Guerra às drogas: ideias para desembrutecer a Justiça

Juiz aponta: Brasil tornou-se a versão mais mortal da “guerra às drogas” em todo mundo. Pune só os ninguéns do tráfico, superlotando prisões. Mitigar problema exige justiça interdisciplinar, sintonizada à história, sociologia e medicina

por Lilian Cury, em Outras Palavras

Imagine um “dia D contra as drogas” cinematográfico, com direito a uma megaoperação nacional simultânea em todas as capitais, sem precedentes. São utilizados tanques, fuzis, helicópteros e todo o aparato bélico disponível. Milhares de presos. Toneladas de tóxicos apreendidos. A situação retornaria ao status quo? “Sim e rapidamente”. A opinião nesse cenário hipotético, mas que ilustra uma questão de discussão necessária, é do juiz Felipe Morais Barbosa. Titular há dois anos da comarca de Águas Lindas de Goiás, uma das cidades com maior índice de criminalidade do estado, ele questiona, justamente, o esforço imensurável, a necessidade de recursos infinitos empregados na guerra às drogas e aponta caminhos que a Justiça pode seguir, em contrapartida.

Na última semana, o magistrado decidiu pela liberdade provisória de um réu primário preso em flagrante com pequena quantidade de maconha e crack, suspeito de traficar drogas. Em audiência de custódia, a despeito de pedido do órgão ministerial – que insistiu na prisão preventiva – Felipe Morais Barbosa questionou a política de encarceramento, a superlotação dos presídios com pequenos traficantes, os chamados vapores, e usuários/traficantes, e esclareceu que a manutenção da prisão não salvaguardaria a ordem pública.

Despenalizar ou descriminalizar uso ou posse de drogas não cabe, contudo, ao Judiciário, segundo faz questão de ressaltar o titular da 2ª Vara Criminal da comarca, situada no entorno do Distrito Federal. “Como juiz, não tenho a competência de desconsiderar o que é crime – isso seria, apenas, um ativismo judicial ruim. Por outro lado, uma análise possível e necessária é, exatamente, essa: verificar a necessidade ou não da manutenção da prisão, enquanto salvaguarda da ordem pública diante do contexto da mercância ilícita nacional e local. A desaceleração da prisão provisória já surtiria efeitos, ao menos, na superlotação carcerária”.

Para a decisão, o magistrado, que é também professor de Direito Penal, abordou vários vieses históricos, sociais e, até mesmo, biológicos, numa visão holística, abandonando preconceitos e visões preconcebidas sobre drogas. “Mostra-se recomendável, para não dizer obrigatório, que o magistrado analise as circunstâncias concretas que envolvem a política de combate às drogas, popularmente conhecida como ‘guerra às drogas’. A interdisciplinariedade, em especial, a antropologia, a sociologia, as ciências políticas, a criminologia, a psicologia e a neurociência, fornecem elementos importantes para a tomada de decisão”.

Barbosa explica que não significa, necessariamente, ter um olhar complacente com traficantes ou usuários. “Mas entender que a grande maioria dos presos em flagrante – 99% dos casos das audiências de custódia – não são dos chefes do tráfico, armados com fuzis. São aqueles pequenos ‘ninguéns’”, diz o magistrado, que recorre ao poema de mesmo nome de Eduardo Galeano. “Os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos”, recita. 

Banalidade

A história do preso em questão é mais uma entre várias, cheias de semelhanças, que não são meras coincidências: abordagem policial “eventual” em rua de bairro periférico, devido à “atitude suspeita”, durante patrulhamento de rotina. Em revista ao suspeito, os agentes da corporação militar constataram 20 pedras de crack e 10 porções de maconha. 

Sobre essa trivialidade, o magistrado teceu críticas à repressão policial rotineira: “essa situação habitual não é uma peculiaridade brasileira, ao que pese ganhar contornos específicos em uma sociedade com desigualdade abissal, oligárquica, estruturalmente racista e com órgãos de segurança pública com doutrinação eminentemente militar. O deslocamento do aparato repressivo estatal (sem o viés de polícia-comunitária) para centros de pobreza, com o objetivo de combater às drogas, é prática observada em países neoliberais desenvolvidos, desde a década de 80. O movimento ocorre à revelia de outras políticas públicas”, lamenta.

“É preciso ressaltar que o policial não é culpado por essa situação. Neste caso, ele é somente uma engrenagem de uma máquina estatal disfuncional. No país em que mais se matam policiais, eles também são vítimas da guerra às drogas”, enfatiza.

Segregação

Entender os alicerces da guerra antidrogas é fundamental para começar a aceitar que não existe vitória possível com o atual modelo repressivo, afinal, os números mostram que o Brasil enxuga gelo, ano após ano, na visão do magistrado. Enquanto cresce exponencialmente o número de presos por tráfico, as plantações aumentam, a demanda aumenta, o comércio aumenta. Além disso, o desenvolvimento de drogas sintéticas dificulta a repressão, com porções diminutas e maior potencial psicoativo.

Apesar da diminuição da população carcerária durante a pandemia, o Brasil se manteve na mesma posição do ranking de países que mais prendem no mundo, com mais de 680 mil pessoas encarceradas atualmente. O número de vagas, no entanto, é para abrigar 440.530 presos, o que representa um déficit superior a 240 mil. Criar mais cárceres está longe de ser a solução, contudo.  

Prende-se, majoritariamente, negros e pobres no Brasil: dados do Ministério da Justiça revelam que 61,7% dos detentos são pretos ou pardos e que 75% cursaram, apenas, até o ensino fundamental – um indicador de baixa renda.

“A decisão de o que se proibir sempre esteve vinculada a uma questão de controle social. O paradoxo é que não funciona enquanto política de eliminação das drogas, mas surte efeitos para encarcerar a população indesejada”, conta Barbosa.

Ele explica melhor: o uso de entorpecentes sempre fez parte da história da humanidade, enquanto a repressão ao uso dessas substâncias surgiu para segregar minorias. Nos Estados Unidos, na década de 1930, o uso da maconha passou a ser reprimido como forma de criminalizar a população negra, da mesma forma que ocorreu no Brasil. A maconha, ou “pito de pango” era vinculada a cultura e religiões de matrizes africanas.

Legislação severa e punitiva e força policial repressora não são, para ele, soluções hábeis – tanto que países desenvolvidos já vem abandonando esse tipo de prática, e utilizando uma nova abordagem a exemplo do Canadá, localidades nos Estados Unidos, Suíça, Portugal e mesmo o México.

O juiz elucida que, quando um produto popular é criminalizado, o item, simplesmente, não desaparece. Em vez disso, determinados grupos ou pessoas passam a vendê-lo e distribuí-lo. “A proibição gera uma rede de contatos escusos, com particulares e agentes do Estado. É preciso levar o produto para dentro do país-estado-município proibicionista. É preciso vencer barreiras. O produto inflaciona, ganha componentes diferentes, a qualidade é alterada. A mercadoria fica vulnerável em todas as etapas da comercialização. É necessário defendê-la usando de violência. Mas ninguém quer tiroteios todos os dias, então é preciso construir uma reputação, ser temível, ser impiedoso. Isso ocorre de uma única forma: intensifica-se a violência. O próximo tende a ser mais sanguinário que o antecessor. Essa é a origem de Pablo Escobar, El Chapo, dos Zetas, dentre outros. Essa a política que oxigena Comandos Vermelhos e PCCs Brasil afora”. 

Prende-se um, surge outro no mesmo posto. A descartabilidade da figura do traficante é relatada pelo jornalista Misha Glenny, no livro O Dono do Morro, que tem a premissa de narrar a ascensão e queda do traficante Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem da Rocinha, mas vai além ao mostrar o histórico do tráfico, do crime organizado e das milícias no Brasil. São sucessões praticamente imediatas, alimentadas pela vulnerabilidade a qual aquele público está exposto. Para o autor, o negócio das drogas ocupa um vazio deixado pelo Estado nas comunidades.

Não há como varrer para debaixo do tapete a verdade de que o negócio é lucrativo para os grandes traficantes: segundo um estudo britânico apontado pelo jornalista, no máximo 20% do volume do tráfico é apreendido. 

Saúde

A biblioteca de Barbosa é extensa, dentre os títulos jurídicos do juiz, muitas obras ajudam a fomentar a tal interdisciplinaridade que o magistrado defende ser tão necessária para a tomada de decisões. Dois volumes se destacam na estante: Um preço muito alto e Drogas para adultos, ambos do neurocientista Carl Hart, pesquisador norte-americano que luta para desmistificar a questão atinente à dependência química. 

“O cerne da dependência não está no que se fuma, toma ou injeta, está na dor que se sente. Diuturnamente replicamos um sistema que acredita curar dependentes aumentando a dor que sentem. Se as consequências negativas levassem as pessoas a pararem de usar drogas, não existiriam mais adictos”, explica o magistrado com base em suas leituras.

A prisão como política de desintoxicação forçada é, inclusive, rechaçada pelo juiz. “Poderíamos interpretar que a retirada de um dependente-traficante das ruas otimizaria a segurança pública porque, ao menos, surtiria efeitos em sua relação de proximidade com as drogas. Uma espécie de tratamento de desintoxicação forçado. Ainda que essa abstração fosse aceita, as mazelas da prisão não são terapêuticas. Os índices de reincidência são notórios”.

O magistrado complementa que essa “teoria farmacêutica da dependência” vem sendo desautorizada ao longo dos anos por novas análises sobre a relação humana com as drogas. “Nada é viciante em si, é sempre uma combinação de uma substância ou um comportamento potencialmente viciante e a suscetibilidade individual”.

A questão é muito mais complexa do que a maneira com que a enxergamos, conforme defende o magistrado. “Nos conforta pensar que temores profundos de desigualdade e problemas sociais ocorrem em virtude de um punhado de pó, um baseado, ou uma pedra de crack. As favelas são antros de traficantes. Acabando com as drogas, os problemas acabam”. 

Para os céticos, ele ilustra a questão com uma história verídica. Em vários momentos da década de 1970, a polícia canadense conseguiu impedir a entrada de heroína em Vancouver. A suposta heroína vendida nas ruas era, nada mais, que um placebo químico. Pela lógica aristotélica, os dependentes deveriam passar por abstinência e depois de um período ficarem livres da dependência física. Observou-se, contudo, que os usuários permaneceram do mesmo jeito: desesperados, tentando de todas as formas arranjar dinheiro, para comprar o composto. Não agonizavam em abstinência. Acreditavam que adquiriam heroína fraca e compensavam bebendo mais álcool e tomando Valium.

Apesar de fictícia, a narrativa apresentada na série The Wire (HBO,2002-2008), serve como um microcosmo para entender, e desmitificar nossa política de enfrentamento às drogas. Com um diferencial ainda mais pesado, que Barbosa faz questão de salientar: “o Brasil é a versão per capita mais mortal da ‘guerra às drogas’ em todo mundo. E a utilização de um blindado equipado com torre giratória de 360 graus para disparos ininterruptos de 762, com uma caveira pintada em seu dorso, parece não solucionar o problema. Morre o traficante, morre o policial, morre o inocente. Permanece o tráfico, permanece o usuário, permanece o dependente”. 

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