Intelectual negro fez uma análise original do escravismo e da luta de classes no país. A partir da história vista de baixo, desvelou o horror colonial e as potentes (e ignoradas) rebeliões dos subalternizados: negros, indígenas e quilombolas
Por Gabriel dos Santos Rocha, no Geledés
As ciências humanas brasileiras nos fornecem uma gama de intérpretes do Brasil, de diferentes épocas e de distintas tendências teóricas e políticas. Trata-se de autores e autoras vinculados aos variados campos do conhecimento, que dedicaram suas obras ao desvendamento e à análise aprofundada dos fundamentos de nossa formação histórica, social, econômica, cultural e política.
O passado colonial, o sistema escravista, a inserção do país no capitalismo global, a formação do Estado-Nação, o mercado de trabalho, o desenvolvimento do capitalismo, as classes e as desigualdades sociais, as religiões, as culturas e formas de sociabilidade. Todos esses são temas pautados na produção dos intelectuais que assumiram a tarefa de interpretar o Brasil.
Para alguns desses intelectuais não basta a interpretação, é necessário, também, a transformação da sociedade. Dentre esses situa-se Clóvis Moura (1925-2003): historiador, sociólogo, jornalista e poeta. Um pensador comprometido com a emancipação da classe trabalhadora e com a luta antirracista, sem as quais, para ele, não haverá emancipação humana. Um intelectual negro, marxista e militante comunista.
A relação entre raça e classe no passado e no presente brasileiro esteve no centro da análise de Moura sobre o processo histórico brasileiro, servindo-lhe de chave interpretativa do Brasil e sendo, também, um dos fundamentos de sua práxis política.
A luta de classes no escravismo
Clóvis Moura tem contribuições importantes para a historiografia, a sociologia e para o pensamento marxista. Seu livro de estreia nas ciências humanas, Rebeliões da Senzala (1959), traz uma abordagem original do escravismo e da luta de classes no Brasil. Nele, o autor interpreta o processo histórico a partir da contradição entre escravizado e escravocrata, as duas classes fundamentais da sociedade escravista. Tal contradição, para Moura, foi o elemento dinamizador da sociedade colonial e imperial. Se para o marxismo a luta de classes é o motor da história, no Brasil essa luta tem origem nas insurreições negras contra o escravismo e na resistência dos povos originários.
Moura interpretou a formação social do Brasil colonial e imperial vinculada ao modo de produção escravista sem perder de vista a agência do negro como sujeito histórico. Assim, o autor foi pioneiro em analisar sistematicamente os quilombos e as rebeliões negras, conferindo sentido político ao protesto dos escravizados e, ao mesmo tempo, nos fornecia as bases para a construção de um conhecimento histórico a partir dos subalternizados: uma história vista de baixo.
Os quilombolas, escravizados e libertos, indígenas, trabalhadores livres constituíram as forças de negação da ordem escravista. Situados no pólo expropriado e oprimido, foram os sujeitos históricos da luta de classes daquele período. Para Clóvis Moura, as insurreições negras não foram fatos esporádicos e isolados, ao contrário, ocorreram sistematicamente durante a escravidão. Tais revoltas foram amplamente abordadas em suas obras. Além de Rebeliões da Senzala (1959), destacamos: Os quilombos e a rebelião negra (1981), Quilombos: resistência ao escravismo (1987) e História do negro brasileiro (1989).
Raça e classe na formação do Brasil
Clóvis Moura também analisou o papel do racismo na formação e na dinâmica da sociedade de classes no Brasil. Como já mencionamos, a relação entre raça e classe no processo histórico brasileiro, a saber, na formação social, cultural, política e econômica do país esteve no centro das reflexões do autor. O sistema colonial e a economia escravista são processos históricos de longa duração com desdobramentos no tempo presente.
O latifúndio, a monocultura de produtos primários voltada ao abastecimento do mercado internacional e a superexploração da força de trabalho da população negra são fatores histórico-estruturais que atravessam diferentes temporalidades. Tais fatores são fundamentais para compreendermos a localização periférica e o caráter dependente do capitalismo brasileiro, assim como a disseminação e a funcionalidade do racismo em todas as esferas da vida social.
A exploração da força de trabalho das populações negras e indígenas foi e segue sendo um fator decisivo de produção e acumulação de riquezas para as classes dominantes brasileiras e de outras nações capitalistas. A divisão social do trabalho segue racializada em nível nacional e internacional, mantendo majoritariamente os “não-brancos” nos estratos mais explorados e socialmente vulneráveis.
Neste ponto, o Brasil é um caso emblemático: o país tem 56,2% de pretos e pardos (negros) em sua população. Porém, no mercado de trabalho, esse mesmo segmento da população situa-se em 64,2% de força de trabalho “desocupada” (desempregada), e 66,1% “subutilizada” (na intermitência). As desigualdades entre negros e brancos também se revelam na distribuição de renda e moradia, nos níveis de educação formal, na taxa de homicídios e na representação política.
A função do racismo no sistema capitalista e a situação do negro na sociedade de classes brasileira foram estudados por Moura em livros como O Negro: de bom escravo a mau cidadão? (1977), Brasil: raízes do protesto negro (1983), Sociologia do negro brasileiro (1988) e Dialética radical do Brasil negro (1994).
A revolução brasileira
A produção intelectual de Clóvis Moura não se dissocia de sua atividade política, para ele o sentido de compreender os movimentos da realidade consiste em poder nela intervir. Assim, o autor tomou partido na luta pela emancipação do ser humano da exploração capitalista e entendeu o racismo como ferramenta ideológica de dominação e expropriação dos negros – maioria da população brasileira.
Clóvis Moura deixou um importante legado para a História, a Sociologia e para as lutas sociais de nosso tempo. Sua obra nos ensina que um projeto de transformação social radical – uma revolução brasileira – impreterivelmente deve considerar o processo histórico que produziu nossa sociedade, e deve, também, amparar-se na realidade concreta de nosso tempo presente.
Combater o racismo é uma tarefa drástica, na medida em que ele nos remete às raízes que se tornaram troncos – ou estruturas – de nossa sociedade. Moura nos mostra como o racismo está entranhado na contradição trabalho/capital. Portanto, a emancipação humana com a superação de tal contradição, necessariamente passa pela luta antirracista.