Prefeito milionário na Bahia deixa de comprar produção de camponeses para merenda escolar

Desde março, prefeitura de Remanso adquire produtos de supermercados, contrariando programa federal; candidato à reeleição, Zé Filho (PSD) declara patrimônio de R$ 2,7 milhões, o equivalente a mais de doze anos de repasses para projeto

Por Mariana Franco Ramos, em De Olho nos Ruralistas

O prefeito José Clementino de Carvalho Filho, o Zé Filho (PSD), candidato à reeleição em Remanso, município no norte da Bahia, não cumpre desde março a lei 11.947, que prevê a utilização de 30% dos recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para a compra de alimentos diretamente de produtores da agricultura familiar.

Segundo o Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (Sasop), a prefeitura optou por incluir nas cestas básicas distribuídas aos estudantes produtos adquiridos em grandes redes de supermercados. A justificativa é que a suspensão das aulas presenciais, em virtude da pandemia de Covid-19, dificultou a logística de distribuição, sobretudo de itens perecíveis.

Pelo menos 170 famílias de agricultores e pescadoras artesanais ficaram sem escoar a produção e, com isso, sem receber o complemento de renda. É o caso de Lucília Freitas Nascimento Santos, de 39 anos, que tirava em torno de R$ 500 mensais com a venda de peixe, como parte do programa.

‘MULHERES VOLTARAM A DEPENDER DOS MARIDOS’, DIZ LÍDER DE PESCADORAS

“O projeto foi todo concluído, entregue e assinado no começo do ano, mas não foi feita nenhuma compra, de nenhum agricultor”, afirma. Mãe de quatro filhos, de 12 a 19 anos, ela preside a Associação de Pescadores e Pescadoras de Remanso (APPR), criada em 2009, e diz que a situação se repete nas outras organizações e cooperativas do município do norte da Bahia.

“Foi muita luta para conquistar esse espaço, para que esse programa funcionasse bem aqui”, destaca. “Os produtos da agricultura familiar não eram aceitos, porque todos na escola estavam habituados com produtos industrializados”. Lucília relata que as crianças aos poucos passaram a consumir e a valorizar os produtos sem agrotóxicos, entregues diretamente das mãos do agricultor.

Ela conta que o corte significou uma perda financeira brusca e o fim da autonomia para muitas mulheres, que eram as beneficiárias diretas: “Esse dinheiro era uma complementação de renda. As mulheres tinham o crédito delas, ajudavam na alimentação, compravam as coisas para os filhos, um vestido, um caderno que faltava, e agora voltaram a depender dos maridos ou de auxílios”.

A agricultura e a pesca estão entre as principais atividades do município de 42 mil habitantes, às margens do Rio São Francisco, na microrregião de Juazeiro, a 720 quilômetros de Salvador. “Imagine quanto a gente movimenta na economia”, comenta Lucília. “A gente aprendeu a fazer plano de manejo e a preservar o meio ambiente, os nossos rios”.  Ela diz que muitos agricultores perderam suas safras, porque não tinham para onde escoar a produção. “Ficou tudo muito difícil”.

Segundo Francisco José da Silva, assessor técnico do Sasop, em 2019 o PNAE distribuiu em torno de R$ 24 mil por mês aos catorze grupos de camponeses cadastrados. O montante era suficiente para comprar 100 quilos de alface, 300 quilos de mandioca, 500 quilos de polpa de fruta e 800 quilos de filé de peixe, tudo produzido na região. O projeto corresponde ao ano letivo, de fevereiro a novembro. Ou seja, em nove meses, são repassados aproximadamente R$ 216 mil.

Em 2020 o município fez somente duas entregas de cestas básicas, que custavam R$ 35 cada. “Os kits não estão sendo distribuídos por alunos matriculados, e sim por famílias; as quem têm dois ou três alunos recebem um só”, alerta. “E não estão comprando nada de produto da agricultura familiar, apesar de os grupos estarem com seus contratos firmados”. Ele diz que o impacto tem sido bem grande para as famílias. “Algumas conseguem outras formas de comercializar seus produtos, mas as pescadoras, por exemplo, não conseguiram manter a renda”.

LISTA DE BENS DO PREFEITO SALTA DE ZERO PARA R$ 2,7 MILHÕES

José Clementino de Carvalho Filho, o Zé Filho (PSD), declarou R$ 2.724.433,56 em bens ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O valor, que inclui apartamento, casa, veículos e aplicações financeiras, aumentou 51,9% em relação a 2016, quando ele registrou R$ 1.793.423,03, e 492% em relação a 2008, quando informou R$ 450 mil. Na sua primeira campanha, em 2004, ele não tinha declarado nenhum patrimônio ao TSE.

O montante atual é 12,6 vezes maior que os R$ 216 mil gastos por ano com o PNAE no pequeno município do norte baiano. Zé Filho concorre à reeleição numa coligação com PDT, PT (que abriga o candidato a vice-prefeito, um trabalhador rural) e Cidadania.

O político do PSD foi condenado pelo Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia (TCM-BA), em 26 de agosto, por irregularidades na admissão de servidores e na contratação da Unibrasil Saúde Cooperativa de Trabalho dos Profissionais de Saúde. Os atos foram praticados no exercício de 2017. Cabe recurso da decisão.

O gestor foi punido com uma multa no valor de R$ 10 mil. De acordo com o processo, a administração municipal admitiu, sem a realização de concurso público, 663 servidores, distribuídos entre os cargos de conselheiros tutelares, merendeiras, serviços gerais, recepcionistas, vigilantes, professores e agentes de endemias. Essas contratações alcançaram, segundo o TCM, a soma de R$ 1.223.258,59.

Em relação à contratação da Unibrasil, no valor de R$ 9.826.130,68, foram identificadas irregularidades formais no procedimento licitatório e a possível prática de terceirização de atividade finalística de estado. A relatoria do Tribunal considerou que os valores pagos à cooperativa  foram desproporcionais. O prefeito pagou, em média, R$ 33.131,66 mensais por médico, bem acima do que foi pago pelo município vizinho de Casa Nova, que gasta em média R$ 19.041,99.

CORTES SE REPETEM EM VÁRIOS MUNICÍPIOS DO SEMIÁRIDO

Um levantamento da Articulação Semiárido (ASA) e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN),  divulgado em outubro, mostra que a falta de compromisso de governantes com a qualidade da alimentação dos escolares e a renda dos camponeses no Nordeste não é exclusiva de Remanso.

Durante os meses de agosto e setembro, as organizações ouviram 168 grupos produtivos de agricultores familiares e pescadores artesanais, presentes em 108 municípios da região, e confirmaram que as compras de alimentos da agricultura camponesa no âmbito do PNAE foram drasticamente reduzidas.

Segundo os relatos, 74 dos 168 grupos produtivos que até 2019 vendiam alimentos saudáveis e diversificados ao PNAE não o fizeram em 2020, o que corresponde a 44%. No ano passado, os aproximadamente 4,5 mil produtores organizados tiveram um rendimento de R$ 27 milhões. Entre janeiro e setembro, os mesmos coletivos venderam o equivalente a R$ 3,6 milhões.

“O que chamou a atenção foi o não diálogo do poder público com as cooperativas e os grupos informais, mesmo aqueles que já tinham uma relação antiga”, destaca Mariana Santarelli, do FBSSAN. Dos 122 grupos que tinham contratos vigentes para fornecimento de alimentos às escolas em 2020, apenas 49 (40%) foram chamados para renegociações.

“Isso gerou grande desperdício de alimentos e toda uma incerteza quanto ao planejamento da colheita e do plantio, num contexto de pandemia, em que outros canais de comercialização, como as feiras, estão fechados”, completa.

PNAE GARANTE SEGURANÇA ALIMENTAR A 41 MILHÕES DE ESTUDANTES

Para além da perda na quantidade e qualidade da alimentação nas escolas públicas, agricultores e agricultoras deixam de entregar seus produtos, o que acarreta na perda da renda, justamente quando crescem a pobreza e a fome. Dentre os grupos ouvidos, 58% vendem ao PNAE há mais de cinco anos; 81% tiveram colheitas comprometidas; e 48% disseram que houve desperdício de alimentos.

O PNAE atende cerca de 41 milhões de estudantes brasileiros, com repasses financeiros aos 27 estados e 5.570 municípios, da ordem de R$ 4 bilhões anuais. Para muitos destes alunos, é na escola que se faz a única ou a principal refeição do dia.Com os 30%, que representam R$ 1,2 bilhão, é que se assegura boa parte dos alimentos frescos e minimamente processados para a comunidade escolar. No levantamento feito pela ASA e pelo FBSSAN, 61% dos grupos produtivos entrevistados contaram que fornecem frutas, legumes e verduras frescos, 36% alimentos minimamente processados, como polpas, sucos e pães, e 20% informaram que fornecem carnes e ovos.

PREFEITURA PROMETE RESOLVER A QUESTÃO AINDA ESTE ANO

A reportagem não conseguiu contato com o prefeito. Ao Sasop, a gestão municipal alegou que uma nova resolução, que orienta a distribuição de cestas básicas às famílias dos alunos, não obrigaria ao cumprimento da regra dos 30% do PNAE. Só que a lei 13.987, publicada em 7 de abril de 2020, autoriza em caráter excepcional – durante o período de suspensão das aulas em razão de situação de emergência ou calamidade pública – a distribuição dos alimentos adquiridos com recursos do programa às famílias dos estudantes. A legislação, contudo, não invalida a regra original.

“A lei apenas orienta que o município tenha cuidado na distribuição, não diz que não deve comprar”, pondera Silva, em relação aos produtos da agricultura camponesa. “Mas o município achou mais interessante não comprar e deu essa justificativa”. Segundo ele, a prefeitura garantiu aos produtores que até o fim do ano resolveria a situação. “Já estamos em outubro, quase novembro, e em nenhum momento nos procuraram”.

O prefeito Zé Filho disputa a reeleição com o latifundiário Eulálio Braga (PTB) e o advogado Marcos Carvalho Palmeira (PCdoB). Braga declarou ao TSE possuir R$ 1,3 milhão. Sua lista de bens consta de apenas dois itens: uma fazenda de 2 mil hectares em Sento Sé, um município vizinho no norte da Bahia, no valor de R$ 1 milhão, e uma terra de 100 hectares em Remanso, por R$ 300 mil. Palmeira declarou uma casa por R$ 100 mil. Os candidatos a vice-prefeito nas duas chapas informaram não possuir nenhum bem.

Foto principal (Divulgação/Mapa): suspensão das aulas não desobriga estados e municípios a cumprir regra dos 30% do PNAE

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