Por Paulo Oliveira (Meus Sertões) e Thomas Bauer (CPT-BA), na CPT-BA
Fotos de pistoleiros em torno de uma mesa com armas longas e munição circularam pelas redes digitais de moradores de Correntina e região, cidade do oeste baiano a 918 quilômetros de distância da capital (Salvador). Desde setembro a violência recrudesceu na região, diante da derrota eleitoral do presidente Jair Bolsonaro (PL)[1].
O motivo da sucessão de ameaças de morte, disparo de tiros, abertura de trincheiras em estradas, destruição de ranchos e cercas é a disputa de fazendeiros por áreas de vegetação nativa do cerrado e repleta de veredas com suas nascentes preservadas pelas comunidades de fecho de pasto, que há mais de dois séculos se estabeleceram na região.
Os fecheiros são um povo tradicional que cria gado e sobrevive do extrativismo e da agricultura de subsistência. Embora reconhecidos oficialmente pelo governo estadual, praticamente não são tomadas providências para preservar o modo de vida e a segurança das comunidades.
O atentado mais recente ocorreu no último domingo (6/11), às 10 horas da manhã. Dois idosos voltavam de campear[2] as 10 cabeças de gado que soltaram há dias no fecho do Capão do Modesto. Seu João, 81 anos, viu um motoqueiro se afastar e outro homem, moreno e alto, cortando o arame e destruindo a cerca instalada para os animais da comunidade não fugirem.
Este pistoleiro tinha uma arma de cano curto na cintura e uma de cano longo, encostada no guidão da motocicleta.
“De quem é o gado que está aqui?” – gritou o criminoso.
Diante da resposta de João*, 81 anos, confirmando ser o proprietário dos animais, o jagunço disse que ia matar tudo, animais e seus donos, caso os bois não fossem retirados do local. Falou ainda que veio do Mato Grosso para resolver a situação e que já tinha abatido uma rês para comer.
“Vocês deram sorte de estar fora do fecho. Seu velho safado”, berrou, enquanto se dirigia em direção a João, que estava montado em uma mula. O pistoleiro com um pedaço de pau retirado da cerca na mão. Em seguida, arremessou a madeira em direção ao idoso que apenas não foi atingido porque o animal em que estava mudou de posição e recebeu a violenta pancada destinada ao vaqueiro. Tudo isso foi testemunhado por Pedro*, 69 anos, que acompanhava o vizinho.
Ainda aos berros, o bandido mandou os dois se retirarem. A essa altura, apontava o rifle para o fecheiro mais idoso.
“Não falei nada, sai devagar porque velho não corre. Minha pressão subiu e passei o resto do dia assustado. Não consegui dormir porque toda hora lembrava da arma apontada para mim” – relatou o pequeno criador.
No dia seguinte, ao ir a Correntina registrar a ocorrência, João se deparou com a burocracia, a morosidade das autoridades e a falta de estrutura para lidar com a violência recorrente no campo, fatores que favorecem a impunidade. No distrito policial, o delegado Marcelo Calçado não estava presente.
O escrivão informou à vítima que o procedimento para entrega de cópia do B.O foi alterado. Ele só pode ser entregue ao comunicante da ocorrência depois que Calçado assinar. O penúltimo boletim de ameaça a um fecheiro, lavrado no dia 16 de outubro, até hoje, 25 dias depois, não tem a assinatura do delegado.
João foi da delegacia ao Ministério Público Estadual (MPE) para ser ouvido pelo promotor Vítor César Meira Matias, que assumiu o cargo em Correntina há pouco mais de três meses. Matias orientou João a pedir apoio ao tenente-coronel Luiz Augusto Normanha de Carvalho, comandante regional da PM, em Santa Maria da Vitória, a 55 quilômetros de distância.
Recém empossado e ainda buscando se inteirar sobre os conflitos na região, o promotor disse que Normanha se comprometeu, verbalmente, a apoiar os fecheiros quando eles precisarem se deslocar para as áreas preservadas. No entanto, o promotor soube que a Polícia Militar não tem veículos suficientes para garantir a segurança dos povos tradicionais. Para resolver a questão, o MPE conseguiu obter a promessa da Câmara de Vereadores, de que uma viatura será cedida para a função.
A estiagem característica neste período que antecede às chuvas na região faz com que as comunidades levem o gado para as áreas preservadas que funcionam como reserva alimentar. Os animais ficam soltos durante três ou quatro meses, enquanto os pastos das comunidades se recuperam. Segundo as associações, há cerca de 120 cabeças no fecho de Capão do Modesto hoje, incluindo as que pertencem ao pessoal do povoado de Matão.
Na última semana, além do atentado a João, foram registradas várias ocorrências de destruição de cercas e de abertura de valas e trincheiras para impedir a passagem dos fecheiros e do gado pelas veredas. A previsão é que o número de casos de ameaça e até de crimes mais graves aumente. No mesmo local onde João foi ameaçado, pistoleiros deixaram uma mensagem na cinta de couro que prendia o cincerro ao pescoço de uma vaca que estava mojando[3]: “-1 SE NÃO TIRA VAI MORRE MAIS VACA (sic) OK”.
[1] “Comunidades na Bahia associam conflitos por terra a eleições” – https://www.dw.com/pt-br/comunidades-tradicionais-na-bahia-associam-conflitos-por-terra-%C3%A0s-elei%C3%A7%C3%B5es/a-63570341. Matéria publicada pela Deutsche Welle (DW), empresa pública de radiodifusão alemã, que transmite programas de rádio, programação televisiva e notícias online para 30 países, incluindo o Brasil.
[2] Procurar o gado.
[3] Prestes a parir
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(*) Nome fictício usado para preservar a identidade da vítima.
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Imagem: Pistoleiros arrumam as armas de longo alcance e a munição que utilizam em escopetas e armas curtas. (Reprodução)