Órgão ruge: discursos vazios não o satisfazem e, apesar de sua acidez implacável, só de ossos ninguém vive. Pesquisas indicam: desgoverno cairá, sobretudo, por falhar em servir 33 milhões de buchos. Afinal, alguém vai pagar o prato
Por João Paulo Ayub Fonseca*, em Outras Palavras
No contexto de miséria social em que vivemos, somente ele, o Estômago, poderá nos salvar. Tudo caminha para que esse órgão resolva, ao menos por hora, a grande encrenca onde nos metemos. Acostumado a dissolver com seu suco gástrico toda sorte de matérias (acidez implacável!), o Estômago é um agente extremamente atuante nos mais variados domínios da vida individual e coletiva.
Enquanto os gritos e discursos governistas reverberam nos cercadinhos e nas redes sociais contaminadas pelo delírio autoritário do capitão, o Estômago ruge e brada como quem não pode mais se satisfazer com palavras vazias. Seria ele o grande entrave da máquina fascista? O certo é que o Estômago não tem pátria e não cede aos apelos infantis do nacionalismo político.
Igualmente incapaz de digerir impropérios conceituais e aberrações semânticas, para o Estômago o que interessa mesmo é o prato cheio na mesa. E agora, dada a escassez até mesmo das saudosas coxinhas e mortadelas que circulavam felizes nas ruas após 2013, quando a taxa de desemprego era de apenas 4,3%, o Estômago ameaça: alguém vai pagar o prato! Do seu interior vazio e suplicante, não há nem mesmo o que mais vomitar.
De acordo com levantamento feito pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e o Instituto Vox Populi, aproximadamente 33,1 milhões de brasileiros passam fome em 2022. Enquanto isso, observa-se o avanço do neoliberalismo e seu projeto destinado a promover a colonização da esfera pública pelo mercado, uma aberração que transforma a vida coletiva num laboratório de experimentação do darwinismo social. Paralelamente, coube à extrema-direita brasileira dinamitar os pressupostos básicos da constituição política democrática brasileira, fazendo do poder do Estado um aliado privilegiado da força policial ocupada em reprimir os descontentes com o sistema imposto.
No campo das forças políticas, a insensatez tornou-se um artifício fundamental da extrema-direita no poder: um grupo que faz da dominação política um exercício permanente de desentendimento, desinformação, confusão conceitual, um não sei quê de qualquer coisa reduzida à força de bravatas descabidas. Como resultado, observa-se um cenário bizarro nas ruas: o espaço da cidade é cada vez mais ocupado por uma gente que afirma a necessidade do armamento da população, que aposta na ineficácia da vacina num contexto pandêmico, assim como ataca a redondeza da terra plana.
Mas, a despeito de sua acidez capaz de tragar cada tipo de matéria intragável, o Estômago, ao que tudo indica, vai às urnas reivindicar algo melhor para comer. Todas as pesquisas eleitorais revelam que o atual desgoverno cairá, sobretudo porque falha em servir a esse órgão que, curiosamente, é capaz de uma elevada tolerância alimentar. Mas só de osso ninguém vive. Os mais pobres – a maioria da população que flerta dia e noite com a fome –, não aguentam mais o discurso despropositado do governo destinado a confundir.
É triste constatar, mas chegamos num ponto em que a gente quer só comida. Diversão e arte? Estaríamos no lucro. O Estado voltará a ser um palco de luta pelo estabelecimento de condições dignas de vida. A depender do Estômago, essa hora vai chegar!
*É psicanalista e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp com tese intitulada “Arte é sangue, é carne – a riqueza e a miséria da palavra no romance de Graciliano Ramos”. Autor de Introdução à analítica do poder de Michel Foucault (Intermeios, 2015).
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Imagem: Cândido Portinari