Durante estudo com medicamento defendido por Bolsonaro em pacientes com covid no Amazonas, 200 participantes morreram. Investigação da Comissão Nacional de Ética e Pesquisa apontou desrespeito de protocolos científicos.
Na DW
Um estudo realizado no Amazonas para testar o uso da substância proxalutamida em pacientes com covid-19, durante o qual 200 pessoas morreram, pode ser um dos casos mais graves de violação ética em pesquisas e de desrespeito aos direitos humanos dos participantes na história da América Latina, afirmou a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura).
A pesquisa já estava no alvo da Comissão Nacional de Ética e Pesquisa (Conep), que no início de setembro enviou um relatório à Procuradoria-Geral da República pedindo investigação sobre as mortes dos participantes do estudo. A apuração do Ministério Público corre sob sigilo.
A proxalutamida é um bloqueador de hormônios masculinos que está em desenvolvimento pela farmacêutica chinesa Kintour, e seu uso vinha sendo pesquisado para tratar câncer de mama e de próstata. Apesar de não haver qualquer evidência de que a substância fosse eficaz contra a covid-19, o presidente Jair Bolsonaro passou a defender seu uso contra a doença em meados deste ano, assim como já havia feito com medicamentos do chamado “kit covid”, como a cloroquina e a ivermectina, também sem eficácia e no alvo da CPI da Pandemia.
No último sábado (09/11), a Rede Latino-americana e Caribenha de Bioética (Redbioética) da Unesco divulgou uma declaração sobre a “possível infração ética gravíssima no Brasil”. “Consideramos que esse poderia ser um dos episódios mais graves e sérios de infração à ética de pesquisas e de violação aos direitos humanos dos participantes na história da América Latina, que envolve a morte suspeita de 200 indivíduos”, afirmou a rede de pesquisadores.
Quais são as suspeitas
O relatório enviado pela Conep à Procuradoria-Geral da República em setembro indica diversas suspeitas de irregularidades na condução do estudo, iniciado em fevereiro e realizado sob a liderança do endocrinologista Flávio Cadegiani.
Uma delas é o número de indivíduos que participaram da pesquisa. A Conep havia autorizado que 294 voluntários em Brasília fizessem parte do estudo, mas houve ampliação da amostra, sem permissão do órgão, para 645 participantes, e alteração do local para o Amazonas.
Além disso, segundo a Conep, a pesquisa não realizou uma análise crítica da causa da morte de 200 participantes, o que torna “inverossímil descartar a possibilidade de morte provocada por toxicidade medicamentosa ou por procedimentos da pesquisa”.
O órgão observa que a causa das mortes apontada foi insuficiência renal e hepática, o que seria esperado em pacientes com manifestação severa da covid-19 internados em UTI. A pesquisa com a proxalutamida, porém, havia sido autorizada somente em pacientes com quadros leves e moderados da doença.
No início de setembro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) suspendeu o uso da proxalutamida em pesquisas em todo o país.
A Conep também apontou que o comitê independente de monitoramento da pesquisa era liderado por uma pesquisadora que pertence ao quadro da empresa americana Applied Biology, que segundo o órgão foi a patrocinadora do estudo, o que “configura patente e inequívoco conflito de interesses” e teria sido omitido no pedido de autorização para a realização do estudo.
Unesco pede investigação
O comunicado da rede de pesquisadores da Unesco diz ser “do maior interesse” o aprofundamento da investigação, para fortalecer o sistema de revisão ética de pesquisas no Brasil e apoiar os participantes do estudo que sobreviveram e os familiares daqueles que morreram durante os testes.
“Nenhuma emergência sanitária, nem contexto político ou econômico, justifica eventos como os relatados que teriam ocorrido no Brasil”, afirmou a Unesco, que aponta possível violação da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos de 2005 e da Declaração de Helsinki.
“É ética e legalmente reprovável, como se detalha no ofício da Conep, que pesquisadores ocultem e alterem indevidamente informação sobre os centros de pesquisa, participantes, número de voluntários e critérios de inclusão, paciente falecidos, entre outros”, disse a rede.
“É urgente que, se forem comprovadas as irregularidades, sejam investigados e responsabilizados não somente eticamente, mas também legalmente todos os atores, incluindo equipes de pesquisa, instituições responsáveis e patrocinadores, nacionais e estrangeiros”, pediram os pesquisadores da Unesco.
bl/lf (ots)
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Cruzes em cemitério no Amazonas. Imagem: Alex Pazuello /Semcom