Servidora do ministério da Saúde comenta a política de desmonte dos hospitais federais do Rio de Janeiro e seu impacto para o SUS e para o Brasil. Há um déficit de ao menos 10 mil profissionais e a necessidade de ao menos mais mil leitos
Lúcia Pádua em entrevista a Gabriel Brito, em Outra Saúde
Redução do setor público, privatismo, corrupção, incompetência administrativa. Esse é o pacote de tragédias que toma conta da saúde pública do Rio de Janeiro já há alguns anos. O ministério da Saúde esteve a um triz de não renovar 500 contratos temporários de profissionais da saúde que trabalham nas unidades que funcionam na cidade. Um dia antes do caos anunciado, a pasta fez o prolongamento deles e mais 2.978 médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem e profissionais de gestão e manutenção hospitalar, apoio técnico e diagnóstico. Se tardasse mais, os hospitais corriam o risco de que mais de 500 leitos fossem fechados.
O problema soma-se à revelação do contingenciamento de verbas do MEC, com impacto direto no Complexo Hospitalar da UFRJ e um quadro de aumento da demanda pelo SUS. Desenha-se um cenário catastrófico para os primeiros dias de 2023 no estado. É mais essa bomba que o novo governo já tenta desarmar.
“Estamos, sim, falando de uma política de desmonte que, na verdade, não começou no governo de Jair Bolsonaro”, explicou ao Outra Saúde Lúcia Pádua, servidora do ministério da Saúde que participou de reunião com a equipe de transição da saúde. “É uma política que se aprofundou em 2017 através de dispensas de contratados, esvaziamento das unidades, fechamento de leitos, clínicas e serviços. A rede federal há 12 anos não realiza concurso público e gera um déficit de mais de 10 mil trabalhadores de todas as profissões.” A primeira boa notícia foi a renovação do vínculo de 4 mil trabalhadores do sistema de saúde, que evitou, de acordo com a definição de Lúcia, “uma chacina”.
A rede de hospitais federais do Rio de Janeiro é complexa e remete aos tempos de capital federal, quando diversos centros de alta complexidade foram construídos de forma pioneira no país. O corte de verbas anunciado pelo MEC afetaria o Complexo Hospitalar da UFRJ, que conta com 9 unidades de atendimento de média e alta complexidade.
“A rede federal é responsável pelo atendimento de alta complexidade, cardiopatias graves, transplantes de órgãos, traumatologia, ortopedia, tratamento de câncer etc., serviços que não são ofertados pelo estado e os municípios. Portanto, essa rede tem um papel fundamental não apenas para o SUS no estado do Rio de Janeiro como também para o país, pois os institutos atendem pacientes de todos os estados.”
Ela continua, observando que o que acontece no Rio é um espelho da gestão bolsonarista na Saúde. “Hoje o ministério é dominado por pessoas sem preparo técnico, negacionistas anticiência e militares corruptos. A corrupção é marca da gestão dos hospitais federais, como ficou demonstrado na CPI da Covid. É uma estrutura muito grande, que tem uma soma de orçamento muito alta. Há apontamentos que falam em 30% do orçamento do ministério concentrado nessa rede”, explica.
Ao menos em outras duas ocasiões, 2019 e 2021, a situação foi semelhante. No entanto, como ela mesma descreve na entrevista, o processo vem de longa data, inclusive anterior ao governo de Bolsonaro. Trata-se de mais uma faceta da retomada neoliberal do Estado brasileiro e da inconsequente transferência de seus preceitos constitucionais aos mercados.
“A solução estrutural que estamos discutindo seria um forte aporte de investimentos para criação de um complexo tecnológico hospitalar, com gestão pública, realização de concurso e criação de carreira para valorizar e dar dignidade aos profissionais”, resume.
Leia a entrevista completa.
O que você pode comentar da situação?
Após uma intensa mobilização das entidades e da Comissão de Transição da Saúde, finalmente a medida que autoriza a renovação dos quase 4 mil profissionais de Saúde foi assinada no dia 29, último dia antes do vencimento do prazo para renovação dos contratos desses trabalhadores. Estamos agora em fase de operacionalização da renovação dos contratos dos profissionais que começaram a receber os e-mails para comparecer ao Departamento de Gestão Hospitalar (DGH) do ministério da Saúde no Rio, para assinar os respectivos contratos de prorrogação por 6 meses.
Em 2021 aconteceu algo parecido, com a demissão de cerca de 1,5 mil profissionais. Estamos falando de uma política de desmonte antiga?
Sim, em julho de 2021, portanto no auge da pandemia, o ministério da Saúde dispensou centenas de profissionais e fragilizou ainda mais o precário sistema público de atendimento às vítimas da covid no Rio de Janeiro.
Estamos, sim, falando de uma política de desmonte que, na verdade, não começou no governo de Jair Bolsonaro. É uma política que se aprofundou em 2017 através de dispensas de contratados, esvaziamento das unidades, fechamento de leitos, clínicas e serviços.
A rede federal há 12 anos não realiza concurso público, gera um déficit de mais de 10 mil trabalhadores de todas as profissões. Esse número é produto de um estudo feito pelo próprio ministério da Saúde através de um convênio com o Hospital Sírio-Libanês em 2017, que fez um dimensionamento e chegou a esse resultado.
Acreditamos que hoje tal número seja ainda muito maior, levando em conta o grande número de aposentadorias.
Você fez parte de reuniões com o grupo de transição de governo federal na área da Saúde. O que foi falado a este respeito? Há um compromisso de evitar as demissões e fechamento de leitos?
Sim, tenho participado de reuniões com a equipe de transição onde temos apresentado todo esse cenário caótico pelo qual passa a rede federal nos últimos anos. Estamos apontando caminhos e medidas que precisam ser tomadas logo no início do governo Lula.
No primeiro momento, atuamos fortemente para evitar o que a gente chamou de uma verdadeira chacina, o que estaria prestes a ocorrer com a dispensa de quase 4 mil profissionais. A coordenação de transição atuou junto à Casa Civil para que a Medida Provisória fosse assinada e os trabalhadores pudessem ter seus contratos temporários prorrogados por seis meses.
No segundo momento, após a posse da nova equipe do ministério da Saúde, estamos apontamos a necessidade de realização de concurso público para recompor a força de trabalho, reabrir os mais de mil leitos fechados, criar uma carreira para os trabalhadores da rede federal, pois temos o pior salário da administração pública federal e uma disparidade muito grande entre trabalhadores contratados e servidores estatutários; investimentos financeiros no fortalecimento da rede como um complexo tecnológico hospitalar, a fim de ampliar a prestação de assistência à população do Rio de Janeiro.
Qual a incidência da corrupção na situação aqui exposta?
Esses hospitais e institutos são coordenados pelo DGH, que administra essa rede. É um espelho diminuído do ministério da Saúde, hoje dominado por pessoas sem preparo técnico, negacionistas anticiência e militares corruptos. A corrupção é marca da gestão dos hospitais federais, como ficou demonstrado na CPI da Covid.
É uma estrutura muito grande, que tem uma soma de orçamento muito alta. Há apontamentos que falam que 30% do orçamento do ministério está nessa rede. Eles têm sob sua gestão orçamento maior do que muitos ministérios. É muito dinheiro, cargo, poder e impacto na vida do estado. A corrupção é um problema a ser enfrentado pelo novo governo, é um fato.
Infelizmente, a CPI da Covid não teve tempo de se debruçar nas questões levantadas, como fraudes encontradas em contratos de prestação de serviços de alimentação, limpeza, compra de material hospitalar, obras, coisas que foram demonstradas na CPI.
Um filão diferente do restante da relação do ministério com os estados na gestão do SUS.
Só o Rio de Janeiro tem uma rede federal de hospitais. Ela chegou a ser municipalizada, mas no início do primeiro governo Lula estava totalmente sucateada e desarticulada. Ela foi refederalizada e voltou à gestão do ministério da Saúde. Foi feito concurso público e mais de 10 mil servidores foram contratados. A rede ficou forte e a produtividade muito alta. Porém, todo esse esforço foi se perdendo nos anos seguintes, com uso político de sua direção, que se tornou moeda política…
Quais seriam as consequências para os cariocas e os usuários do SUS? Como projetar tal cenário num contexto onde está clara a tendência de maior uso do sistema público de saúde no período próximo?
A rede federal é responsável pelo atendimento de alta complexidade, cardiopatias graves, transplantes de órgãos, traumatologia, ortopedia, tratamento de câncer etc. Serviços que não são ofertados pelo estado e os municípios, portanto, essa rede tem um papel fundamental não apenas para o SUS no estado do Rio de Janeiro como também para o país, pois os institutos atendem pacientes de todos os estados.
Quais seriam as soluções estruturais para o que debatemos aqui?
A solução estrutural que estamos discutindo seria um forte aporte de investimentos para criação de um complexo tecnológico hospitalar, com gestão pública, realização de concurso e criação de carreira para valorizar e dar dignidade aos profissionais.
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Hospital Federal do Andaraí, no Rio de Janeiro