Estudo é inédito e destaca altos teores de cádmio e arsênio também na água e em toda a cadeia alimentar
Por Fernanda Couzemenco, Século Diário
Crostas impermeáveis de resíduos de mineração, oriundos do rompimento da barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP, se formaram sobre os sedimentos naturais do leito do Rio Doce, produzindo impactos físicos e perpetuando impactos bioquímicos também sobre a água e a biodiversidade, atingindo, provavelmente, toda a cadeia alimentar do rio.
A constatação é um dos resultados de um estudo inédito desenvolvido por pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e instituições parceiras, publicado na revista Chemosphere.
Maior crime ambiental do Brasil e de toda a mineração mundial, a tragédia completa cinco anos no próximo dia cinco de novembro e ainda tem muitos aspectos a serem desvendados e, principalmente, muitos danos a serem reparados às dezenas de comunidades e milhares de pessoas atingidas ao longo de 600 km de leito em Minas Gerais e Espírito Santo, além de todo o litoral capixaba e sul da Bahia.
O volume de rejeitos lançado sobre o maior rio capixaba, calculado em mais de 50 milhões de metros cúbicos, é suficiente para cobrir uma área equivalente à porção insular da cidade de Vitória com uma camada de aproximadamente 1,70 metro de lama.
Os resíduos de mineração foram depositados sobre os sedimentos fluviais do Rio Doce, formando estruturas semelhantes a mudcracks de coloração marrom-avermelhada, explica uma das autoras do estudo, a professora de Geologia da Ufes Mirna Aparecida Neves.
“Essas crostas impermeáveis dificultam a circulação de água no sistema hidrológico e o estabelecimento de espécies vegetais neste substrato. Além da influência física negativa para o ambiente, as crostas também contribuem com um novo aporte químico e, a partir da ação de intempéries e da própria dinâmica fluvial do rio, poderão liberar gradativamente contaminantes para a água e, consequentemente, estes metais poderão ser bioacumulados através da cadeia trófica”, descreve Mirna.
O trabalho tem o ineditismo de analisar os sedimentos fluviais do rio na porção capixaba antes da foz, em Regência, Linhares, com a vantagem de poder ter sido feita uma comparação entre a situação antes e depois do crime, pois a equipe já vinha pesquisando a região desde 2013.
“Nosso trabalho mostra as condições geoquímicas dos sedimentos do Rio Doce antes do desastre ambiental, estabelecendo assim parâmetros de referência (background) que antes eram ausentes na literatura especializada”, explica outra autora, a também professora de Geologia Fabrícia Benda de Oliveira.
Cádmio e arsênio
Os teores de metais pesados encontrados nos sedimentos do leito foram comparados com os limites máximos permitidos pela legislação ambiental, tendo se destacado o cádmio e o arsênio, ambos metais já detectados em análises de pescado, de água subterrânea e até no corpo de moradores atingidos, por meio da análise de cabelo e unha.
“Os teores de cádmio e arsênio encontrados são preocupantes, visto que ultrapassam os limites estabelecidos pela normativa ambiental”, afirma Eduardo Baudson Duarte, do Programa de Pós-Graduação em Agroquímica da Ufes.
Eduardo ressalta que, como a equipe já vinha pesquisando o leito do Rio Doce antes do crime em 2013 e retornou aos locais de coletas em 2016, foi possível comparar as duas situações, evidenciando os impactos que o rompimento da Barragem em Mariana/MG provocaram sobre os teores dos dois metais pesados.
A diferença é que o cádmio foi basicamente trazido pelos rejeitos de mineração e o arsênio já estava em grande parte depositado no fundo do rio antes do crime, em decorrência do longo período de poluição por esgotos domésticos, resíduos industriais e extração mineral, principalmente de ouro.
“A atuação longa e duradoura de garimpos de ouro nas regiões de cabeceira e outras à montante, que carreiam íons em solução para as águas do Rio Doce, dentre eles o arsênio, que, em certo momento, se depositou no fundo do rio”, descreve.
O intenso fluxo de lama gerado pelo rompimento da barragem, por sua vez, foi capaz de revolver esses resíduos, “fazendo com que contaminantes já ‘enterrados’ ficassem em condições mais superficiais, podendo agora ser identificados nos sedimentos fluviais”, explica.
Para o cádmio, foram encontrados teores próximos de 7 mg/kg nos rejeitos de minério depositados no leito, e valores entre 1 e 4,5 mg/kg nos sedimentos fluviais após o crime. No caso do arsênio, foram encontrados teores próximos a 18 mg/kg nos resíduos depositados, enquanto nos sedimentos após o desastre foram observados teores entre 3 e 12 mg/kg.
Passivo ambiental
Antes da chegada da lama tóxica, os teores de arsênio nos sedimentos fluviais variavam entre 2 e 15 mg/kg e os de cádmio, entre 0,3 e 0,8 mg/kg. O aumento do cádmio devido aos rejeitos de mineração são bem explícitos. Já no caso do arsênio, a variação é pequena, sendo um pouco maior os valores mínimos encontrados (de 2 para 3 mg/kg) e um pouco menor os valores máximos (de 15 para 12 mg/kg).
A Resolução nº 454 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) determina, para o cádmio, os teores máximos de 0,6 mg/kg (nível 1) e 3,5 mg/kg (nível 2). Para o arsênio os valores máximos são 5,9 mg/kg (nível 1) e 17 mg/kg (nível 2). Sendo que o nível 1 indica o limiar abaixo do qual há menor probabilidade de efeitos adversos à biota e o nível 2, o limiar acima do qual há maior probabilidade de efeitos adversos.
Fabrícia ressalta que, no caso do arsênio, os teores encontrados antes do desastre ambiental já eram superiores ao nível 1 preconizado pela resolução do Conama e, com o revolvimento pela lama, o metal que estava “enterrado” se juntou com o resíduo vindo da barragem rompida, fato evidenciado pelos teores maiores de arsênio encontrados nos resíduos depositados, quando comparados aos sedimentos pré e pós desastre.
A pesquisadora salienta ainda que os metais que se encontram em níveis acima do permitido devem ser rastreados em estudos futuros envolvendo os componentes do meio físico, como água e solo, e biótico, como fauna e flora. “Conhecer quais são os metais potencialmente contaminantes facilitará o rastreamento da contaminação pela lama minerária, ajudando a confirmar a extensão do passivo ambiental gerado”, contextualiza.
Outros integrantes da equipe, pela Ufes, são Marx Engel Martins, da Geologia; e os professores Diego Lang Burak, de Agronomia; e Marcos Tadeu D’Azeredo Orlando, da Física e Química; além de Carlos Henrique Rodrigues de Oliveira, do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes); e Caio Vinícius Gabrig Turbay Rangel, da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
O artigo sobre o estudo ficará disponível até o final deste mês de setembro para acesso gratuito por meio do link: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0045653520320749 .
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Foto: Eduardo Badson