“O ônibus é ruim porque é como se ele não transportasse pessoas, ainda há uma conexão com o navio negreiro”. Nesta entrevista, Luana Costa – comunicadora popular especialista em Mobilidade Sensível a Raça e Gênero que atua na assessoria de mobilização social no Movimento Nossa BH – fala de como nossos sistemas de transporte público são reflexo do racismo da nossa sociedade. Luana cobra a participação dos usuários nas decisões para que suplantemos este e outros problemas que tolhem o direito de acesso e usufruto da cidade pelos cidadãos.
Tatiane Matheus*, no Climainfo
“Temos um histórico de mais de 400 anos de escravização e é impossível negar que essa tradição escravocrata não se espelha em modelos de formação das cidades”, comenta a comunicadora popular Luana Costa, ainda no início de nossa conversa sobre mobilidade urbana e racismo ambiental. Em Belo Horizonte, alguns movimentos populares estão refletindo sobre a conexão da mobilidade urbana e da emergência climática com as questões de raça e de gênero.
Luana diz que as cidades são o espelho dessa sociedade escravocrata na qual estamos inseridos. Dessa forma, a encruzilhada está em o que é a cidade e onde estão as pessoas. “Podemos ver onde estão as nuances desta segregação. Belo Horizonte tem um núcleo embranquecido da cidade onde tem toda uma oferta de serviços. Inclusive, a parte mais rica mora nesse núcleo. E, como sempre, a periferia é o lugar onde os pobres e pretos estão. Essa segregação permeia o desenvolvimento das cidades e a mobilidade urbana bebe dessa estruturação”, diz Luana.
Não há como não associar a fala de Luana Costa com a de Joice Berth, no livro “Empoderamento”, sobre o “urbanismo daltônico” ou “colorblind urbanism”. A arquiteta e urbanista Joice Berth destaca que não é possível formar um pensamento crítico completo se forem negadas os apagamentos e as exclusões fomentados ao longo da história e alerta que quase todos os teóricos do urbanismo ignoram as opressões como válvula motriz das desigualdades que eles, assertivamente, já assumiram que existem.
“Essa segregação permeia o desenvolvimento das cidades e a mobilidade urbana bebe dessa estruturação”, Luana Costa.
De acordo com dados do Instituto Pólis, 74% das mulheres se deslocam utilizando transporte coletivo ou andando a pé, enquanto 62% dos homens fazem o mesmo uso. Conforme foi registrado no artigo “Transporte urbano não leva em conta desigualdade de gênero”, os impactos das mudanças climáticas serão ainda maiores para as mulheres negras e pobres, por conta da distribuição desigual do acesso a recursos (capital, físico, financeiro, humano, social e natural) na sociedade: negras e pobres terão menor acesso aos recursos necessários para a adaptação à emergência climática.
Para que tenhamos uma retomada da economia pós-pandemia verde Inclusiva, é possível gerar mais empregos investindo na mobilidade urbana buscando a redução do tempo de deslocamento das pessoas por meio da ampliação de faixas e corredores exclusivos de ônibus, por exemplo, como apontou a pesquisa do ClimaInfo. Mas, para que os investimentos sejam de fato inclusivos, não basta ter mais ônibus. Estes precisam estar acessíveis a uma população que muitas vezes fica invisível, como demonstra o estudo Cidades e Corpos, da Nossa BH, para garantir a essa população o direito ao acesso à cidade. Além disso, é importante adotar tecnologias limpas para reduzir a emissão de gases de efeito estufa do transporte público motorizado, como a eletrificação do transporte, um dos itens que a Agenda Urbana pelo Clima destaca como ação necessária.
Porém, muitos obstáculos precisam ser superados. O custo do transporte é uma das barreiras, a segunda é a falta de opção. “A população que mais transita de ônibus na cidade não é só feminina, ela tem cor. As calçadas não estão preparadas para receberem as pedestres e eu coloco no feminino porque elas estão nos ônibus e nas calçadas. Os viadutos também são barreiras ao usufruto da cidade pela população. O metrô (em Belo Horizonte) só tem uma linha”, lembra Luana. O transporte público é o que mais polui na cidade, entretanto, o termo mobilidade urbana está ainda tão distante das pessoas como falar dos efeitos da mudança climática na rotina delas. E a população que sofre mais com as consequências dessas causas é pobre, preta e periférica.
“As desigualdades passam pela mobilidade urbana, pelas discussões de mudanças climáticas e pelas questões de raça. O Brasil é um país racista. É um país que há mais de 400 anos escravizou pessoas. As mulheres são o fruto de toda essa segregação. As mulheres pretas estão na última escala dessa pirâmide, sofrem todos os impactos da desigualdade de forma mais forte”, analisa Luana, ressaltando que a sociedade civil tem apontado caminhos para soluções, mas o poder público a ignora.
Uma das questões apontadas pela comunicadora social é que o debate está concentrado numa bolha de pessoas e instituições que estão no “núcleo embranquecido” das cidades, que não estão nas periferias ou nas margens do município. A outra é que a discussão precisa ser fomentada por representantes no legislativo e no executivo que tenham disponibilidade para tratar políticas públicas de mobilidade urbana para fomentar a cidadania.
“Falta vontade política e falta expertise dos técnicos que estão construindo essas políticas públicas”, conclui Luana e aponta que não é, necessariamente, por falta de dinheiro que o problema segue sem solução: “o orçamento de mobilidade na cidade é muito grande e poderia colocar todas essas questões”.
Segundo Luana, em Belo Horizonte existe um conselho de mobilidade urbana que não funciona desde 2016. A discussão sobre o assunto passa por lugares que não são os espaços públicos e também falta diversidade. O espaço é extremamente técnico, acadêmico e esvaziado de vivência. Também existe um conselho de meio ambiente, que é esvaziado de vivências, embora o lugar exista e é um importante espaço de resistência.
Luana acrescenta que as reuniões ocorrem de dia, no horário comercial e no centro da cidade – o que dificulta a participação das pessoas. Esse esvaziamento de diversidade nos debates também é percebido pela cicloativista de Belém (Pará) Ruth Costa. Muitas mulheres de sua cidade – que andam de bicicleta e vivem na periferia e devido à rotina e os horários dessas reuniões – não têm a oportunidade de participar, conforme foi registrado no texto “Eu escolho se eu quero morrer assaltada ou morrer atropelada. (…) E rezo que não me aconteça nada”. O transporte público de qualidade precisa diminuir a emissão de gases de efeito estufa e ser mais barato para que a população não sinta motivada em usar o automóvel e acesse mais o transporte público do que seus carros.
“Tem uma questão primeira que é o ar que a gente respira, que tem que ser de qualidade. Também temos muitos coletivos que falam da mobilidade criativa”, cita Luana. Caminhar e pedalar leva a redução das emissões e nos leva para um hábito de vida mais saudável. Por tudo isso, segundo ela, é importante que a vivência das pessoas seja levada em conta. Mecanismos simples (como mudar as regiões e horários das reuniões dos conselhos) podem fomentar a abertura destes espaços para os mais impactados possam opinar sobre as questões e o debate ter outras vozes. “Existe um desinteresse em trazer a população para discutir a questão, que é sua e dentro do seu próprio direito. Apesar de já ter um caminho para que as políticas públicas sejam construídas com a população, ainda acho que está um pouquinho lento”, comenta Luana e desabafa: “O quanto é difícil fazer os governos entenderem que a mobilidade urbana é um elemento segregador”.
Para Luana, deve-se fazer com que os representantes que estejam nesses espaços (de decisão) se pareçam com a população para entender as suas necessidades. “Por que não contamos com políticos nas câmaras de vereadores e nas prefeituras? Essas pessoas não se parecem comigo, não se parecem com a população que vive na minha rua (Luana vive na periferia de BH). Para eles, não importa que o transporte não passe aqui, que a rua esteja asfaltada, que eu tenha qualidade para acessar o centro à noite. Aqui, depois das 11 horas (da noite), não tem transporte público. Eu fico ‘ao léu’ no centro, se não tiver como voltar.”
Silvio Almeida, em “Racismo Estrutural”, cita a importância da representatividade política e institucional para que as reivindicações de minorias possam ser repercutidas e para desmantelar as narrativas discriminatórias que colocam minorias nos locais de subalternidade. Mas, “a visibilidade negra, não é o poder negro”, pois o racismo não se resume a um problema de representatividade, mas é uma questão de poder real. “Esse lugar de decisão e de poder precisa estar perto de nós. A gente precisa ocupar esses espaços porque se não a gente não vira a chave. A gente fica discutindo com pessoas que não conhecem a nossa vivência… Não dá mais para falar que eles não fazem as coisas. A gente precisa estar nesses espaços”, analisa Luana.
Para ela, as instituições precisam contar com o saber, as experiências, a expertise e as tecnologias que a população periférica desenvolve para conseguir furar os bloqueios das ausências de direitos (à cidade). “O ônibus é ruim porque é como se ele não transportasse pessoas, ainda há uma conexão com o navio negreiro. É inevitável. Quem é a população que circula na cidade dentro dessas latas, que são ruins, são sujas, que poluem?”, desabafa Luana, acrescentando: “Não tem mais como não discutir essas questões, sem pensar em garantia de direito e cidadania, garantia de acesso à cidade. Não tem como não discutir sem ouvir o povo”.
*Tatiane Matheus é pesquisadora no ClimaInfo e membro do Grupo de Trabalho de Gênero & Clima do Observatório do Clima.
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Foto: Yan Marcelo/@yanzitx