e exploração.

No centro do sistema capitalista, o conservadorismo transita de uma reação aristocrática que se confronta com a ordem burguesa nascente para uma reação burguesa diante da emergência do proletariado. Já no Brasil, temos uma oligarquia que se aburguesa e se alia à velha ordem colonial e escravista contra a maioria da população em uma contrarrevolução preventiva e permanente, como afirmava Florenstan. Por isso, a ideologia aqui tem que se apresentar já nos termos de uma decadência ideológica e não como uma visão de mundo correspondente; não como uma visão de mundo universalizante, mas como hipocrisia deliberada.

Voltando a Raízes do Brasil, o autor identifica essa contradição como uma tendência dos intelectuais se alimentarem de doutrinas e visões de mundo “dos mais variados matizes e com o que sustentam, simultaneamente, as convicções mais díspares”, bastando que estas se apresentem de forma vistosa, com “palavras bonitas ou argumentos sedutores”.

A questão ainda mais desconcertante, porém, é se esse processo nos atinge e de que forma. Seria esta uma característica exclusiva da intelectualidade burguesa à qual estaríamos imunes? Creio que não.

Gramsci acreditava que o proletariado tinha grande dificuldade de formar um segmento de intelectuais de forma massiva. Para ele, isso só se daria depois da tomada do poder e no processo de construção de uma nova sociedade. Os intelectuais que aderem à luta revolucionária dos trabalhadores vêm, via de regra, de outros segmentos sociais – notadamente os setores médios. Podemos afirmar, correndo o risco inevitável de cometer generalizações indevidas, que nossos intelectuais tendem a parecer mais intelectuais tradicionais do que propriamente orgânicos nos termos gramscianos. Isso não implica em nenhum desmerecimento às suas contribuições teóricas que podem auxiliar de forma importante na compreensão das determinações de nossa formação social e em vários aspectos da vida da classe trabalhadora.

Algumas pessoas parecem acreditar que a organicidade de um intelectual se define de maneira temática, de forma que seriam intelectuais orgânicos aqueles que falam de temas como a classe trabalhadora, o movimento sindical, as disputas políticas ou as formas de resistência. Para Gramsci, no entanto, a organicidade reside no vínculo estabelecido com as classes e à luta de classes; reside na disposição de mudança revolucionária e nas tarefas organizativas, formativas, políticas e militares para tanto. Tais tarefas que no campo da classe dominante são realizadas pelo Estado e pelas instituições da sociedade civil burguesa, no campo proletário são realizadas pelo partido. É por isso que os indivíduos que desenvolvem atividades intelectuais, com importantes contribuições, não constituem um intelectual orgânico, nos termos gramscianos.

Não nos estranha que neste segmento, também, presenciemos um certo alheamento à realidade, o encantamento com palavras estranhas e rebuscadas elaborações pseudocientíficas que acabam, por vezes, resultando em uma explicação simples para mentes preguiçosas. Como dizia Brecht, como não considerar um embusteiro alguém que ensina aos famintos algo que não seja como acabar com a fome?

Imagem: Sérgio Buarque de Holanda.

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