Cinco áreas rurais com cerca de 330 hectares serão destinadas ao reassentamento. Reparação buscada há 18 anos pelo MAB contou com atuação do MPF e outros órgãos
Procuradoria da República na Paraíba
Após 18 anos, aproximadamente 100 famílias, das cerca de 900 diretamente atingidas pela construção da barragem Argemiro de Figueiredo (barragem de Acauã) na Paraíba, viram o sonho de voltar a produzir nas próprias terras ficar mais perto de se tornar realidade. É que, na quinta-feira, 10 de setembro de 2020, foi publicado no diário oficial o Decreto Estadual nº 40.520, de 9 de setembro de 2020, declarando áreas de cinco imóveis rurais como sendo de utilidade pública para fins de desapropriação. As áreas, de aproximadamente 330 hectares, serão destinadas à construção da agrovila Águas de Acauã, localizada na zona rural do município de Itatuba, no Agreste paraibano, a 116 quilômetros da capital João Pessoa. O decreto de desapropriação é mais uma conquista da negociação extrajudicial nos últimos seis anos entre o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) no estado, Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU), Defensoria Pública da Paraíba (DPE/PB), Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e Governo da Paraíba.
Tão logo foi publicada a edição do diário oficial, a notícia do decreto rapidamente se espalhou nos ‘grupos de zap’ das famílias atingidas. Eufórica, Maria Anunciada da Silva, moradora da comunidade do Costa, mandou para a coordenação do MAB um áudio contando a felicidade. “Estou muito contente, pulando de alegria porque, finalmente, é uma conquista da nossa luta. Se pudesse, eu soltava uma caixa de fogos para comemorar”, gravou Anunciada, que espera ser reassentada na futura agrovila. “De tão contente que eu fiquei, as lágrimas caíram dos olhos”, contou outra moradora da comunidade, Maria do Socorro Vasconcelos. Ela falou dos planos para quando se mudar: “Meu Deus do céu, estou animada e não vejo a hora de chegar esse dia. Eu tenho um bocado de feijão macassar dentro de umas garrafas já guardado para plantar por lá”, revelou.
Mais cautelosa e ressabiada, após tantos anos aguardando o reassentamento, a agricultora Oziana Luiz da Silva relata as dificuldades na comunidade do Costa e a expectativa sobre a agrovila: “Se realmente sair [o reassentamento], talvez saia, vai mudar muita coisa, porque aqui, a gente não tem estrutura nenhuma, nem água para plantar, absolutamente nada. Aqui é um lugar seco, muito seco. Para viver aqui, a gente tem que sair para fora para trabalhar”, conta Oziana Silva. O acesso à água também é o desejo da agricultora Rosineide Alves da Silva, moradora da comunidade: “A melhoria que eu quero para mim e para todos é um lugar em que a gente tenha espaço para criar [animais] e água suficiente, porque o lugar em que a gente vive é um lugar sem saída. A gente vive porque tem que viver”, diz, resignada.
Momento histórico – Em mensagem de agradecimento ao governo estadual, a coordenação do MAB na Paraíba se referiu à publicação do decreto como ‘momento histórico’ e também mencionou o “momento extremamente difícil na agenda política nacional, onde não existe mais a pauta da reforma agrária e as violações de direitos humanos se intensificam”. A mensagem fala em resgate de uma parte importante da dívida histórica do estado para com as pessoas atingidas e cita que, desde 2002, a necessidade de terra para produzir e o acesso à água sempre foram os primeiros pontos de pauta das reivindicações das famílias removidas de suas terras para dar lugar à barragem de Acauã. “Agora, se abrem novos desafios para a concretização de uma verdadeira política de reassentamento para as populações atingidas por barragens na Paraíba”, diz a mensagem do MAB/PB.
A notícia também chegou à coordenação nacional do MAB que se pronunciou a respeito da conquista. Segundo José Josivaldo Alves, integrante da coordenação nacional do movimento, apesar de não ser um reassentamento com grandes áreas, a publicação do decreto de desapropriação reacende a expectativa do MAB de ter conquistas formais, políticas e econômicas para as famílias que foram transferidas das terras em que moravam “de forma desumana, injusta, autoritária e arbitrária”. Josivaldo Alves, ele próprio um atingido pela construção da barragem do açude Castanhão, na década de 90, no Ceará, acompanhou por muito tempo o caso de Acauã.
O integrante do MAB nacional lembra como encontrou as famílias atingidas pela barragem de Acauã nos primeiros meses de 2002: “A situação era muito crítica, muito desumana. Quem já estava nas vilas estava em situação altamente degradante. Tinham saído das áreas em que produziam alimento para sobreviver, cedendo lugar à barragem”, conta. Ele ajudou as famílias atingidas a se organizarem e definirem as principais reivindicações: “rever as indenizações horrorosas que tinham sido feitas, fazer um reassentamento decente para as famílias desalojadas e que as famílias tivessem protagonismo nas decisões”, relembra Alves.
Segundo o professor aposentado Fernando Garcia, doutor em Sociologia, que acompanha todo o processo de luta dos atingidos pela barragem de Acauã, desde o início, como voluntário pela Universidade Federal de Campina Grande, a conquista do acesso à terra pelas famílias atingidas, através da desapropriação feita pelo governo do estado, se reveste de importância adicional no contexto nacional atual, em que há problemas gravíssimos nas políticas indigenista, para quilombolas e de reforma agrária.
“É inquestionável o valor da conquista e, embora estejamos falando em praticamente mil famílias [atingidas], serão contempladas nesse primeiro momento apenas cem, mas é um começo. Antes tarde do que nunca e se espera que seja uma primeira desapropriação, que haja outros reassentamentos. Eu diria que precisaria ter em torno de umas 450 famílias assentadas”, pondera o sociólogo. Ele lembra que, em 2004, quando coordenou o II Plano Regional de Reforma Agrária da Paraíba (PRRA/PB), que integrou o II Plano Nacional de Reforma Agrária organizado pelo então Ministério do Desenvolvimento Agrário, os atingidos pela barragem de Acauã participaram e a meta de reassentamento proposta no relatório do PRRA/PB foi de 700 famílias atingidas.
Lançado pelo governo federal em novembro de 2003, o II Plano Nacional de Reforma Agrária já reconhecia a debilidade das políticas de reassentamento das populações atingidas por barragens e grandes obras de infraestrutura e registrava que essas populações “em geral, ficam à mercê das iniciativas das empresas geradoras de energia que, em geral, não respeitam as práticas culturais e produtivas desta população e não consideram a necessidade de serem gestados novos projetos produtivos que promovam a melhoria da qualidade de vida”.
Violência e dispersão – Testemunha da luta das famílias atingidas, Fernando Garcia relata que a recuperação do acesso à terra sempre esteve na pauta das famílias desalojadas ao longo dos 18 anos de espera. No entanto, explica o professor, as condições de vida nas localidades para as quais eles foram removidos – os conjuntos habitacionais rurais – eram tão precárias que o MAB se viu obrigado a lutar por obter as mínimas condições de vida nesses locais, “o que consumia a energia do movimento”, revela Garcia, mencionando a violência que tomou conta de Pedro Velho, a mais populosa das comunidades atingidas, que estampava “sucessivas manchetes dos jornais estaduais estarrecidos com a gravidade da violência em Pedro Velho”, relata o professor.
Ao longo desses 18 anos, também houve dispersão e muitas famílias se mudaram para outras cidades e outras até saíram do estado em busca de sobrevivência. “Tem muitas famílias de Pedro Velho que foram trabalhar nas fábricas de sapatos em Minas Gerais, muitas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Várias mulheres da comunidade do Costa estão morando em outras cidades, trabalhando como empregadas domésticas”, relata Osvaldo Bernardo, coordenador do MAB na Paraíba. Ele também morava na comunidade de Pedro Velho e teve que sair às pressas de casa, em 2004, quando a barragem de Acauã, com capacidade total de 253 milhões de metros cúbicos, transbordou, submergindo todas as casas e equipamentos públicos da comunidade como escolas, igrejas, praças e o cemitério.
Luta e resistência – O coordenador do MAB na Paraíba ainda lembra como foram as primeiras reuniões com os governantes naquela época: “nem sequer a uma cadeira para sentar a gente teve direito e se reunia em pé. Diziam que a gente estava criando chifre em cabeça de cavalo”, recorda Osvaldo Bernardo e enumera os fatores que, segundo ele, contribuíram para tornar mais próximo o resgate de parte da dívida histórica do estado com as famílias desalojadas: a luta, a resistência e a persistência das famílias atingidas, o apoio das universidades, a atuação do Ministério Público Federal e a sensibilidade das autoridades governamentais.
A continuidade da resistência das famílias atingidas também foi destacada pelo professor Fernando Garcia: “A população não desistiu de lutar, de continuar organizada em busca de conseguir, minimamente, a recuperação daquilo que tinha perdido”. Garcia ainda destacou o papel do MPF como elemento importante na negociação: “Só aconteceu essa conquista porque o Ministério Público Federal decidiu negociar com as prefeituras e depois com o governo do estado. Agora, é claro, só existe negociação porque o outro lado aceita negociar. Não se consegue negociar com governos intransigentes e a partir das duas últimas gestões estaduais, passou a haver essa possibilidade de negociação”, ressalta o professor.
Territorialidade camponesa e ribeirinha – Os impactos da construção da barragem de Acauã sobre as populações e comunidades atingidas são um dos temas da tese de doutoramento que está sendo desenvolvida pelo professor do Departamento de Ciências Jurídicas da UFPB, Hugo Belarmino, que faz doutorado em Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense. Em sua pesquisa, ele sistematizou informações que demonstram que na região onde as famílias atingidas habitavam, havia uma espécie de territorialidade camponesa e ribeirinha ligada, decorrente da convivência com as terras e com as águas às margens do rio Paraíba.
Para o pesquisador, os processos de informação e negociação, quando da construção da barragem, ignoraram completamente esses sentidos e modos de vida das comunidades. “Essa territorialidade camponesa e ribeirinha foi estudada no laudo antropológico que o Ministério Público Federal produziu, que aponta para a tradicionalidade da ocupação camponesa naquela região. Na nossa pesquisa de campo também confirmamos essa tradicionalidade, fato que demonstra a gravidade das violações e dos impactos ocorridos em Acauã, que transcendem os dados e documentos oficiais”, revela Belarmino.
“Todas as comunidades tiveram seu modo de vida camponês e ribeirinho afetados com a construção da barragem. Elas viviam às margens do rio, conviviam com o rio, estabelecendo com o rio laços e relações sociais comunitárias que pressupunham a utilização das terras e das águas com áreas de uso comum”, constatou o pesquisador. “Eu diria que os impactos da construção da barragem vão além da sistemática violação dos direitos humanos já bastante documentada e se configuraram como um processo de cercamento das terras e das águas. Essa sinalização é importante porque demonstra que, ainda que essa desapropriação seja uma grande conquista para o MAB, ela corresponde a uma parte importante, mas não completa, das reparações necessárias. É necessário fazer muito mais para que todas as comunidades atingidas (Cajá, Melancia, Pedro Velho, Cafundó, Água Paba e Riachão) possam ter sua condição de reprodutibilidade camponesa – com acesso à terra e à água – garantidos”, aponta o doutourando.
O pesquisador ainda ressalta que essa é a primeira vez que se pode, efetivamente, falar de reassentamento da população atingida pela construção da barragem de Acauã. “Nenhum dos outros agrupamentos criados antes podem ser chamados de reassentamento, porque o próprio conceito de reassentamento pressupõe, ao menos, a manutenção das condições de produção daquelas comunidades, o que não ocorreu com as comunidades atingidas por Acauã. Somente agora, com esse projeto de agrovila, é que estamos tratando de um reassentamento”, afirma.
A restauração das condições de vida e de produção é o que espera a agente de saúde Alcione Bernardo da Silva, também atingida pela construção da barragem. “Ter acesso à terra e à água é outra vida. Acostumados que já éramos de nascença, desde nossos avós e bisavós, a termos nosso canto, onde tinha terra, tinha água e nos foi tirado, finalmente, após 18 anos de luta, obtivemos vitória”, afirmou.
Parceria e negociação para reparação – “Esse decreto é um marco muito importante da atuação do Ministério Público Federal na condução do inquérito civil que acompanha o caso”, diz o procurador da República José Godoy Bezerra de Souza, que acompanha o inquérito desde 2015. Nessa atuação, o procurador destaca a importância dos movimentos sociais como atores da implementação dos seus direitos: “no caso, a atuação do Movimento dos Atingidos por Barragens foi fundamental durante todos esses anos”, afirma o membro do MPF.
O procurador também menciona a forma de atuação negociada do Ministério Público Federal com os demais órgãos públicos, especialmente com o Governo do Estado da Paraíba, “buscando cumprir o que determina o artigo 129, inciso II, da Constituição, ao estabelecer que o Ministério Público deve atuar para que os direitos assegurados na Constituição sejam implementados”. José Godoy afirmou que entende que a atuação do MPF deve ocorrer seguindo dois parâmetros: “a parceria com os titulares dos direitos assegurados na Constituição e a negociação respeitosa e institucional com os órgãos responsáveis por implementar esses direitos, no caso de Acauã, o governo estadual que, desde o início, esteve aberto a todos os diálogos que transcorreram nos últimos seis anos”, afirmou.
Por fim, o procurador da República destacou a importância de se fazer reparação histórica, visto que a situação de dificuldade por que passam as famílias foi gerada por uma ação do estado e esse mesmo estado deve reparar os danos causados.
O decreto – Assinado pelo governador João Azevedo, o Decreto nº 40.520, de 9 de setembro de 2020, declara de utilidade pública, para fins de desapropriação, três imóveis rurais e parte de outros dois imóveis rurais destinados à construção da agrovila Águas de Acauã, localizada na zona rural do município de Itatuba. Conforme o decreto, as referidas áreas de terras limitam-se entre si em extensões apuradas por rigoroso laudo técnico topográfico e, quando remembradas, compreenderão uma área de 330, 0131 hectares. A desapropriação é de natureza urgente, para efeito de imediata imissão na posse das áreas declaradas de utilidade pública.
Ainda segundo o decreto estadual, a Procuradoria Geral do Estado, através da Procuradoria do Domínio, e a Empresa Paraibana de Pesquisa, Extensão Rural e Regularização Fundiária (Empaer) ficam autorizadas a adotar as providências de desapropriação amigável ou judicial das referidas áreas para serem incorporadas ao acervo patrimonial imobiliário do estado da Paraíba.
A agrovila – Em outubro de 2019, o Projeto Agrovila Águas de Acauã foi apresentado às famílias que serão reassentadas. A apresentação foi feita em reunião na comunidade do Costa, localizada no município de Natuba (PB) e teve a participação da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Humano, do Ministério Público Federal e de representantes da Companhia Estadual de Habitação Popular e da Secretaria de Estado da Agricultura Familiar e Desenvolvimento do Semiárido. O projeto prevê a construção de casas, escola, unidade de saúde, galpão comunitário, campo de futebol, vias principais pavimentadas, poços artesianos, sistema de abastecimento de água, sistema de eletrificação e iluminação, dentre outros equipamentos e sistemas. Na área, localizada no município de Itatuba, cada família reassentada receberá um lote com 1,5 hectare de terra.
Barragem de Acauã – O início da construção da barragem, sob responsabilidade do Departamento Nacional de Obras contra a Seca (Dnocs), remonta aos anos 80. Sua fase final somente ocorreu por volta de 1999, sendo efetivamente concluída em agosto de 2002. Devido a fortes chuvas, após dois anos de construída, a barragem transbordou, inundando completamente seis povoados e 115 imóveis rurais e causando danos para os moradores que ainda se encontravam dentro da área a ser alagada. Estudos realizados indicavam que demoraria, pelo menos, cinco anos para a cheia ocorrer.
Relatório oficial da Comissão Especial “Atingidos por Barragens” do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, criada entre os anos de 2009 e 2011, apontou violações ao direito à moradia, saúde, educação, alimentação adequada, acesso à água e precariedade nas indenizações.
A situação das famílias paraibanas atingidas pela Barragem de Acauã foi registrada no documentário ‘Águas para a vida ou para a morte?’ que chegou a ser apresentado para representantes de universidades de todos os continentes, durante a Conferência da Rede Europeia de Ecologia Política (Entittle), em Estocolmo (Suécia), em 2016.
Inquérito Civil nº 1.24.000.000523.2014-72
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Imagem: Reprodução do vídeo O Canto de Acauã – Parte 1.