Moïse: arqueologia de um linchamento

Há algo de banal no crime que completa um mês. Ele expressa, além da milícia, uma brutalidade típica do Brasil: a que descarregamos uns contra os outros, por incapazes de fazer, da nossa raiva, impulso para mudar uma sociedade hedionda

Por Gustavo Assano, em Outras Palavras

So quietly stole upon their prey
And dragged him out to death, so without flaw
Their black design, that they to whom the law
Gave him in keeping, in the broad bright day,
Were not aware when he was snatched away,
And when the people, with a shrinking awe,
The horror of that mangled body saw,
“By unknown hands!” was all that they could say.
Leslie Pinckney Hill (1921)

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E como culparam Jesus
E como xingaram Jesus
E como bateram em Jesus

Vila do Calvário, campo do Cruzeiro
Foi tanta gente lá matar Jesus.
Douglas Germano (2016)

Dada a inegável importância do acontecimento, o uso do termo “linchamento” para descrever o assassinato covarde de Moïse Kabagambe não pode ser empregado sem reflexão e clareza descritiva, pois corre-se o risco de reduzi-lo a mero jargão. Há uma especificidade particular desta modalidade de ato violento coletivo, uma singularidade brasileira em seu sentido de perpetuação e em sua forma de reprodução enquanto fenômeno social próprio da vida cultural do país – ou seja, que diz algo sobre o que somos enquanto sociedade, enquanto povo.

Traz muito o que pensar, por exemplo, levar em conta a profissão dos primeiros três detidos identificados pelas filmagens do ocorrido: Aleson Fonseca e Brendon da Silva eram garçons em quiosques vizinhos ao Tropicália na Avenida Lúcio Costa e Fábio da Silva era vendedor de caipirinhas na Barra da Tijuca, todos a trabalhar quando participaram do espancamento. Muitas reportagens e matérias televisivas enfatizam a ficha criminal dos envolvidos, como uma explicação de sociologia de botequim, sem apuração ou elaboração analítica sobre o que este passado revela sobre a ação mórbida cometida. O procedimento jornalístico apenas perpetua o velho punitivismo sensacionalista naturalizado na mídia brasileira, cioso por separar “bandidos” de “trabalhadores” para colocar os maus pobres no devido lugar e preservar uma moral dos bons – a mesma moral que acobertou o estrangulamento e golpes de taco de beisebol contra Moïse quando um dos espancadores explicou para uma testemunha que se tratava de uma sova contra um assaltante.

Alguns se esforçam por estabelecer elos entre os donos dos quiosques e o domínio territorial de milícias, mas nada conclusivo neste sentido se comprovou até o momento, apenas fortes suspeitas foram aventadas. Mas também a forma como esta associação é levantada traz o que se pensar, pois é motivada pela intenção de tomar o espancamento como atrocidade anômala, uma exceção que produz um contraste chocante. Segundo este raciocínio, tamanha fúria e despudor para a crueldade só podem estar associados à porteira aberta pelo bolsonarismo e forças correlatas. O fato é recente, novas investigações ainda podem revelar muita coisa, mas esta forma de pensar corre o risco de distorcer a moldura do quadro que tenta expor, pois a oposição entre “normal” e “chocante” acaba por dizer mais sobre aquele que observa do que sobre a dinâmica social em que o ato abominável está inscrito. Perde-se de vista a compreensão da possibilidade de o próprio “normal” ser chocante, o que torna o ato de chocar-se objeto de necessária reflexão sem que isto signifique desqualificar sua razão de ser.

A ninguém parece ter sido digno de ponderação detida o fato de que o espancamento não foi cometido por peritos da “arte” de infligir danos físicos, tal como soldados, policiais ou seguranças privados. A imobilização com golpe de jiu-jitsu, os socos e pontapés no tórax e cabeça de Moïse já indefeso e sem apresentar qualquer vestígio de ameaça, as pauladas com o taco de beisebol vertidas contra o pescoço do jovem desamparado, os membros atados e o abandono do espancado enquanto afogava-se no próprio sangue que invadiu os pulmões mutilados por repetidas vergastadas que duraram mais de 6 minutos ininterruptos, todos estes atos terrivelmente familiares da longa história do disciplinamento de corpos negros no Brasil foram cometidos por trabalhadores precarizados que viviam de diárias servindo o público consumidor, a massa que move parte substanciosa da economia do tão prezado turismo carioca. Cada um deles vivia da mesma labuta que levou Moïse a cobrar pelo suor vertido e não pago, luta diária por dignidade que selou seu destino violento.

Em suma, os assassinos e a vítima eram próximos de categoria, companheiros de classe, colegas de sobrevivência na viração. Mas esta condição não é forte o suficiente para obstaculizar a desumanização necessária para despender o esforço e energia impressionantes para destruir um corpo humano com as próprias mãos, sem o uso de armas de fogo. As perguntas não são retóricas: o que significa identificar esta atrocidade específica como linchamento e o que o uso do termo revela sobre o ato que descreve? O que se deseja mobilizar ao identificar o ato a uma tradição de violências coletivas no Brasil e no mundo? O que podemos aprender com o ocorrido atroz para além do que nele há de chocante?

Boa parte dos estudos acumulados no Brasil dedicados a compreender a lógica do linchamento como fenômeno social específico1 cedo ou tarde tecem considerações sobre a origem estadunidense do termo. Sendo este um ponto de consenso entre as diferentes formas de interpretar este ato coletivo de nuances que produzem tanto assombro como fascínio,2 faz sentido começar uma reflexão por esse lugar-comum etimológico.

1. A Lei de Lynch

Trata-se de um anglicismo derivado da palavra “lynch” e sua circulação é desencadeada entre falantes brasileiros durante a última quadra do século XIX, bem no momento de maior efervescência do debate abolicionista. É indispensável mencionar que a datação da origem de um termo não serve como certidão de nascimento da ação que descreve – pelo menos desde o século XVI há relatos sobre linchamentos em território colonial português no Novo Mundo. O historiador americano Michael J. Pfeiffer demarca sua posição sobre o debate situando o ato de linchar como um fenômeno de “cultura global”, disseminado por todos os continentes, emergido em períodos históricos diversos.3 No entanto, é muito reveladora a origem norte-americana do termo, pois algo do seu sentido originário sobreviveu à passagem dos séculos.

No condado de Bedford, Virginia, trabalhava o coronel Charles Lynch como juiz de tribunais clandestinos nos anos mais violentos da guerra pela Revolução Americana (1775-1783), operavam de maneira extraoficial, na mais aberrante ilegalidade. O militar reivindicava usar tal poder extralegal para punir crimes e conter atividades de sujeitos leais aos interesses britânicos. Execuções eram cometidas, mas a principal punição clandestina consistia em castigos corporais severos, cuja perícia na comunidade de proprietários possuía tradição muito bem consolidada com os já 150 anos de legalidade da escravidão, e que perduraria ainda por mais de 80 anos.

Lynch era tido como um cidadão exemplar de Bedford. Torna-se respeitado entre seus pares ao ponto de servir como membro da Câmara dos Delegados durante a guerra até 1778, quando foi nomeado coronel da milícia de Virginia. Era uma de suas principais atribuições reprimir insurreições entre forças apoiadoras do campo Tory. Segundo o historiador liberal Manfred Berg, em seu estudo Popular Justice: A History of Lynching in America (Chicago, Ivan R. Dee Publisher, 2011), era conhecido o rigor severo e violento com que os inimigos da milícia patriota eram tratados, lançando mão de enforcamentos exemplares, execuções sumárias e açoitamentos públicos.

Por volta de 1780, os edifícios que abrigavam instituições jurídicas e as forças de segurança do estado se desfizeram com o caos promovido pela guerra. Surge um clamor entre moradores do condado pela contenção de agitações políticas promovidas por loyalists e ações de criminosos comuns, como ladrões de cavalo e pequenos bandidos de toda sorte. Um discurso de segurança pública sob ameaça, cuja salvação era reivindicada por comunidades locais de comerciantes e proprietários diversos apavorados, se consolidou. Assim, Charles Lynch reúne seus vizinhos patriotas, todos determinados a caçar bandidos e traidores da causa nacionalista. Se não havia mais instituições para manter a força da lei, o uso da força pela comunidade asseguraria a salvaguarda da justiça e da segurança pública. Como a corte de Williamsburg, antiga capital da Colônia de Virgínia, não era mais funcional, a confraria de vizinhos formou seus próprios tribunais. Os prisioneiros considerados culpados, entre outras sentenças, eram punidos com 39 chibatadas desferidas no gramado da fachada da casa de Lynch e forçados a gritar “Liberty forever!” (“Liberdade para sempre!”). Caso se recusassem, eram torturados até que mudassem de ideia.

O governador Thomas Jefferson, um dos mitológicos Founding Fathers (“Pais Fundadores”) da nova nação emergida da guerra, felicitou os feitos de Lynch por suas “medidas vigorosas e decisivas”, grandiosas ações de patriotismo cometidas numa situação de grande perigo e urgência que atentavam contra a revolução. Com o fim da guerra e a transferência dos prisioneiros de tribunais clandestinos para o sistema legal recém-consolidado, muitas das vítimas de Lynch processaram o coronel, que por sua vez apelou à Corte Suprema. Ao invés de elogiar as ações de sua comitiva de punições clandestinas, os peritos legais viram-se obrigados a descrever as punições de Lynch como “não estritamente justificáveis pela lei, apesar de justificáveis dada a iminência de perigo”. Assim, a ambiguidade sobre a recepção da “Lei de Lynch”, como as práticas de justiça extralegal passaram a ser chamadas informalmente nos anos subsequentes, ganha contornos oficiais, condenada pela linguagem técnica do processualismo emergente, mas prezada pelo marco inaugural da situação de exceção criado pela guerra revolucionária.

Lynch ainda serviria como Senador pelo estado da Virginia entre 1784 e 1789, e morreria sete anos depois como cidadão respeitadíssimo. Assim, entre tensões de legitimidade jurídica e política, a violência extralegal é incorporada como parte fundamental do nascimento da democracia americana. Será então chamada de “Lynch’s Law” uma ideia de justiça revolucionária fora do período de revolução, e “lynching” passa a ser o termo utilizado para descrever a prática de cidadãos executando justiça com as próprias mãos onde o estado e as instituições fossem tidos como falhos, lógica esta que comporá o imaginário de exercício de poder comunitário entre comunidades locais estadunidenses até os dias atuais. Um historiador liberal como Berg, por exemplo, coloca a mimetização das estruturas jurídicas oficiais como fator diferenciador entre a “justiça popular” exercida por Lynch e a carnificina sangrenta e racista disseminada entre os estados do Sul ao longo do período pós-Guerra de Secessão até o fim do vigor das leis de Jim Crow, num esforço retórico de salvar os atos de Charles Lynch de serem entendidos como práticas bárbaras. Já para o historiador Philip Dray, em seu estudo monumental At the Hands of Persons Unknown: The Lynching of Black America (New York, Modern Library, 2003), o vínculo genealógico entre as duas formas de tradição punitivista não pode ser negado. A longa tradição de linchamentos nos EUA obriga Dray a não titubear para caracterizar o fenômeno social estudado: trata-se de um “holocausto”, uma mancha gigantesca incrustada em todos os momentos de formação da alma americana. Das folhas à raiz, como descreve os versos da canção de Abel Meeropol cantada por Billie Holliday, a árvore que dá estranhos frutos está encharcada de sangue.

Uma série de fatores condicionaram a perpetuação da Lei de Lynch em comunidades locais diversas ao longo do século XIX nos EUA, pois os principais elementos do processo de modernização da democracia americana representavam ameaças para a “cultura tradicional” de pequenas comunidades. O intenso processo de industrialização e o massivo ciclo migratório desencadeado, intensificado na década de 1830, as tensões sobre a manutenção da escravidão até a Guerra Civil e cada passo da ampliação da população votante colocava em polvorosa o nativismo e fermentava o discurso suprematista que se aprimoraria ao longo deste século tão decisivo para a sedimentação da singularidade do racismo estadunidense. Mas no período anterior à Guerra de Secessão, ainda segundo Berg e Dray, a cultura de linchamento deste país talvez não se faça tão decisiva como na dinâmica social estabelecida em espaços de fronteira na fase de expansão para o Oeste e a formação dos estados para além do Rio Mississippi. Despontava então o fenômeno da “Frontier Justice” (“Justiça de Fronteira”).

Principalmente em estados de expansão mineradora e de cultura de rancheiros, a prática de linchamentos cumpria função decisiva, contexto em que, de mês para outro, pequenos vilarejos eram erigidos e municipalidades clandestinas se formavam aos poucos, aglomerações urbanas em que tribunais, comarcas, representações burocráticas básicas da nação recém-formada ainda não haviam se estabelecido. Ali, a cultura de vigilantismo e de linchamento foram pilares fundacionais de segurança comunitária de “desbravadores” em estados como Colorado, Arizona e Califórnia. Do confronto sangrento de luta cruenta de todos contra todos em ajuntamentos de indígenas, trabalhadores em construções de ferrovias, mineiros, imigrantes chineses, criadores de gado, especuladores de terra e centenas de milhares de famílias fazendeiras, ali se forjaram os procedimentos penais que compensariam a ausência quase completa de instituições responsáveis por reforçar a lei.

Desejar a harmonia social, a paz entre vizinhos onde todos são assassinos em potencial precisava transformar o ato violento em performance do justo agindo contra o injusto. A ausência de lei, assim, forjava seu contrário pela fricção interna produzida pela desordem ética que moldava a consciência sobre como proceder numa ordem social sem coesão prefigurada. A lógica do linchamento passou a tornar-se crucial para a concepção do senso de comunidade destas cidadelas. Queimar vivo, espancar até a morte ou desmembrar o preto, o indígena, o chinês, o ladrão, o assassino, o pedófilo, o sodomita, que seja, o diferente impuro da vez, solidificava, mesmo na terra da perdição, na terra sem lei, a identidade dos homens bons. Assim firmava-se a autoimagem da massa que pune como detentora de virtude, certeza firmada ao seviciar o espancado monstruoso com um espancamento monstruoso, construindo o crime e o pecador no ato da punição expiatória, tudo baseado no vínculo de dependência entre pecado e virtude, e o bem atingido coletivamente como compensação da identidade autoadulatória da massa linchadora.

De tal modo, do terror, da mutilação infligida, surge a comunidade; o corpo carbonizado do desvirtuado funda a civilidade, a terra regida por lei. O mal é derrotado e a coletividade conquista seu ganho de causa e ganha, em virtude de sua objetividade performática, sua aparência de bem. O direito, neste sentido, sempre preserva o terror, pois não pode deixar de recorrer a ele como auxílio na preservação da regulação da igualdade entre os homens. Há uma exemplaridade pedagógica na violência coletiva, pois o sofrimento infligido na performance é também lição para aqueles que assistem ao espetáculo punitivo e se identificam com o linchado, pois agora sabem o que acontecerá caso não se coloquem no lugar. As normas jurídicas excluem o que não é coberto por elas, tal qual a massa que identifica o abominável que deve ser extirpado. O que se subtrai à sua esfera fechada deve perecer, e ao perecer, confirma a existência do virtuoso e da virtude da ordem instaurada.

Onde a virtude é concebida pelo dever de se cumprir crimes de sangue como defesa da ordem, a luta pela paz social, a harmonia entre os vizinhos, é uma luta pela virtude de assassinos, esforço de bárbaros em serem chamados de civilizados. No entanto, nessa terra, a preservação da ordem social como dever ético é a solidariedade construída pelo desejo de punição, em que todos lincham, assassinam um pouco para não serem chamados de assassinos, clamam por um pouco de maldade para serem chamados de bons. Ou seja, objetivamente, não há escapatória, ninguém pode sair por cima de fato, daí um pacto de igualdade fortalecido pelo anonimato da atrocidade cometida em conjunto.

2. O linchamento à brasileira

O linchamento brasileiro, por sua vez, é algo completamente diferente, mas de sentidos correlatos. Ao contrário do acúmulo do debate estadunidense, no Brasil não são historiadores que vêm desvendando a complexidade do fenômeno dos linchamentos, pois foi uma tarefa mantida por sociólogos e antropólogos. Aqui é impossível contornar o estudo clássico de José de Souza Martins, Linchamentos: a justiça popular no Brasil (1996), a mais impressionante tipologia desta forma de violência coletiva estudada ainda de forma incipiente se comparada com o acúmulo de estudos nos EUA. Uma de suas primeiras constatações é a ausência de um quadro amplo de referências que permita situar e explicar linchamentos do período recente (da década de 1980 para o fim dos anos 1990). Um dos caminhos para elaborar sua tipologia é justamente a comparação com os linchamentos estadunidenses.

Como pudemos ver, nos EUA há um caráter pedagógico na prática do linchamento. Nas palavras de Martins, “uma tentativa de impor valores e normas de conduta”. No caso brasileiro, tal intenção não se manifesta de forma clara. Tanto na versão brasileira como na estadunidense, há uma teatralização da exemplaridade, uma encenação da vontade popular em ação, substituindo ou corrigindo os procedimentos normativos de instituições que asseguram a lei. No entanto, é na tradição estadunidense que se explicita uma “razão de Estado” na encenação, que evoluirá para um exercício de violência recreativa para disciplinar, colocar no lugar aqueles que se identificarem com o linchado, ou seja, os linchadores desejam alcançar mais do que a própria vítima.

Pelo caráter ritualístico dos linchamentos brasileiros, são punitivos, mas não são pedagógicos, não servem para ensinar o público que assiste. São para cumprir uma lógica de vingança e expiação, cumpre-se uma punição em que o ato vingativo se basta a si mesmo. Em primeiro lugar, os linchadores querem alcançar a própria vítima, não se despende preocupação com possíveis transgressores futuros. Não se deseja prevenir um crime, mas sim, ainda segundo Martins, “punir um crime com redobrada crueldade em relação ao delito que o motiva”. Ao contrário da tradição estadunidense, não há momento de ambiguidade entre “justiça revolucionária” e “mob violence” (“violência de turba”), não há ambiguidade transformativa na história da prática de linchamentos em território brasileiro, a premissa é puramente conservadora: busca preservar valores tradicionais tidos como feridos e transgredidos. É didática a enumeração dos traços mais comuns do linchamento à brasileira segundo Martins:

“No geral, os aspectos mais significativos dos linchamentos se manifestam após a morte da vítima ou, então, no modo como a morte é imposta e o local em que ocorre. O típico linchamento começa com a descoberta do autor de crime que o torna potencial vítima de linchamento, sua perseguição, apedrejamento seguido de pauladas e pontapés, às vezes com a vítima amarrada a um poste, mutilação física, castração em caso de crimes sexuais (com a vítima ainda viva) e queima do corpo. Essas são as sequências mais comuns da violência.”

Assim, na desfiguração mutiladora, há um esforço ritualístico em proclamar a falta de humanidade da vítima, constroem teatralmente sua animalização, sua expulsão do gênero humano. A ênfase do caráter afirmativo se dá na prática mutiladora, na ação daqueles que cumprem o ritual, e não na exposição pedagógica da transgressão corrigida, como na ambição legislativa do linchamento norte-americano. No caso brasileiro, quando o corpo fica exposto, amarrado em espaço público, não se trata de uma lição para os que observam o cadáver mutilado, pois assim é disposto para os perpetradores admirarem a própria obra, sendo esta não raro uma ação cometida entre vizinhos e pessoas que compartilham cotidianos em território restrito.

Para Martins, haveria uma relação de julgamento mútuo entre dois campos de moral positiva: a popular e a legal, a primeira a julgar a segunda. Segundo esta explicação, a população lincha para indicar um desacordo com alternativas de mudança social que violam normas de conduta tidas como tradicionais, um protesto corretivo conservador cioso por transformar em realidade e de forma incipiente a participação democrática, de poder popular executando uma vontade soberana que estruturas democráticas tradicionais não conseguem contemplar. Uma explosão derivada da impossibilidade de formalizar em termos institucionais um desejo de transformação da realidade, de afirmar valores sociais. Estamos às voltas com a oposição entre norma e substrato social, a fundamentação da compreensão durkheimiana de “anomia social”. Neste sentido, o linchamento seria um fenômeno próximo de comportamentos coletivos como saques e quebra-quebras, pois são formas de transgressão e violência no espaço público que expõem uma desidentificação entre massa de indivíduos e formas de regulação da sociedade – um rompimento de “contrato social” ritualizado.

Independente das críticas que devamos traçar à fundamentação teórica de Martins, sua leitura histórica faz o amplo interesse sobre seu estudo prevalecer. A desagregação anômica que ele identifica no fenômeno dos linchamentos ganha intensificação aberrante no Brasil a partir de um marco específico e impossível de ser ignorado: a consolidação da ditadura militar e seus anos finais. O novo regime político, produto de um pacto entre setores militares, a burguesia urbana e setores de velhas oligarquias, “reestimulou práticas relativas à justiça privada”. O reaparecimento massivo dos linchamentos não se dissocia do aparecimento do vigilantismo de “justiceiros” representado pelos esquadrões da morte no final dos anos 1970. Estes se proliferam, disputam na opinião pública a legitimidade e continuidade de execuções sob patrocínio de comerciantes locais e, ao final da década de 1980, começam a formar currais eleitorais e a eleger políticos.

Assim, os esquadrões da morte ajudaram a difundir em novo patamar a ideia da legitimidade da punição extralegal, ideologia que se dissemina ao longo de todo o período de “Nova República”, caldo que ajuda a fortalecer a legitimidade política da expansão territorial do domínio de milícias. No ato de linchar, não muito distante do discurso miliciano, se contesta a legitimidade da justiça institucional, as concepções oficiais de crime e castigo. O conservadorismo da lógica do linchamento é muito próximo da ideologia política do espírito miliciano: a violência possui uma função social de conservar uma ideia de ordem, de restaurar no plano simbólico um plano de exercício de vontade do conjunto de toda a sociedade. A covardia ignominiosa, a desordem localizada, é perpetrada para conservar e “consertar” uma sociedade imaginada, que passa a ser colocada no rumo certo.

No entanto, estes achados conceituais fornecidos por Martins não parecem servir para descrever apropriadamente o espancamento de Moïse Kabagambe. Para começo de conversa, segundo a tipologia de Martins, um dos locais mais conscientemente evitados para um linchamento brasileiro acontecer é justamente um estabelecimento comercial. Na maioria dos casos, a vítima é retirada de um lugar como esse e levada para outro, de preferência a rua. Não raro, terrenos baldios ou praças substituem a rua, mas jamais em propriedades particulares. Por trás desse procedimento se esconde a ideia de que ao se cometer o linchamento não se trata, do ponto de vista dos linchadores, de “crime”, justamente porque se faz em via pública, como ação coletiva. “Crime” é o que se comete às escondidas, longe de outros olhares, sorrateira e traiçoeiramente. Assim se deu o assassinato de Moïse, primeiro atacado pelas costas, imobilizado e atado para não chamar atenção.

3. Mundo do trabalho: a origem da atrocidade brasileira

O assassinato de Moïse nada teve a ver com identificação de culpa, vingança ou expiação. Não foi amarrado para exposição contemplativa, seja pedagógica ou não. Moïse foi amarrado depois de espancado e largado ao lado da escada do quiosque como uma caixa de frutas podres jogadas num canto de depósito ou algo que o valha. O ato se dá num estabelecimento comercial e não há solenidade ou alarde público, os espancadores não buscam atenção da população – aliás, quando notam a gravidade do estado do espancado, tentam reavivá-lo, como mostram as filmagens. A execução foi desencadeada por um desentendimento num acerto de diárias, um desacordo sobre trabalho não pago. Moïse era um obstáculo para a continuidade do bom funcionamento do comércio quando ainda estava aberto. Sua eliminação não serviu para uma expiação coletiva, mas derivou de demanda de procedimento administrativo básico de estabelecimentos comerciais. Precisamos estar dispostos a admitir que talvez “linchamento” não seja a terminologia mais apropriada, pois talvez se trate de algo muito pior. Além do racismo estrutural e objetivo e da xenofobia aberrante que a ação inegavelmente revela, também expõe um caso mundano de luta de morte entre despossuídos, a concorrência cruenta e sangrenta entre esbulhados sob a lógica do capitalismo neoliberal, aqui degradada a uma rixa entre trabalhadores precarizados.

Os limites da interpretação de Martins se revelam em maior gravidade em sua compreensão da dinâmica social em que os linchamentos brasileiros se inscrevem: para ele, trata-se de uma forma residual de formas de sociabilidade agrária emparedadas pelo processo de expansão dos grandes núcleos urbanos das principais metrópoles brasileiras ao longo da segunda metade do século XX. A partir do dado estatístico que revela o cenário prevalecente da maior parte dos linchamentos do final da década de 1980 em diante as periferias de grandes cidades, Martins se subscreve à leitura dualista clássica da formação da sociedade brasileira, em que uma moralidade arcaica, agrária e atrasada entra em conflito com uma moral civilizada, urbana e moderna. A própria predominância de esquadrões da morte durante o fim da ditadura (intuição histórica que é um verdadeiro achado de amplíssimo alcance, deve-se enfatizar) é vista por Martins como sinal de que “a cidade foi invadida pelo campo”. A desagregação que o fenômeno interpretado pelo grande sociólogo revela seria sintoma de uma modernização não completada, de atrasos históricos e sociais não superados e que a ação coletiva violenta protesta a sua carência por integração num meio social em que o progresso se mostra ausente, ou sem força.

O que se perde nesta forma de ler e interpretar a sociedade brasileira é que o que ele chama de oposição entre moral do atraso e norma moderna dispõe polos extremos que se reproduzem enquanto práticas constitutivas um do outro. O que se interpreta como norma de uma sociedade moderna, que é juridicamente orientada na correção e disciplinamento das condutas de indivíduos com aplicações de códigos penais atualizados com o mais sofisticado do debate do reformismo liberal, é colocado em oposição ao seu substrato constitutivo, que é em verdade a norma traduzida em prática por agentes sociais. Assim, não é possível pensá-las como dualidade integrada, ou unidade contraditória. Desta forma a violência coletiva dos linchamentos poderia ser interpretada não como uma perturbação contraposta a um pano de fundo de um grau zero de não violência, como se um estado de coisas normal e pacífico, provido pela pacificação dos estatutos jurídicos dos códigos da modernidade liberal, é violentado pelo fenômeno anômico, o dado “estranho” que choca a paisagem “normal”.

Uma orientação para conceber outra forma de pensar a violência constitutiva na historicidade da vida comunitária local está na obra Homens livres na ordem escravocrata (1969), de Maria Sylvia de Carvalho Franco, estudo fundante do pensamento social dialético em solo brasileiro. A reflexão toma como corpus a velha civilização do café no século XIX, no Vale do Paraíba, entre Rio de Janeiro e São Paulo. A análise de Franco privilegia os processos-crime da comarca de Guaratinguetá, em que a violência aparece por toda parte como um elemento constitutivo das relações sociais daquele momento que era o auge da organização agrária do ciclo da economia cafeeira. Eis o movimento contraditório básico encontrado por Franco, seguindo a intuição exposta por Antonio Candido em seu estudo inaugural, Parceiros do Rio Bonito (1964): o trabalho escravo, do ponto de vista do progressismo liberal tido como signo de atraso e barbárie, é o inaugurador do processo de produção capitalista mercantil moderno, instaurado em completa tensão com a economia de subsistência que possibilitava sua manutenção, esta mantida por trabalhadores livres não integrados à ordem mercantil em escala global da produção cafeeira. O “atraso” inaugura e condiciona a reprodução do “moderno”, e o “moderno” repõe como sua condição de possibilidade de existência o “atraso”.

Em entrevista recente, Martins caracterizou o assassinato de Moïse como uma forma nova de linchamento, pois decorreu da reivindicação de um trabalho realizado. “Nem justiçamento é, pois o direito estava do lado dele, a relação de trabalho é uma relação anômala”, sintetiza o sociólogo. O descabimento do motivo o leva a apontar o desfecho violento como um linchamento de tipo novo.4 Entre o motivo da briga inicial e o comportamento de multidão que leva ao assassinato há uma desconexão de sentido, uma discrepância entre o gatilho e a escalada repentina da violência. Num dos depoimentos para a imprensa, um dos agressores, Aleson Fonseca, deu aquela que é possivelmente a mais chocante das declarações: para explicar por que deu continuadas aldrabadas com o bastão de beisebol, explica-se, constatando o exagero de sua conduta, que queria “extravasar a raiva que estava sentindo”, pois o congolês o estava “perturbando há alguns dias”. Assim, não seria a dívida da gerência do quiosque com Moïse que o teria motivado a tomar parte no espancamento, mas uma rixa prévia e espúria suscitada pelo convívio no trabalho.

É possível contestar o ineditismo reivindicado por Martins para entender o caso se ampliarmos o escopo da configuração das situações de violência sob o contexto da sociabilidade capitalista brasileira e estendermos para o período monárquico o corpus investigativo. No primeiro capítulo do trabalho de Maria Sylvia de Carvalho Franco, “O código do Sertão”, uma das primeiras constatações que ela faz sobre os casos analisados em Guaratinguetá é como na quase totalidade há uma desproporção entre os motivos imediatos que configuram um determinado contexto de relações e o seu curso violento. Mortes violentas, ações atrozes, serviam de desenlace para contendas desencadeadas por motivos frívolos. Até para os membros daquele meio social, os motivos das brigas e rixas, quando atingem nível de reflexão críticas, são descritos como desproporcionais aos conflitos que a eles se seguem. Neste sentido, a escalada de ajustes violentos repentinos não eram casos esporádicos, a violência que os permeia, nas palavras de Maria Sylvia, atravessava toda a organização social “projetando-se até a codificação dos valores fundamentais da cultura”.

Um caso mencionado pelo estudo de Franco merece ser relembrado para ilustrar a que se refere. No momento de integração da cultura caipira à economia de mercado vinda com a consolidação da estrutura de exploração cafeeira, a camada social livre e sem posses não encontrava possibilidades de se socorrer de uma fonte regular de suprimento em dinheiro – eram os primórdios dos sujeitos monetários sem dinheiro. A competição pelas raras oportunidades de obtenção de renda cotidianamente se resolvia por meios violentos. Assim, homens disputavam à faca as sobras de café que, após a colheita, ficavam nos ramos ou pelo chão e que os fazendeiros permitiam a seus empregados e dependentes recolherem. O participante de uma dessas desavenças reclama de seu vizinho que reparta “o café que juntara no cafezal de seu patrão”, perguntando “se não sabia que o café era para repartir e respondendo ele que sim”. A desavença pela distribuição equitativa do café se torna rapidamente disputa pela posse integral das sobras do produto.

O único que poderia resolver a questão era o dono do cafezal. Nesse ponto irrompe a luta, da qual saem feridos ambos os contendores. Este acontecimento, tão comum quanto perturbador no período, são ações ligadas ao processo de integração da população livre à economia de mercado. Os homens livres não estavam expostos a uma organização e controle racional das relações econômicas – estas estavam reservadas para a barbárie abominável da escravidão e suas cotas punitivas de trabalho abstrato, cotas estas que, quando não cumpridas, punia-se o trabalhador com chibatadas em quantidade proporcional aos valores da quantidade não atingida. O trabalho escravo era racionalizado, e a luta de morte entre despossuídos serviu como forma de organizar as condutas e insatisfações entre homens livres empobrecidos numa ordem escravocrata. A eficácia racional era manifesta com a escravidão, a desorganização irracional estava no meio livre. A escalada desproporcional da violência é também uma forma de governar a pobreza, pois sua agressividade desmedida é investida contra seus pares de classe, não contra aquele que detém o controle sobre a distribuição dos bens em disputa. O espancamento de Moïse não deixa de representar uma perpetuação dessa lei da sociabilidade brasileira.

Uma leitura sobre obra literária canônica do segundo império, de enredo situado no período joanino, nos permite prosseguir em nossa reflexão. Edu Teruki Otsuka, ao analisar em sua tese de doutorado5 a obra Memória de um sargento de milícias (1853), de Manuel Antonio de Almeida, renova tanto na tradição dialética da leitura de obras literárias brasileiras, como na leitura da realidade social brasileira ao identificar o sentido do ciclo de vinganças irrefletidas e impulsivas entre os sujeitos retratados no romance. Ao tomar como base a análise de Franco para ter como referência a realidade histórica do convívio rixoso entre a população pobre e livre, torna-se clara a compreensão de uma guerra civil generalizada entre desfavorecidos no mundo do trabalho. Por mais frívolo que seja o motivo, “qualquer rebaixamento do oponente basta para que o vingador, inicialmente rebaixado, sinta-se compensado ou restituído em seu sentimento de amor-próprio”. Aqui, espírito de disputa e concorrência entre despossuídos deve se sobrepor ao antagonismo de classe. Ao invés de se identificarem numa condição comum, “identificam-se com alguma instância de poder (real ou imaginária), lutando entre si”.

No entanto, o espancamento de Moïse é pior que o espírito rixoso da permuta de vinganças encadeadas que forma a sociabilidade brasileira das camadas de homens pobres e livres da ordem escravocrata, pois há a consciência clara de descontar no preto a raiva pelo que nada tem a ver com a desavença imediata. Espancou a pauladas para se sentir bem, compensação de quem se sente por baixo, usou o corpo estigmatizado socialmente para se sentir momentaneamente por cima, tomou os interesses de um patrão que nem era seu como se fossem seus para sentir o prazer de estar por cima ao moer um subalternizado. O imperativo de sair por cima e esmagar o concorrente supera a possibilidade de identificar-se com um despossuído de vida sofrida como a sua.

A autonomização da ação violenta não é por defesa da honra e não é pelo punitivismo securitário miliciano, é pelo ato consciente de compensar simbolicamente, descarregar uma frustração num fetiche aplicado sobre aquele que circunstancialmente pode dominar e aniquilar fisicamente – o que a empiria confirma e a performance entifica como estar por cima e ter o oponente por baixo.

Ao mesmo tempo, é difícil aceitar a descrição do espancamento como ritual anômico segundo José de Souza Martins. Não há aqui desejo de “ruptura” conservadora com uma ordem. Não há nada de disruptivo na ação coletiva diante da ordem social estabelecida, o comércio do quiosque continuou a funcionar normalmente mesmo com o corpo agonizante na fachada do estabelecimento comercial. O espancamento está cumprindo a função que a sociedade do trabalho na ordem capitalista no estágio atual coloca como imperativo e que o direito civil cria a aparência de exceção: está descartando o descartável. É a forma cruenta da norma da lógica de dominação e exploração, mas reproduzida entre explorados, onde a lógica de códigos civis segue outra nota.

Se há comportamento de multidão, ele talvez possa ser comparado com certos rompantes de euforia bolsonarista durante a campanha de 2018, quando se abriu a porteira para gritar todas as obscenidades que eram represadas por pudor contra gays, negros, pobres, petistas, “o povo do politicamente correto”, etc. Ali se “extravasou” para compensar ressentimentos confortadores que explicam a realidade de maneira simples, acumulados e transfigurados no imperativo de gozar pela transgressão do que reconhecem como cobrança externa desta oposição. Não é igual à personalidade autoritária descrita por Theodor Adorno, pois não há barreira puritana a ser transposta. A ideia de “extravasamento” também estava presente em 2018, como num momento de lazer, respiro, dizer o que estava entalado na garganta, mas tal prática já estava disseminada há séculos na máquina de moer percorrida para se sobreviver na adversidade. A identificação simbólica promovida pela máquina de propaganda política de extrema direita atingiu algo bem brasileiro, e que se conformou na carnificina que se tornou a sociedade do trabalho contemporânea.

Nos processos-crime analisados por Franco, a desproporção das ações violentas, que pareciam ganhar um rumo automático quando desencadeadas, se tornava a única forma de autovalidação, pois estavam ausentes outras instâncias ou parâmetros de relação interpessoal que permitissem aos sujeitos viver com dignidade mínima e formar um sistema de referência outro através do qual pudessem perceber-se. Era apenas no aniquilamento do próximo que se constituía uma consciência de si do sujeito livre em situação de conflito na ordem escravocrata, sua dimensão de pessoa humana lhe chega estritamente pela subjetividade, não havendo realizações objetivas do espírito para este reconhecer-se. A performance do linchamento permite este reconhecimento objetivo, o linchado violentado e desumanizado está lá para comprovar a superioridade do linchador. O linchamento cria o anonimato coletivo que apaga a culpa individual, culpa esta que lhe atrapalharia no esforço de tornar-se uma boa máquina de matar com recursos artesanais. Nesta condição, quanto mais cruel se é, mais se sente senhor da carapaça que mobiliza o gozo encontrado e mais se desfigura o linchado. Daí, menos empatia se sente e mais brutalizante se torna o ato.

4. “Brasil, o que você me fez?”

No ato na Avenida Paulista, realizado no 5 de fevereiro, esta pergunta ecoou forte na multidão indignada, formulação declamada em carro de som com a intervenção da congolesa Claudine Shindany. “Brasil, o que você me fez?”. A única forma de não tornar inútil o choque diante do espancamento covarde de Moïse é dar um sentido político à vergonha que sentimos ao escutar esta pergunta. A melhor forma para isto não acontecer é dizer que a atrocidade que causou tanta mobilização só pode ser explicada pela existência do regime Bolsonaro, como se fosse um produto da disseminação de ideologias de extrema direita simplesmente como um argumento de plataforma eleitoral em disputa.

De fato, há uma volição teatral nos rompantes de euforia violenta do bolsonarismo que lembra a lógica dos rituais de linchamento como descritos acima, facilmente identificável quando a extrema direita ainda tinha a força das ruas. No entanto, esta volição já era dado cultural do chão sócio-histórico que formou a massa que soube cativar. Ao se fazer estas considerações, não se deve cometer o equívoco de tomar como fato comprovado a ampliação de espancamentos coletivos ou linchamentos ao longo do período em que Bolsonaro esteve no poder, ou que a cultura do linchamento é marca monopolizada pela extrema direita situada sob a gestão Bolsonaro. Ao longo do primeiro semestre de 2014, por exemplo, se constatou uma onda de 36 casos de linchamento em 15 estados ao longo dos primeiros cinco meses do ano.6 Segundo o Atlas da violência de 2020 produzido pelo IPEA, o ano de 2018 contabilizou 1.428 homicídios por instrumentos contundentes (impacto por pauladas, barras de ferro, coisas que o valha), e, segundo o jornalista José Roberto de Toledo, o ano de 2020 contabilizou 2.024 casos. Ou seja, cada ano tem apresentado aumentos estatísticos expressivos de homicídios com agravos de crueldade. No ano de 2022, o caso de Moïse foi apenas um. Estamos falando de um fenômeno social constitutivo da vida do povo brasileiro, simplesmente moralizá-lo ou situá-lo dentro do que é mais ou menos vantajoso retoricamente em contexto eleitoral não ajudará a entendê-lo.

O furor da repercussão, que tragicamente parece perder força, se deveu a alguns fatores que não podem ser negligenciados: Antes de tudo, a desproporção entre o motivo do desentendimento que levou Moïse ao conflito e o resultado violento. Na mídia brasileira, prevaleceu a compreensão de que uma injustiça bárbara foi cometida, e que é justo que um trabalhador cobre por seu trabalho não pago. Nenhum tipo de campanha de difamação contra Moïse ou a família conseguiu sufocar essa leitura. Por um lado, há a velha ambiguidade do reconhecimento de injustiças no senso-comum brasileiro: não merecia sofrer como sofreu, pois era trabalhador honesto. Mas se não fosse, então mereceria? Por outro lado, a indignação ganhou repercussão que ainda pode ser aprofundada enquanto politização enriquecedora.

Em segundo lugar, o fato de que filmagens do espancamento foram vazadas. O caso ocorreu em 24 janeiro e a repercussão aconteceu apenas uma semana depois. Sabe-se que a família de Kabagambe foi ameaçada pela polícia para que não dessem publicidade ao caso.7 Assistir em detalhes ao espancamento, testemunhar o pleno funcionamento do estabelecimento comercial mesmo com o corpo espancado de Moïse na fachada do quiosque, assistir, enquanto ele agonizava, uma família entrar para fazer pedidos, pessoas entrando para pedir cerveja que são vendidas normalmente, como se a agonia de um ser humano em seus últimos momentos de vida fosse um enfeite de ambiência, uma planta de plástico danificada num canto de restaurante, o nível de crueldade e covardia explicitados pelo vídeo tornaram impossível criminalizar, ao menos momentaneamente, o corpo negro supliciado.

É já clássica a passagem de Michel Foucault em sua obra máxima Vigiar e punir em que fornece sua descrição do processo de extinção do caráter espetaculoso dos suplícios punitivos no final do século XVIII e começo do XIX na Europa. Segundo a interpretação foucaultiana, não se trata de “humanização” dos procedimentos punitivos, mas o fato de que o castigo-espetáculo passou a se tornar um horror confuso, pois o rito que dava o “fecho” ao crime passava a ser visto como portador de afinidades com o crime, “igualando-o ou mesmo ultrapassando-o em selvageria”, pois fazia o carrasco se parecer com o criminoso, os juízes com assassinos e o supliciado se tornava objeto de piedade e admiração. A modernização de processos punitivos não busca erradicar a tortura e atrocidades bárbaras, mas escondê-los do público, e é muito revelador que a polícia entenda como urgente que se esconda dos olhos do público tortura e violência punitiva cometida por civis. Como se a tortura e execução em céu aberto fosse uma instituição que pudesse ser prejudicada com a divulgação das imagens, mesmo quando não cometida por agentes do Estado, como se houvesse uma afinidade de procedimentos punitivos informais entre o espancamento de Moïse e a prática cotidiana da polícia.

Um terceiro motivo é a singularidade da origem do espancado. É motivo de estranhamento reflexivo uma atrocidade tão particularmente brasileira tornar-se instrumento de extermínio de um sobrevivente refugiado. A nossa regressão ideológica matou um sobrevivente de uma guerra civil que colapsou todo um país. A lógica abominável do mundo do trabalho no Brasil executou um sobrevivente de uma guerra que até o fim da década de 2010 havia matado mais de 5,4 milhões de pessoas, o maior número de mortes por conflito bélico desde a Segunda Guerra Mundial. A família de Moïse sobreviveu à fome, à doença, à desnutrição endêmica sofridas num país implodido. Enfrentou o inferno para atravessar o Atlântico, encontrar formas de sobrevivência no meio do redemoinho da sociabilidade da sociedade de classes do capitalismo periférico na América do Sul. Moïse não era um migrante simplesmente, era um refugiado. Executamos os filhos deste solo, executamos os filhos de outros solos. Foram nossos despossuídos que o executaram, membros da nossa força de trabalho precarizada e hiper-explorada, que, para sobreviver, internalizou a concorrência, o espírito rixoso e o aniquilamento do mais vulnerável como valores a serem celebrados. Mesmo trabalhando no mesmo espaço, sofrendo as mesmas humilhações, comendo da mesma comida, travando as mesmas lutas cotidianas para sobreviver, nada disso foi suficiente para Moïse ser chamado de colega, aliado, irmão.

O século XXI será um século de refugiados. Seja pelas remoções forçadas mobilizadas pela catástrofe climática, seja pela propagação de novos conflitos de diferentes ordens em todos os cantos do globo, uma nova feição de sujeitos degredados e despossuídos está por se formar. Um outro tipo de energia e acúmulo de militância está por florescer. Forçados a abandonar seus lares, que talvez deixem de existir num futuro de médio prazo, um aprendizado novo será forjado. Deste, surgirá a necessidade de construção de outra terra, outro território, outro marco de sociabilidade, mas sem a nostalgia de uma terra pregressa, pois esta simplesmente deixará de existir. Os refugiados são o limiar político do novo tempo histórico despontando diante de nossos olhos. É motivo de vergonha entre brasileiros que muitos tenham se dado conta dessa realidade ao descobrir que a contribuição do Brasil para este novo tempo é um espancamento covarde, a perpetuação do extermínio de corpos matáveis em sua feição à brasileira, relegando aos sobreviventes lugares no circuito econômico de trabalho escravo, na realidade do subemprego e nas marcas indignantes do racismo e xenofobia próprios de nossa formação.8 O que resta é desejar que o choque mobilize novos ciclos de lutas, desperte o anseio por solidariedades de classe que ultrapassem fronteiras e que renove o sentido da urgência da abolição da ordem social que produziu nossa cultura de linchamentos.

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1Um ótimo apanhado deste acúmulo crítico pode ser encontrado na dissertação de mestrado de Ariadne Lima Natal, 30 anos de linchamentos na região metropolitana de São Paulo 1980-2009. USP, FFLCH, Departamento de Sociologia. São Paulo, 2012.

2 Infelizmente não poderemos lidar nesta reflexão com as instigantes análises de Charles Tilly sobre os sentidos políticos das formas de violência coletiva na história modernidade ocidental. Seu estudo, The Politics of Collective Violence, é um apanhado extraordinário e de fôlego impressionante, típico dos trabalhos anteriores do autor, percorrendo desde brigas de trânsito, impasses violentos entre jogadores de pôquer no Velho Oeste americano, brigas de gangues, desforras entre torcidas de futebol e o índices estatísticos de brigas de rua na França pré-Revolução. Dada a especificidade da história do linchamento no Brasil e a quantidade ainda pequena de estudos especializados debruçados sobre o assunto, abarcar o argumento de Tilly representaria um desvio longe de nossas forças para lidar de maneira satisfatória, de modo que se faça jus aos achados provocadores deste grande pesquisador americano. Fica aqui manifesta a admiração por este trabalho de vulto que ainda está por ser devidamente debatido no Brasil.

3 PFEIFFER, Michael J. Global Lynching and Collective Violence. 2 volumes. University of Illinois Press, 2017.

4 LO PRETE, Renata. “O Brasil que lincha – o caso Moïse”. Portal G1. Site: https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2022/02/02/o-assunto-635-o-brasil-que-lincha-o-caso-moise.ghtml. Acessado pela última vez: 15/02/2022.

5 OTSUKA, Edu Teruki. Era no tempo do rei: A dimensão sombria da malandragem e a atualidade de Memórias de um sargento de Milícias. USP, FFLCH, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Tese de Doutorado. São Paulo, 2005.

6 MELLO, Alessandra. “Linchamentos e espancamentos”. In: Estado de Minas. Site: https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2014/05/04/interna_nacional,525092/brasil-vive-barbarie-em-serie-com-linchamentos-e-espancamentos.shtml. Último acesso em: 15/02/2022.

7 BARBON, Júlia. “Família de Moïse diz que foi intimidada por dois policiais militares”. In: Folha de S. Paulo. Site: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/02/familia-de-moise-diz-que-foi-intimidada-por-dois-policiais-militares.shtml. Último acesso em: 15/02/2022.

8 LEAL, Carla. “O assassinato de Moïse Kabagambe e a situação dos imigrantes de origem afrolatina no Brasil”. In: O Livre. Site: https://olivre.com.br/o-assassinato-de-moise-kabagambe-e-a-situacao-dos-imigrantes-de-origem-afrolatina-no-brasil. Último acesso em: 17/02/2022.

Gustavo Assano – Doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo e pesquisa teatro há mais de dez anos.

Moïse Kabagambe, o jovem congolês de 24 anos assassinado no Rio de Janeiro no dia 24 de janeiro. Foto: Reprodução Facebook

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