Além dos homicídios, somam-se os crimes ambientais, supressão de fauna e flora, a destruição de modos de vida e de sobrevivência de populações, danos irreparáveis a bacias de rios. Uma arquitetura criminosa, onde a violência é a condição básica para a mineração.
Por Frei Rodrigo Péret, OFM*
Fazem dois anos, que a organização criminosa Vale soterrou vidas, matando 272 pessoas, das quais 11 ainda não foram resgatadas da lama, em Brumadinho. Se tornava reincidente no crime, lembremos dos 20 mortos em Mariana, no ano de 2015. Há pouco mais de um mês, no dia 18 de dezembro de 2020 a Vale soterrava mais uma pessoa. O trabalhador Júlio César de Oliveira Cordeiro, enquanto operava uma retroescavadeira em área de uma cava de rejeitos da Vale em Brumadinho, no mesmo local onde a barragem da mina do Córrego do Feijão se rompeu. Assim como em Brumadinho e Mariana, a Vale tinha ciência dos riscos.
Crimes da vale em Moçambique
No final de novembro de 2020, uma criança morreu, outra teve uma perna amputada e outras três ficaram gravemente feridas em uma explosão com artefato de mina terrestre, dentro da área de assentamento feito pela Vale, em Moçambique. No distrito de Moatize, a Vale opera uma das maiores minas de carvão do mundo. Para realizar a extração, a Vale expulsou 1365 famílias de suas casas. Essa explosão de uma mina terrestre, herança da guerra que Moçambique viveu até 1992, é prova de que o assentamento feito pela Vale não cumpriu os requisitos mínimos de segurança, em relação aos terrenos entregues às famílias.
Uma arquitetura criminosa – Vale e Estado
Além dos homicídios, somam-se os crimes ambientais, supressão de fauna e flora, a destruição de modos de vida e de sobrevivência de populações, danos irreparáveis a bacias de rios.
Uma arquitetura criminosa, onde a violência é a condição básica para a mineração. Assim funciona, em geral, o setor minerário. A mineração sempre passa pela violência, pela violação de direitos. A Vale articula bem essa arquitetura, como estratégia empresarial, domina territórios e as próprias instituições do Estado.
Após o crime da Vale em Brumadinho, se multiplicaram os alertas de barragens em risco de rompimento. Populações em municípios como Nova Lima, Rio Acima, Ouro Preto, Barão de Cocais, Santa Barbara, Belo Vale, Itabirito e Congonhas foram surpreendidas com toque de sirenes e remoção de pessoas. Medidas de segurança, placas de “rotas de fuga” e “pontos de encontro” foram instaladas, além de sirenes. Se tornou publico populações em áreas chamadas de Zonas de Auto Salvamento, na realidade Zonas de Risco de Morte. Uma vez acionadas as sirenes, cabe a elas correrem. O Estado impôs em vários territórios urbanos e rurais o protocolo do Plano de Ação de Emergência de Barragens de Mineração.
Uma arquitetura criminosa, onde a violência é a condição básica para a mineração.
Ampliar as fronteiras extrativas e avançar sobre os territórios a qualquer custo é imperativo para as mineradoras. A Vale desenvolveu uma esmerada expertise, a partir de seus crimes, de impor medo, para avançar sobre os territórios. Os rompimentos de barragem em Mariana e Brumadinho, são usados a seu favor. Através deles, a Vale usa suas barragens em risco, para disseminar um sentimento de insegurança, para se expandir nos territórios. A Vale espalha o medo por várias regiões de um estado historicamente espoliado pela mineração. Em muitos municípios foram anunciadas reuniões com as empresas. O povo é convocado. Mapas, explicações técnicas, discussões e promessas são apresentadas. As pessoas se descobrem como atingidas pela mineração. O Estado em estreita relação com ela reforça essa lógica perversa. Às populações é imposto o despejo, são extirpadas de seus territórios de origem. Aos que ficam, cabe uma nova rotina, permanecer atentos aos chamados de emergência e correr, fugir, quando necessário.
As instituições do Estado se renderam à Vale e negam o direito das populações em seus territórios; flexibilizam a legislação de proteção ambiental, facilitam concessões de licenças; permitem o auto monitoramento por parte das empresas. Nos casos de grandes ameaças, desastres criminosos, com lama real ou invisível, criaram uma verdadeira fábrica [de] acordos. Os Termos de Ajuste de Conduta, onde atingidos e vitimas são levados a sentar à mesma mesa com seus agressores criminosos, e são conduzidos a se sujeitar à suas vontades.
É necessário denunciar e enfrentar essa arquitetura, que parcialmente relatamos, montada pela Vale com os órgãos de Estado. Arquitetura que prevalece nos territórios atingidos pelo crime da Vale, em Brumadinho e na bacia do Rio Paraopeba. Isso vale também para o outro crime, dessa mesma Companhia, através da SAMARCO, em Mariana, na bacia do Rio Doce.
Toda a arquitetura que vigora, pode ser resumida no seguinte: O criminoso, no caso a Vale, permanece à vontade para escolher que tipo de reparação, como e quando implementa, ou seja cabe à ré estabelecer a “punição” a pena, que ela mesma receberá.
Impunidade, conivência e lucro
A Vale constantemente minimiza a segurança em detrimento de um discurso formalista e legalista de que cumpre os protocolos, contudo, os resultados são inexoravelmente destrutivos.
A indenização aos familiares das vítimas e às demais pessoas afetadas pelo crime da Vale em Brumadinho ainda é um assunto pendente. Não há transparência e a participação da população atingida é comprometida pela dificuldade de acesso a informação sobre os processos. As instituições do Estado, em particular o executivo e sistema de justiça se renderam à Vale. Controlando os territórios atingidos ou sob ameaça, as cenas dos crimes, ficam sob o controle daqueles que os perpetram. Nesse processo de acordos a Vale é descriminalizada, e o Estado reforça o poder das mesmas nos territórios. Empoderada, a Vale divide as comunidades, aumenta suas propriedades, negócios extrativos e lucros. A impunidade impera, sem uma real criminalização dos responsáveis.
Em novembro de 2020, a Comissão Especial de Ecologia Integral de Mineração da CNBB, enviou ofício para o Juiz da 2ª Vara da Fazenda Pública do Estado de Minas Gerais, contestando o processo de negociação de acordo de pareceria entre a Vale e Governo do Estado de Minas Gerais, no caso do crime da Vale em Brumadinho. O documento contesta uma série de condutas, como a não participação da população atingida, a “gestão paralela” do Estado na administração dos recursos, a exclusividade do Ministério Público Estadual nas indicações das auditorias e outras questões, que como apontado pelo documento, desrespeitam a legislação brasileira e violam os direitos das populações atingidas. A manifestação da CNBB pode ser entendida como um apelo para que os órgãos do Estado tenham transparência em qualquer tipo de negociação e que garantam a justiça junto às pessoas atingidas e ao meio ambiente.
Enquanto isso, em outubro, a Vale anunciou que havia registrado um lucro líquido de US$ 2,908 bilhões de dólares no terceiro trimestre de 2020, uma alta de 192% ante o lucro de US$ 995 milhões de dólares do segundo trimestre e de 76% sobre os US$ 1,654 bilhão de dólares do mesmo período em 2019.
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* Frei Rodrigo de Castro Amédée Péret, ofm é frade franciscano, trabalha há 37 anos diretamente com questões de conflitos de terra, na Comissão Pastoral da Terra (CPT). É assessor da Comissão Especial de Ecologia Integral e Mineração da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, membro do grupo impulsor da Rede Igrejas e Mineração (IyM). PUBLICADO ORIGINALMENTE NO BLOG FALA CHICO! / Cimi