Globo exime agronegócio de incêndios em remake de Pantanal

Produção avança timidamente na discussão ambiental enquanto ignora e invisibiliza indígenas, ribeirinhos e quilombolas; bioma perdeu 29% da área alagada e 12% da vegetação entre a produção original e a refilmagem; pecuária, cana e soja lideram desmatamento

Por Nanci Pittelkow, em De Olho nos Ruralistas

Sucesso de audiência, a novela Pantanal provocou comoção nas redes nessa semana. No episódio que foi ao ar na terça-feira (28/6), o personagem Velho do Rio (Osmar Prado) se deparava com uma queimada destruindo a fauna e flora do bioma. O folhetim inseriu imagens reais de incêndios ocorridos nos últimos anos e de animais agonizando em meio a fogo e fumaça. O que a produção da TV Globo não mostra é a face dos culpados pela devastação do Pantanal.

Em 2020, enquanto o bioma enfrentava a maior onda de queimadas de sua história, perdendo 26% de sua cobertura vegetal nativa, De Olho nos Ruralistas revelou, em uma série de reportagens, os nomes dos principais multados por desmatamento no Pantanal nos últimos 25 anos, com base na lista de autuações ambientais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Confira na reportagem: “Gado, carvão, cana e soja estão por trás do desmatamento milionário no Pantanal“.

A recordista em multas é a BRPec Agropecuária, ligada ao BTG Pactual, do banqueiro André Esteves. Além dela, figuram na lista empresas pertencentes ao ex-bilionário Eike Batista e à mineradora Vale, além de membros da família Steinbruch, sócios da Vicunha Têxtil e da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN).

DESTRUIÇÃO DO PANTANAL AMEAÇA PRODUÇÃO CAMPONESA

Entre a produção da extinta TV Manchete, em 1990, e a refilmagem da Globo atualmente no ar, são nítidas as diferenças na paisagem mostrada na novela. Há 32 anos, o gado atravessava a água nadando pelas baias, salinas, corixos e rios cheios. Hoje, atores e animais percorrem os mesmos cenários, agora quase secos. Em meio a uma estiagem severa, que pode ser cíclica, pesquisadores ressaltam números e tendências preocupantes.

“É impressionante ver uma nascente sem uma gota de água”, conta Letícia Couto Garcia, professora do Laboratório Ecologia da Intervenção da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). “Precisamos cobrar por políticas públicas que conservem e restaurem o Pantanal e até o momento não temos sequer uma lei federal que trate especialmente desse bioma”.

Quem mais sente as transformações são as populações tradicionais. “O que mudou mais foi o clima”, diz Maria da Penha Macedo da Cruz, do Assentamento Monjolinho, em Anastácio (MS), entrada do Pantanal. “Antes só se falava em cheia, cheia, cheia. Agora a gente só ouve falar de seca, seca, seca”. Ela ressalta que a falta de chuvas afeta a coleta de frutas típicas como bocaiúva, mangaba e araticum.

O cotidiano no assentamento mescla o cultivo agroecológico com o extrativismo do baru, jatobá e pequi, que são processados na comunidade e vendidos em forma de bolos, biscoitos e conservas.

Dona Penha, como é mais conhecida, foi morar no local exatamente em 1990, e conta que as cenas atuais da novela, de conversas em volta da fogueira, remetem ao assentamento, que agora conta com energia, televisão e telefone. Outra mudança se vê nos quintais, em que os papagaios vêm comer as laranjas, as araras, o caju, e os tatus acabam com as ramas de mandioca. “Os bichos não acham mais comida na mata”, conta. “Tudo foi virando pasto para gado, com queimadas provocando a falta de frutos para os animais silvestres, que acabam vindo aqui para se alimentar”.

Para a professora Letícia, valorizar as comunidades tradicionais é essencial para a preservação do bioma. “Povos como indígenas, comunidades ribeirinhas e quilombolas são negligenciados”, opina. “Eles atuam cotidianamente na conservação do Pantanal”.

INDÍGENAS COMANDAM BRIGADAS CONTRA INCÊNDIOS

Para o povo Terena, o Pantanal é um lugar sagrado. “Os tempos antigos remetem a uma região chamada Êxiva, que hoje é localizada no Chaco paraguaio”, explica Leosmar Antônio, ativista ambiental. “Os anciãos contam que quando morremos, retornamos a esse lugar”.

Para os Terena é muito difícil ver um lugar sagrado para seu povo ser destruído. A fala do presidente Bolsonaro atribuindo os incêndios criminosos aos indígenas foi especialmente ofensiva. “Nós não somos capazes de colocar fogo na nossa casa”.

Leosmar presta assessoria à organização Caianas, que articulou a instituição de uma brigada indígena contra incêndios. No território, os Terena trabalham com sistemas agroflorestais e, em 10 anos, reflorestaram 35 hectares de áreas degradadas. “O que é isso diante dos incêndios de 2020?”, questiona Leosmar. “Uma área dessas é destruída em questão de minutos, horas”.

Alguns territórios Terena foram retomados. Eles tentaram fazer a autodemarcação em uma área reivindicada pelo ex-governador biônico e ex-senador Pedro Pedrossian, mas o aparato policial chegou em tempo recorde, como este observatório contou em 2016: “Algozes de indígenas no MS tentam eleição no dia 2 de outubro“.

COMUNIDADES EXIGEM CONSULTA PRÉVIA CONTRA HIDRELÉTRICAS

Do outro lado do Pantanal, em Cáceres (MT), as comunidades se mobilizam contra a instalação de portos fluviais e pequenas centrais elétricas, as PCHs. Em janeiro, pescadoras e pescadores artesanais lançaram o primeiro protocolo de consulta livre, prévia e informada, para que as comunidades ribeirinhas sejam ouvidas antes das autorizações de obras.

“As comunidades não são consideradas, são invisíveis”, afirma Cláudia Sala de Pinho, da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira. “No Pantanal Alto, em fevereiro, uma PCH abriu as comportas e a comunidade foi toda alagada do dia para a noite”.

Moradores das comunidades elencam uma série de fatores de preocupação para os povos da região, como a ameaça de assoreamento dos rios por causa da navegação de grande porte, além das queimadas, desmatamento e clima seco. “O rio Taquari secou, virou chão firme”, conta Leonida Aires de Souza, artesã e moradora da Barra de São Lourenço. “Tão querendo plantar soja no Pantanal, onde já se viu uma coisa dessa?”. Ela lembra que as comunidades foram menos atingidas pelo fogo em 2020 porque os incêndios se concentraram nos lugares preparados para grandes plantações.

“Nesse momento eu não vejo muitas perspectivas de melhora na situação no Pantanal”, diz Eduardo Reis Rosa, coordenador de mapeamento da região pelo MapBiomas. “Tem o projeto da hidrovia e dezenas de PCHs previstas, fora o uso do fogo sem o manejo adequado pelos especuladores imobiliários”. Quase todos os entrevistados destacaram a incursão de investidores de fora da região, que compram terras mais baratas, desmatam e as revendem para pecuaristas ou para a monocultura.

INDÍGENAS SÃO PRINCIPAL AUSÊNCIA ENTRE OS PERSONAGENS

“Minha mãe é descendente dos Guató, minha avó era negra dos quilombolas e meu pai, Guarani do lado dos paraguaios e bolivianos”, conta Leonida, enquanto trabalha seu artesanato com fibra de aguapé, aprendido com uma legítima Guató, sogra da irmã. “Nós somos os cafuzos, né? Índio com negro.”

Diversos moradores registraram que a novela omite parcelas significativas dos habitantes da região. “Os índios não são vistos”, dispara Jorgilene Aires, moradora da comunidade de Barra de São Lourenço. “Deveriam mostrar pelo menos uma parte”.

“São três diferentes Pantanais”, conta Karla Nadai, da Coordenadoria da Agricultura Familiar da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Econômico do Mato Grosso do Sul (Semagro). “Indígenas e ribeirinhos não são retratados”.

Outra questão polêmica é o sotaque, muito mais identificado com o interior de São Paulo. “O pantaneiro tem a ascendência indígena, com um tom de pele moreno, de cabelo liso, preto”, descreve Jairo Arruda, da Cooperativa dos Produtores Rurais da Região do Pulador de Anastácio (Copran). “E o sotaque é mais cantado, que lembra uma língua indígena”.

Jairo, que comanda uma cooperativa de farinha, representa uma outra face pouco conhecida do Pantanal, pois é descendente de uma colônia de nordestinos. A cidade de Anastácio (MS) revela um cenário incomum na região por conter pequenos produtores independentes e de colonização natural, diferente dos latifúndios e dos assentamentos da reforma agrária.

Mesmo havendo essa aparente divisão entre fazendeiros e peões retratados na novela e as comunidades pouco reconhecidas, a convivência entre todos já foi menos conflitante. As porteiras eram abertas e o trânsito de indígenas e coletadores era não só permitido, mas desejável para a preservação do bioma. Hoje, herdeiros, investidores e arrendadores bloqueiam as passagens com cadeados, impossibilitando o meio de vida de povos tradicionais. “Áreas com muitas espécies de guavira, fruta símbolo do Mato Grosso do Sul, foram destruídas para o monocultura de soja”, relata Leosmar.

Foto principal (Lalo Almeida): Indígena Guató observa fogo destruir parte do Pantanal

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