Na COP27, indígenas demandarão apoio financeiro a fundos geridos por suas comunidades

Fundos indígenas são cruciais para que povos originários tenham acesso direto a financiamento climático, dizem lideranças

Por Anna Beatriz Anjos, Agência Pública

A pouco mais de dois meses para a próxima Conferência do Clima da ONU, a COP27, que acontecerá em novembro no Egito, o movimento indígena brasileiro já tem definido um de seus focos de atuação no encontro: a cobrança pelo cumprimento da promessa de doação de US$ 1,7 bilhão feita na COP26, em 2021, pelos governos do Reino Unido, EUA, Alemanha, Noruega e Países Baixos, junto a 17 entidades filantrópicas, para que os povos originários sigam protegendo seus territórios e desempenhando seu papel crucial na luta contra a crise climática.

Mas o movimento quer também protagonismo e reforçará a demanda por apoio financeiro aos fundos geridos por e para suas comunidades. Hoje, há dois principais exemplos desse tipo de iniciativa no Brasil: o Podáali, primeiro fundo indígena a atuar em toda a Amazônia brasileira, e o Fundo Indígena do Rio Negro (FIRN), que atende aldeias na região da tríplice fronteira com Venezuela e Colômbia.

“O que será colocado na COP27 é a forma como esse compromisso está sendo implementado e quais caminhos serão utilizados para que o recurso chegue direto aos povos indígenas”, diz Valéria Paye, diretora executiva do Podáali.

Coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia brasileira (Coiab), à qual o Podáali está vinculado, Toya Manchineri afirma que o pedido por acesso direto a financiamento climático via fundos indígenas será a principal pauta da organização na conferência. A demanda já constava na “Declaração dos povos indígenas da Amazônia brasileira frente à crise climática”, ou Carta de Tarumã, levada à COP do ano passado em Glasgow, e embarcará ainda mais forte para o Egito.

A reivindicação da Coiab tem base em dados: apesar de a ciência já ter identificado que os povos indígenas são atores eficazes no combate ao desmatamento e na preservação da biodiversidade, um estudo da Rainforest Foundation da Noruega mostra que eles tiveram acesso direto a apenas 0,13% dos recursos destinados globalmente à mitigação das mudanças do clima entre 2011 e 2020.

O resto, segundo o levantamento, foi direcionado a outras ações dentro de projetos maiores ou acabou retido por intermediários que normalmente recebem o dinheiro de países ou organizações para depois repassá-lo aos indígenas.

Os fundos indígenas são uma alternativa aos mecanismos tradicionais de financiamento climático porque colocam as comunidades no controle do processo. “Nos fundos comunitários, temos a condição de dizer para o financiador, em uma mesa de diálogo, quais são as nossas necessidades. Antes, vinha uma demanda de fora [por parte do doador] e a gente tinha que se enquadrar”, ressalta Paye, indígena do povo Tiriyó e Kaxuyana. “Queremos acessar o recurso, mas não de qualquer jeito, aceitando condições impostas.”

Em uma COP que deve ser marcada por discussões sobre justiça climática – tanto entre as nações pobres e ricas quanto entre grupos sociais –, o pedido dos povos originários pode encontrar eco. “Se os povos indígenas, extrativistas e quilombolas não estiverem presentes no debate e na repartição dos recursos, não se pode falar em justiça climática, porque estes são os primeiros a fazer a preservação ambiental”, destaca Toya.

Além disso, apesar de pouco contribuírem para que as mudanças climáticas ocorram, os indígenas sofrem intensamente seus impactos, já que seus modos tradicionais de vida dependem da floresta em pé. “Com o aquecimento global, muitas coisas têm mudado. No caso das festas tradicionais, se o território está todo invadido e depredado, muitas vezes elas ficam inviabilizadas porque alguns materiais utilizados para elas já não existem. Certos tipos de alimentos e árvores usados nos rituais não nascem mais. Ele [aquecimento global] impacta tanto a saúde do corpo quanto da mente, desorganiza totalmente os sistemas dos povos indígenas”, aponta o coordenador geral da Coiab.

Fundos indígenas contra mecanismos “burocráticos e engessados”

Embora o Podáali – termo que na língua indígena Baniwa significa “doar sem querer receber nada em troca” – tenha sido oficialmente criado pela Coiab em janeiro de 2020, as discussões para sua construção começaram quase uma década antes, em 2011. Depois de um longo período de estruturação, o fundo se prepara agora para lançar, no final deste ano, a primeira chamada para projetos. Ele atenderá uma população de mais de 400 mil indígenas nos nove estados amazônicos e terá como norte os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU para os povos indígenas e a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), instituída pelo governo federal em 2012.

Já o FIRN, que abrange cerca de 750 comunidades, foi criado em setembro de 2021 pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e já está direcionando aproximadamente R$ 980 mil a quinze projetos selecionados em seu primeiro edital, cujo resultado foi divulgado em fevereiro. São 1.711 indígenas de 22 povos envolvidos na implementação dessas ações, e a expectativa é que mais de 13,3 mil pessoas sejam beneficiadas por elas.

Podáali e FIRN são parte de um mosaico de fundos indígenas espalhados pelo mundo, diversos entre si, mas que têm em comum o fato de serem “guiados pelas visões de mundo indígenas e liderados por e para essas populações”, de acordo com estudo de 2021 da organização Internacional Funders for Indigenous Peoples (IFIP). Elaborado com base em pesquisa feita com 17 fundos indígenas ao redor do planeta e sete entidades financiadoras – em sua maioria grandes fundações, como a britânica Oak –, o relatório ressalta que essas iniciativas, por serem próximas às comunidades e terem conhecimento profundo dos problemas que enfrentam, entendem as medidas que melhor se adequam às suas realidades.

O oposto disso, de acordo com Paye, são os mecanismos de financiamento convencionais, que ocorrem, por exemplo, via bancos internacionais ou grandes organizações que captam recursos junto a entidades filantrópicas e governos. “Dificilmente vamos conseguir ter acesso direto aos fundos climáticos tradicionais. São processos engessados, cujos caminhos estão determinados e são bastante burocráticos”, ressalta. “E os estudos mostram que, por essas opções tradicionais, os recursos não chegam na ponta. Eles vão ficando no meio do caminho.”

Além disso, segundo Domingos Barreto, indígena do povo Tukano que trabalha como gerente operacional e de monitoramento do FIRN, essas iniciativas favorecem a autonomia indígena na governança dos recursos. “O fundo surge como uma oportunidade de implementar algumas ideias e desejos dos povos indígenas moradores dos territórios”, afirma. “A equipe do FIRN acompanha as associações para que sejam bem assessoradas e acessem os recursos, façam a gestão dos projetos e elas mesmas digam quais caminhos querem seguir enquanto comunidades.”

Promover direitos indígenas é preservar o clima

Dos 15 projetos selecionados para receber apoio do FIRN, oito são de economia sustentável indígena, quatro de cultura e três de segurança alimentar. Em um deles, chamado Amaronai Ita, mulheres indígenas desenvolvem absorventes de pano que servem a três propósitos principais: geração de renda, diminuição da quantidade de lixo provocada pelo uso de absorventes descartáveis e ajuda a mulheres que moram em aldeias distantes da cidade, que não conseguem adquiri-los com facilidade e muitas vezes se veem sem alternativa viável para passar pelo período menstrual.

Embora não haja iniciativas focadas especificamente em monitoramento territorial, atividade mais diretamente ligada ao combate às mudanças climáticas, esse objetivo também é contemplado, como explica o economista João Luis Abreu, assessor técnico de gestão do fundo.

“A vida das populações tradicionais, especialmente dos povos originários – e no Rio Negro isso é muito claro –, é indissiociada da manutenção da floresta em pé. Gerar renda no território, promover uma boa alimentação, valorizar a cultura, as danças e pinturas, isso tudo é fortalecer a vida dessas populações”, afirma o economista. “Os benzedores, rezadores, pajés, parteiras, caçadores, pescadores e agricultores são pessoas cujos modos de vida estão relacionados à manutenção da natureza. Não precisamos necessariamente fazer projetos para preservar o clima com os povos indígenas. Fazer projetos com os povos indígenas geralmente é preservar o clima.”

Para Valéria Paye, a centralidade desses conhecimentos tradicionais na dinâmica de funcionamento dos fundos também é outro de seus diferenciais. “Não é porque está disponível que estamos dispostos a nos enquadrar em qualquer situação para ter apoio do recurso. Isso é um amadurecimento dos povos indígenas, do processo de valorização de seus conhecimentos e saberes dentro da discussão sobre mudanças climáticas”, diz.

Imagem: Valéria Paye falando sobre o Podáali na COP26, em Glasgow, no ano passado – Divulgação/Coiab

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