Os pedidos enviados pelo presidente da Funai, Marcelo Xavier, à Polícia Federal para abertura de inquéritos contra lideranças indígenas coincidem com postagens feitas em rede social pelo ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general da reserva Augusto Heleno, em setembro do ano passado.
A sequência de eventos e os termos usados indicam a estratégia do governo Bolsonaro. No dia 18 de setembro, Heleno atacou a líder indígena Sonia Guajajara e a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) em sua conta no Twitter. Ele escreveu, em uma das postagens, que a APIB “está por trás do site defundbolsonaro.org, cujos objetivos são publicar fake news contra o Brasil; imputar crimes ambientais ao Presidente da República; e apoiar campanhas internacionais de boicotes a produtos brasileiros”.
Quatro dias antes, em 14 de setembro, o presidente da Funai datou um ofício – que só foi assinado por ele e enviado à direção-geral da Polícia Federal no dia 7 de outubro – no qual falou da mesma campanha e em termos idênticos à postagem de Augusto Heleno.
“APIB também está envolvida com a campanha divulgada no site http://defundbolsonaro.org. O
referido site espalha fake news do Brasil para o mundo, imputando crimes ambientais ao Presidente da República, fazendo campanha para que o mundo boicote o Brasil, daí o nome defund Bolsonaro, que se traduz em cortar o financiamento de Bolsonaro”, escreveu Marcelo Xavier.
Em outro tuíte de 18 de setembro, Augusto Heleno escreveu: “O site da Apib se associa a diversos outros, que tb trabalham 24 horas por dia para manchar a nossa imagem no exterior, em um crime de lesa-pátria”. No ofício à PF, Marcelo Xavier afirmou: “O site da APIB é hospedado pela Rede Livre. A Rede livre é associada a Mídia Ninja, Soylocoporti e Fora do Eixo, organizações comunistas que prejudicam o Brasil, ao articular informações para denegrir a imagem para o exterior”.
Enviado à PF no dia 7 de outubro, o ofício do presidente da Funai deu origem ao inquérito contra a APIB e Sonia Guajajara, os mesmos alvos de Augusto Heleno no Twitter. O ministro escreveu que Sonia é “militante do PSOL e ligada ao ator Leonardo Di Caprio [sic], crítico ferrenho do nosso país”.
A coluna apurou que no mesmo mês de setembro passado ocorreu o segundo movimento da Funai contra lideranças indígenas, desta vez contra Almir Narayamoga Suruí, de Cacoal (RO), e duas associações de suruís de Rondônia. O ofício pelo qual Xavier acionou a PF de Brasília é datado de 30 de setembro, 12 dias depois das postagens de Heleno. Uma das páginas da campanha dos suruís foi impressa pela Funai no dia 23 de setembro, cinco dias depois da manifestação do ministro do GSI.
‘É perseguição política’, diz líder Almir Suruí
Em entrevista nesta segunda-feira (3) à coluna, Almir Suruí disse que “o governo está tentando se tornar vítima do movimento indígena”. Ele é um dos principais líderes indígenas do país, com premiações nacionais e internacionais no campo dos direitos humanos.
“Eles que atacaram primeiro o movimento indígena, falaram da questão indígena da maneira preconceituosa. A gente só se defende, agora querem ser vítimas da nossa luta. Nós vamos buscar nosso direito, vamos buscar nosso respeito, e não igual a eles, que estão fazendo jogo sujo. Nos vamos usar nosso direito transparente, vamos defender nosso povo”, disse Almir.
Na tarde desta segunda-feira, Almir foi à delegacia da Polícia Federal de Ji-Paraná (RO) ao lado do advogado dos suruís, Ramires Andrade, e do seu sobrinho, Rubens, para ter acesso às informações do inquérito. O objeto da investigação é uma suposta “difamação” em uma campanha virtual do povo indígena Suruí, de setembro passado, que buscava arrecadar recursos para ajudar os indígenas durante a pandemia do novo coronavírus.
“Minha opinião, o que eu entendi, é que foi uma perseguição política Eles [Funai] querem fazer o medo porque têm uma estratégia do governo pedir investigação para as principais lideranças indígenas no Brasil”, disse Almir.
Também nesta segunda-feira, a defesa jurídica da APIB impetrou um habeas corpus na Justiça Federal de Brasília em favor de Sonia Guajajara para pedir o trancamento do inquérito aberto pela PF de Brasília. A peça foi subscrita por três advogados indígenas: Luiz Henrique Eloy Amado (terena), Samara Carvalho Santos (pataxó) e Maurício Serpa França (terena).
“Percebe-se que a representação que deflagrou o inquérito, embora tenha sido subscrita pelo presidente da Funai, o qual possui formação jurídica e é delegado de Polícia Federal, carece de condições mínimas de procedibilidade. A peça consolida uma série fática que não guarda qualquer relação com os tipos penais invocados, bem como de indícios mínimos capazes de deflagrar uma investigação penal”, escreveram os advogados.
“Causa muita estranheza que a Funai, a agência indigenista oficial do Estado brasileiro, criada justamente para proteger os interesses dos povos indígenas, esteja incomodada com as denúncias que as organizações indígenas vêm fazendo. Aliás, é público e notório, inclusive internacionalmente, que o governo brasileiro não tem tratado de forma séria o enfrentamento à pandemia do Covid-19 e, desde o início, adotou uma postura negacionista. A descontinuidade e fragilidade de uma política pública de saúde eficaz se revelam na troca sistemática de ministros da Saúde durante uma das maiores crises sanitárias da história mundial”, pontuou a petição da APIB. Não houve decisão judicial sobre o pedido até o fechamento deste texto.
Funai diz que não comenta inquérito
Em nota neste sábado (1), a Funai em Brasília disse que não comentaria inquéritos abertos pela PF.
“A Fundação Nacional do Índio (Funai) esclarece que não comenta fatos que estão sob apuração em âmbito policial, o que poderia prejudicar o andamento dos trabalhos.
Cumpre destacar que a Funai, enquanto instituição pública do Estado brasileiro, deve estrita obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade, não compactuando com qualquer postura supostamente ilícita, uma vez que sua função é defender o interesse público.
Por fim, a fundação ressalta que a apuração de fatos supostamente ilícitos reafirma o seu compromisso com a indisponibilidade do interesse público, tendo em vista que todos os cidadãos, indígenas e não indígenas, estão submetidos à observância da lei brasileira.”