Em meio à continuidade da tormenta da crise sanitária, contamos os mortos, agora, em centenas de milhares, ultrapassando a marca das 200 mil vidas perdidas.
No GGN
Iniciamos o ano de 2021 com a forte sensação de que não viramos a página para o tradicional recomeço que marca as celebrações de fim de ano. Em meio à continuidade da tormenta da crise sanitária, contamos os mortos, agora, em centenas de milhares, ultrapassando a marca das 200 mil vidas perdidas.
Continuamos, contudo, a nos defrontar com a inexistência de uma política pública nacional capaz de enfrentar a crise e, quando surge a oportunidade de se abrir uma frente de efetiva luta contra essa doença, estamos aqui discutindo se a imunização da população por meio de vacinas é ou não, na verdade, uma ação de “dominação cultural e econômica” dos “globalistas” e, no nosso caso, com a CORONAVAC, uma estratégia do “Partido Comunista Chinês”.
Ora, parece inacreditável, mas esse é o cenário que nos está posto nestes primeiros dias do ano de 2021.
Mesmo diante da incontrastável realidade do agravamento da crise, especialmente com o relaxamento dos protocolos de prevenção, como o uso de máscaras ou o distanciamento social, potencializado pelas aglomerações das festas de fim de ano, lutou-se, “bravamente”, para garantir a “liberdade” para se contrapor às restrições que se mostravam inevitáveis, do ponto de vista da estratégia de saúde pública.
No Amazonas, comerciantes e outros “ideólogos” desta liberdade, chamaram o povo às ruas para garantir a derrubada do lockdown que, bradava-se, “impediria o exercício do direito de ir e vir do cidadão” e a “vitalidade do comércio”. A “rebelião” contra as medidas sanitárias ganhou apoio e destaque por meio de pronunciamentos de várias personalidades, inclusive membros do Congresso Nacional, que em suas redes comemoram quando a medida não foi efetivada.
Algumas semanas depois, nos deparamos com a mais assombrosa situação de desespero e morte com o completo colapso do sistema de saúde em Manaus, capital amazonense, com o desabastecimento do fornecimento de oxigênio hospitalar na rede de saúde local, em virtude do aumento exponencial dos casos de internações por complicações respiratórias graves. Assistimos, atônitos e chocados, às mortes por ASFIXIA, decorrentes da falta de oxigênio para aqueles que estavam nos leitos dos hospitais.
Por outro lado, como não se poderia deixar de ser, observamos, com certa esperança, o mundo todo iniciar os esforços disponíveis para a organização de uma campanha de vacinação contra a COVID-19, com o Reino Unido iniciando o processo de vacinação pública já em 08 de dezembro de 2020, arrancando na frente desta luta que a todos deveria mobilizar.
Enquanto isso, por aqui, nada!
Patinávamos em discussões se compraríamos, ou não, a “vacina chinesa” do “Governo de São Paulo”, se vacinar seria ou não “relevante” ou se as eleições nos Estados Unidos teriam ou não sido fraudadas. Ah, claro, e também se deveríamos ser contra ou a favor do lockdown nas cidades brasileiras para as festas de fim de ano.
Para promover esta “liberdade” teve até mergulho no mar de Praia Grande, em 30.12.2020, do Presidente da República, com direito a aglomeração com banhistas sem máscaras na areia, criança no colo e muitas fotos. Registre-se, na cidade, o uso de máscara em locais públicos era obrigatório.
Diante de um programa já iniciado entre o Instituto Butantan, reconhecida instituição nacional na produção de fármacos, e uma empresa Chinesa, para a produção da indispensável vacina contra o vírus, tivemos o Presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, Deputado Eduardo Bolsonaro, travando uma “guerra”, em vários atos, à China.
Seja para criticar, de forma infundada, tanto a credibilidade da vacina chinesa, seja com insinuações de espionagem nas negociações com empresas chinesas para a implementação da rede 5G, o foco do problema tem sido, constantemente, desviado. Isso, em um embate, justamente, com o país com o qual estávamos em estado mais avançado de cooperação para a produção de um imunizante, em circunstâncias viáveis para a enorme necessidade e demandas brasileiras.
Ou seja, para além de não termos uma ação estruturada de preparação para o combate à crise, especialmente a preparação de um plano nacional claro para a vacinação da população, produzíamos, no coração do governo, entraves nas relações internacionais com o país com o qual tínhamos estabelecido a interação mais avançada para a produção da vacina.
Tudo isso nos faz recordar as passagens do filme argentino, “Um Conto Chinês”, de 2011, do cineasta Sebastián Borensztein, em que Ricardo Darín e Ignácio Huang, protagonizam histórias cômicas em meio a um “diálogo de surdos” e a paralela apresentação de histórias fantásticas, como uma vaca que caiu do céu na China, pondo em dúvida a existência de acasos ou mesmo de limite para o absurdo.
Eis o que enfrentamos no Brasil, uma situação tão aparentemente inacreditável que nos leva a questionar sobre até onde caminharemos, no campo das situações absurdas, no que diz respeito ao trato e encaminhamento do País, no combate à crise sanitária.
Tal qual nos faz lembrar o filme de Darín, a China aparece no contexto do debate público brasileiro, como um “conto chinês”, para funcionar como elemento coringa de justificativa do Governo para os descaminhos que se sucedem, agora, também no que se refere à vacina.
Neste mesmo sentido, volta e meia, quando se torna evidente o absurdo dos fatos, surge sempre uma afirmação, pelo Presidente da República, como “quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas”, ou tantas outras já apresentadas, para que voltemos os olhos para outras situações que, espantosamente, somos forçados a nos deparar, para além do enfrentamento da crise sanitária.
O saldo desse quadro é uma ação claramente insuficiente do Estado para a proteção da saúde e da vida da população, seja no campo da construção de alternativas efetivas para o enfrentamento de base do problema, seja na apresentação de medidas indispensáveis para minimizar as consequências econômicas e sociais desta crise. Para além disso, como destacado, somos constantemente expostos a um permanente flerte com situações autoritárias, com referências sempre renovadas à Ditadura Militar e seus atores mais relevantes.
Em meio a tantas informações desencontradas, a população passa a agir de forma desconcertada e conflitante, sem que volte suas atenções aos perigos e prolemas decorrentes do afrouxamento das medidas de proteção sanitárias, para a compreensão do que realmente está ocorrendo, das alternativas disponíveis à crise ou para a gravidade destas referências constantes a um regime de exceção.
E nós, todos, ficamos a esperar, tal qual no “conto chinês”, qual a próxima situação inimaginável que nos será apresentada, em meio a tudo que nos acomete. E, ainda, qual as respostas institucionais a todos estes atropelos.
Tal qual o velho ditado popular, ainda no embalo do “conto chinês”, fica difícil imaginar, em qualquer lugar, ou seja, “nem aqui nem na China”, o que vai acontecer, para além do já posto insucesso das medidas até agora adotadas no combate à crise, neste cenário de incertezas e fatos espetacularmente absurdos.
Deveremos seguir, atentos, a tudo que acontece. Quem sabe, a próxima cena, não será, justamente, o desabamento de uma vaca chinesa sobre as nossas cabeças.
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Fabiano de Melo Pessoa – Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Pernambuco Membro Fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP
Ilustração: Duke