Ganhar as ruas até 2022. Por Rosana Pinheiro-Machado

Muitas pessoas que não colocaram o nariz para fora de casa nos últimos meses sentiram que precisavam apoiar o ato contra Bolsonaro para dizer que, apesar de tudo, estamos politicamente vivos

El País

Apesar de muitos esforços de parte da mídia tradicional de minimizar ―ou mesmo esconder― o tamanho e a importância das manifestações deste sábado, o 29M foi um sucesso por muitas razões. Os protestos embaralham a reação dos bolsonaristas e foi possível gerar imagens que mostraram grande adesão, o que é decisivo para produzir encorajamento para que mais pessoas se juntem a futuras manifestações. O 29M não podia ser menor do que o 25M bolsonarista. Seria uma derrota política e um sinal de que estamos perdendo as ruas. Mas isso não ocorreu. Apesar do medo e da cautela dos manifestantes em sair em meio a uma pandemia, o desespero deixou de paralisar e produziu um primeiro grito de ação.

Mais do que qualquer coisa, os atos do dia 29 de maio são uma mensagem de que estamos vivos. Quando escrevo sobre protestos, frequentemente recorro à expressão energia vital. A ideia de que multidões nas ruas são uma forma de vida não é nova. O sociólogo francês Émile Durkheim há mais de um século já descrevia sobre protestos como possibilidades de redirecionamento da vida, o elo reencontro do “eu” com o “coletivo”. Nunca isso fez tanto sentido depois de mais de um ano de isolamento e distanciamento social.

Lendo relatos ou trabalhos acadêmicos sobre manifestações desde 2013, encontrei dezenas de depoimentos de manifestantes que descreviam o ato de se juntar às multidões com frases como “estou vivo!”. Após 14 meses trancados dentro de casa por conta de uma pandemia, definhando mentalmente e vendo o bolsonarismo perverso debochar da nossa cara, o grito estava entalado. É emblemático que os muitos cartazes desse 29M diziam “estamos vivos”, especialmente porque grande parte de quem foi para as ruas foi justamente aquele que se isolou, quem perdeu amigos e familiares sabendo da importância de alguma forma de lockdown. Não foi uma escolha fácil. Muitas pessoas que não colocaram o nariz para fora de casa nos últimos meses sentiram que precisavam apoiar o ato para dizer que, apesar de tudo, estamos politicamente vivos.

O processo político daqui até 2022 é longo, duro e muito menos linear do que se pode imaginar. Ainda que tenhamos previsões otimistas sobre uma possível derrota de Bolsonaro nas eleições, a vitória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não está dada. A grande rejeição ao Bolsonaro demonstrada nas últimas pesquisas pode se reverter facilmente ou, mesmo com rejeição, se transformar em voto contra o PT. A essa altura, sabemos que a repulsa à figura do presidente em nada nos garante alguma estabilidade política. Existem muitos setores, populares e de elites, que estão dispostos a sacrificar valores e continuar votando no repugnante por motivos que estão além de nossa racionalidade democrática.

O que sabemos é que os bolsonaristas possuem hegemonia na disputa das redes e virão com seus métodos mais sujos no ano eleitoral. Também sabemos que setores da mídia tradicional, na hora H, se encolhem desde que o pacto Paulo Guedes permaneça. Portanto, não existe vitória garantida para ninguém.

Há muito a se fazer até eleições de 2022. Seja para quem defende um possível impeachment seja para quem entende que é preciso chegar até 2022, as ruas são um dos principais remédios para mostrar insatisfação popular, intimidar o bolsonarismo e causar ruptura da normalidade. Mas as ruas também são importantes para que as pessoas se reencontrem, rompam com a dor do isolamento político e possam reaprender a estar juntas novamente.

Por fim, entendo que as mulheres possuem um papel central nesse processo. Não como um esporádico #Elenão antes das eleições, mas como um continuum de pequenas intervenções e grandes marchas. Precisamos olhar com atenção e humildade para as nossas vizinhas latino-americanas e sua capacidade de organização transversal com todos os setores do campo progressista e das esquerdas de seus países. São as mulheres que conseguem dialogar com diversos setores políticos no Chile e na Argentina.

Fora Bolsonaro tem grande potencial de crescer se organizado pelas mulheres. É preciso deixar que a maré das latino-americanas encontre o seu lugar no Brasil. Haverá resistência das lideranças do próprio campo de esquerda, daqueles que não conseguem ceder protagonismo a elas. Mas se a maré seguir seu curso natural, a continuidade do mobilização nas ruas pode ser uma luta encabeçada pelas muitas e diversas brasileiras.

Rosana Pinheiro-Machado é antropóloga e professora de desenvolvimento internacional da Universidade de Bath, no Reino Unido. É autora de ‘Amanhã vai ser maior’ (Planeta).

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