Um genocídio com cor, endereço e escala global. Por Jessica Santos

Na newsletter da Ponte

Não tive coragem de ver as imagens do assassinato do imigrante congolês Moïse Mugenyi Kabagambe. Para além do meu trabalho e das minhas revoltas pessoais, busco evitar ler notícias sobre os corpos pretos – como o meu – os quais a sociedade e o Estado vem tombando com cada vez mais frequência e crueldade. Afinal, no Brasil da dita cordialidade, toda semana, às vezes, todo santo dia, sou atravessada por jovens pretos presos reconhecidos de forma irregular, por um vizinho preto que, confundido com um ladrão, é morto, por uma travesti preta agredida por algum homem, por uma mãe que furta para dar alimento aos filhos, por um pai preso injustamente que não viu o filho nascer, por um irmão que tem um trabalho precarizado onde precisa competir com outros para poder contribuir com a renda em casa, por operações policiais que terminam com crianças, grávidas e moradores de comunidade mortos. Isto é uma constante cruel e que uma parte dos brasileiros despreza e minimiza e a outra fica inerte em muito discurso e pouca ação.

No meio, há mais de 300 anos, estamos nós, pretos em todos os cantos do planeta, sequestrados, espalhados, massacrados e resistentes, fodidos e resilientes. Seguimos permanecendo como uma árvore ferida por inúmeras inclemências do tempo e do homem, mas com suas raízes fincadas, seu tronco robusto e galhos sempre a se multiplicar. A erguer-se de novo no Brasil, e de novo no Congo e de novo na Nigéria. Ainda de forma muito ordeira como cabras rebeldes que ainda não causam medo.

Moïse saiu de um país marcado pela crueldade de um homem branco, o rei Leopoldo II da Bélgica, que tinha o Congo como sua propriedade pessoal há não muito tempo e ali fez toda sorte de crueldade com etnias que estavam ali há milênios. Para encher seus bolsos, estima-se que 15 milhões de pessoas foram mortas durante o reinado de Leopoldo e outras tantas mutiladas, estupradas, escravizadas, expulsas de suas terras, sequestradas. Leopoldo estuprou o Congo até não poder mais, deixou a desordem, a guerra e a crueldade. Foi de um território de guerra, assassinatos e golpes militares financiados pela Bélgica que Moïse saiu para vir para o pacífico Brasil. Mas este país onde vivemos está em guerra há séculos. Guerra contra corpos pretos, indígenas, mulheres, transexuais, lésbicas, gays, migrantes e imigrantes. É uma guerra menos silenciosa do que imaginamos, que tomba tantos corpos quanto qualquer conflito bélico da velha Europa ou os promovidos pelo Tio Sam ao disseminar seus valores de democracia e civilidades em locais economicamente estratégicos. 

O Estado – sob a regência deste e de outros governos também – está em constante guerra contra pobres, pretos, periféricos. Sob a bandeira da tal guerra às drogas, seu braço armado sai pelas ruas, suas viaturas são tumbeiros para corpos pretos. A sociedade massacra de forma constante esta mesma gente, a minha gente. Afinal, é possível matar um homem preto trabalhador em público com 30 pauladas – algumas enquanto estava imobilizado e sem chance de defesa – por conta de uma dívida de R$200 – a qual o patrão nega ter existido.

Me perdoem o pessimismo, mas, salve o trabalho incansável que fazemos na Ponte pelo qual acompanhamos os casos por meses e anos se necessário, o nome de Moïse sairá da grande imprensa e das hashtags do Twitter em alguns dias como o do Beto, da Ágata, o do João Pedro, o da Luana saíram. Quem não é alvo da guerra logo irá esquecer a revolta do momento. Artistas engajados seguirão suas vidas. Enquanto 56% dos brasileiros vão seguir na linha de tiro, esperando para enterrar os próximos corpos como tem sido há 300 anos. A vida seguirá até o próximo crime gravado e divulgado reascender a revolta. De novo, de novo e de novo. Até que algo pegue fogo, até que os cordeiros virem leões.

Em memória de Moïse, Durval, Luana, Agatha, João Pedro, Amarildo, Cláudia, Kathlen, Lucas, Alexandre, Fernando, Beto, Wenny, Luan, Lucas, Gabriel e todos os irmãos cujas mortes causaram revolta – ou não.

Moïse Kabagambe, o jovem congolês assassinado no Rio de Janeiro no dia 24 de janeiro. Foto: Reprodução Facebook

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