Independência em Paris : fusão de arte e política

“Terradorada”, exposição de Márcia Tiburi que reuniu brasileiros e franceses num 7 de setembro sem bandeiras nem hinos

Por Leneide Duarte-Plon, de Paris, no Fórum 21

Se o 7 de setembro no Brasil foi um espetáculo de mau gosto, de manipulação da data nacional, de confissão despudorada de desejos profundos travestidos de verdades, em Paris, a Independência foi festejada sem gritos nem palavras de ordem. Sem bandeiras mas com arte, elegância, inteligência e com o Brasil na cabeça.

No dia do bicentenário da independência, a artista plástica, filósofa, professora, romancista, ativista feminista e ex-candidata ao governo do Rio de Janeiro, Márcia Tiburi, foi o traço de união de brasileiros que moram na França.

Reunindo franceses e brasileiros na sede da prefeitura do 10e arrondissement, a artista inaugurou sua primeira exposição francesa com obras de grande força e beleza, todas habitadas por uma crítica política, seja no retrato caricatural dos cinco generais-ditadores e do atual ocupante do Palácio do Planalto, seja nas camisas pintadas com cabeças de torturadores manchadas de sangue (Brilhante Ustra, Sérgio Fleury, Paulo Malhães, além do admirador de torturadores, o atual ocupante do Planalto) seja nas obras em que a colonização das Américas é mostrada como o início do genocídio dos povos autóctones, como ela demonstra no seu livro « Complexo de Vira-Lata : Análise da humilhação brasileira », de 2021.

A exposição consta de cadernos de croquis, desenhos, pinturas, instalações e livros como objeto de arte e teve uma palestra da historiadora Maud Chirio, além de uma apresentação da prefeita do arrondissement, da curadora e da própria artista.

« A luta contra o fascismo nos dá força e coragem de continuar de cabeça erguida olhando o futuro. O exílio me trouxe muito sofrimento, mas também me deu uma coisa rara, o tempo de elaborar tudo o que mostro hoje. O fascismo é uma guerra contra a linguagem e contra o pensamento e resistimos através do pensamento e da arte. Fiz uma viagem simbólica ao Brasil, um país brutalizado, dominado por oligarcas, por demagogos e agora por fascistas. Vemos a destruição das florestas, dos povos autóctones, dos afrodescendentes, a perseguição dos que defendem os direitos à terra e à vida. Este governo precisa ser vencido pela resistência do pensamento crítico e da linguagem que têm que estar presentes numa democracia. E em uma série de obras, pude cortar a cabeça de muitos torturadores. A solução democrática é a solução simbólica », explicou Márcia Tiburi em sua fala para um grande público que lotou a sala de conferências da Mairie du 10e.

Ameaçada de morte no Brasil, a intelectual polivalente mora em Paris como exilada, onde leciona na Universidade Paris 8, pelo programa Pause, que acolhe professores perseguidos em seus países de origem. Antes de se instalar em Paris, em 2019, Márcia Tiburi passou algum tempo nos Estados Unidos.

« A prática artística e filosófica de Márcia Tiburi é permeada por seu combate contra o fascismo. Seus desenhos, pinturas e instalações são diretamente ligados à memória da ditadura militar (1964-1985) e suas consequências recentes: o fascismo e a eleição de um ex-militar à presidência do país. Em 2015, ela publicou o livro « Como conversar com um fascista », que teve grande sucesso no Brasil e foi traduzido em espanhol e em inglês e desencadeou uma campanha de ódio contra a autora. O diálogo como fundamento da cultura e da democracia continua a ser o tema recorrente de sua obra. As relações entre a imagem e a escrita, a literatura e a pintura estão no centro de sua prática », escreveu Samantha Barroero, curadora da exposição, que ressaltou a importância de fazer coincidir a exposição com a data nacional e as eleições para presidente.

Memória da colonização e da ditadura

As obras da exposição foram produzidas no exílio, num atelier situado nas Grandes Serres de Pantin, cedido pela Ville de Paris graças a uma bolsa do Artist Protection Fund, em 2020-2021.

Em seu texto, a curadora sublinha a estreita ligação das obras com o exílio político da artista que foi vítima de todo tipo de difamação e de ameaças de morte. « As obras evocam a memória ancestral da colonização e a memória recente da ditadura. Testemunham de seu exílio e colocam questões ligadas aos direitos fundamentais de cada indivíduo e de seu estatuto pessoal de mulher refugiada política. O trabalho de Márcia Tiburi insiste na necessidade de uma ecologia política e ética para construir novas relações entre os seres e humanizar os ecossistemas dos quais fazem parte ».

A historiadora francesa Maud Chirio, especialista da ditadura militar brasileira salientou em sua palestra a importância de fazer coincidir a exposição com a data dos 200 anos da independência e criticou o uso da data como propaganda política pelo atual governo :

« Assim como roubou a comemoração dos 200 anos da independência, Bolsonaro tenta roubar a História se colocando como a voz legítima para dizer o que é o Brasil e o que foi a História. Isso é o que o poder de extrema-direita faz há vários anos apresentando-se como o único Brasil possível. Não é por acaso que toda a franja conservadora exibe as cores nacionais como se o verde e amarelo da bandeira tivesse se tornado propriedade dos conservadores. O poder de extrema-direita se apresenta como o único Brasil possível, um Brasil muito conservador, tradicionalista, masculino, no qual a ordem social e racial é respeitada, no qual o povo é trabalhador e obediente, não mobilizado, não autônomo, onde nenhuma diversidade existe, nem diversidade de origem, nem de orientação sexual. Tudo isto é apagado do discurso que pretende falar do único Brasil legítimo, o discurso do poder e o veiculado pelos militares. Esse poder rouba do povo brasileiro a comemoração da independência mas rouba também sua História. A ditadura também instrumentalizou a História fazendo uma releitura dela e mostrando um único projeto possível ».

Para Maud Chirio, ter feito coincidir a data da inauguração da exposição com o 7 de setembro é uma recusa de ver essa História roubada do povo brasileiro.

« É recusar que a única coisa que aconteça seja a imagem nas redes sociais de pessoas fanatizadas e o medo de sair nas ruas para evitar violência. É preciso que o outro Brasil que existe, que vai se reinventar continue a ocupar esses espaços, inclusive os espaços de memória e de comemoração. Este Brasil continuou a existir e a resistir durante esses quatro anos. O outro Brasil deve propor outra História que veicule esperança de futuro. O que esperamos é um futuro no qual Bolsonaro não seja reeleito”, ressaltou Chirio.

A historiadora vê grandes problemas pela frente na nova administração, sobretudo o esvaziamento da administração pública dos militares que se incrustraram em todos os níveis do serviço público.

“Mas vai ser preciso também reconstruir a sociedade política brasileira, profundamente marcada por esta experiência fascista que foi o mandato de Bolsonaro, uma sociedade atomizada, atravessada pelo sectarismo religioso, pelo anti-intelectualismo, por um anti-racionalismo tóxico, uma sociedade brutalizada, uma sociedade que produziu exilados, que exilou Márcia.”

A artista e filósofa foi obrigada a deixar o país por causa da violência da sociedade, as pessoas vinham agredi-la em suas atividades públicas de escritora, militantes totalmente fanatizados pelo clima da época.

« Não é uma ditadura que prende mas foi a violência da sociedade brasileira que levou pessoas ao exílio. Uma sociedade que se desabituou de toda forma de coletivo, de consenso. Essa sociedade precisa de uma transição democrática, de uma alternância a essa experiência autoritária e para isso precisamos de intelectuais, de artistas, precisamos de Márcia Tiburi. O Brasil precisa de você, do que você pode dar como beleza, crítica, sátira como vemos na exposição. Sou fã dos retratos dos generais-presidentes. Essa crítica do poder e da História, heroizada pelos conservadores, será fundamental na reconstrução do Brasil a partir de janeiro próximo e espero que Márcia estará lá com os brasileiros », concluiu Maud Chirio.

No final, Márcia Tiburi agradeceu a solidariedade da França e de Paris com ela e com o Brasil, rendeu homenagem aos povos autóctones de todas as Américas e disse esperar ver « o fim da distopia que vivemos hoje através do fim do capitalismo ».

O evento serviu de base de lançamento da editora « Nossa Éditions », que Marcia Tiburi criou com Simone Paulino, escritora e fundadora da editora Nós, e com a designer Gabriela Castro. O primeiro livro da nova editora – que deverá lançar livros de brasileiras e latino-americanas na França – é uma obra de grande apuro gráfico, «Sous mes pieds, mon corps», romance de Márcia Tiburi.

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