Criada durante o governo Bolsonaro para driblar o teto de gastos e garantir o programa Médicos Pelo Brasil, a Adaps está sob avaliação do atual ministério. O sanitarista Heleno Corrêa Filho explica o que essa agência representa e por que deve ser desmontada
Por Gabriel Brito, em Outra Saúde
Heleno Corrêa Filho em entrevista a Gabriel Brito
Pouco notada, a Portaria 89 publicada pelo ministério da Saúde em 3 de fevereiro reitera a dicotomia entre público e privado na disputa pelo Estado brasileiro. A normativa “institui a Comissão de Avaliação, Acompanhamento e Supervisão dos Atos de Gestão Administrativa e dos Atos Finalísticos da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde – Adaps”. Adaps é uma agência criada no bojo do programa Médicos pelo Brasil, invenção de Bolsonaro para expulsar os profissionais cubanos de saúde do país, mas que na prática mal saiu do papel.
“Por decreto se criou uma estrutura governamental semelhante às demais agências. E já existe no Brasil uma experiência: toda vez que se pretende caminhar na direção da economia do Estado mínimo, cria-se uma agência e retira-se a função estatal do controle público e a possibilidade de que tal função seja acompanhada, como orçamento, metas, desempenho, objetivos, uma coisa clássica da economia neoliberal. A Adaps e suas regulamentações eram brechas para que a oposição e o pessoal a favor do Estado mínimo pudessem penetrar no Estado”, explicou Heleno Corrêa Filho, médico sanitarista e epidemiologista, ao Outra Saúde.
O ponto fundamental é a Adaps ser praticamente um concorrente não declarada do ministério da Saúde na condução de políticas públicas do setor. Iniciativa de uma bancada ultraconservadora que nunca teve interesse em fazer o SUS funcionar, simbolizada pelo ex-ministro Ricardo Barros, a agência é uma manobra para driblar as amarras fiscalistas de viés neoliberal. No entanto, em favor apenas da iniciativa privada.
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Para escapar do sufocamento dos investimentos sociais emplacado pelo governo Temer, através do chamado teto de gastos (EC-95), o financiamento deste tipo de ente público seria registrado como “contrato de terceiros”. Os recursos são direcionados a organizações privadas que gerenciam serviços do SUS (a exemplo das Organizações Sociais de Saúde). Ou seja, se a despesa estatal em saúde se desse em favor de grupos privados, as regras de “teto” não se aplicariam.
“De um lado a cruz, do outro a caldeirinha. A cruz é a Lei de Responsabilidade Fiscal, a caldeirinha é a EC-95. Enquanto isso vigorar, as soluções como a tal da Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária vão sempre pipocar em tudo que é lugar. Porque é mais fácil fazer uma agência, fugir do orçamento e dizer que o dinheiro gasto na agência não é despesa de Estado, é gasto contratado, e assim contratar terceiros, contratar organizações não governamentais ou Oscips e toda essa variedade de formas de jogar dinheiro no ralo e colocar o Estado a serviço de terceiros”, explicou Heleno.
Mais Médicos em disputa
E, como dito pelo entrevistado, não houve avanço concreto na atenção primária em saúde neste período. Agora, com a retomada do Mais Médicos, a agência inclusive tenta se associar aos resultados positivos do programa criado pelo governo Dilma. A este respeito, Heleno Corrêa Filho aproveita para alertar sobre as brechas que a nova versão do Mais Médicos precisaria tapar, uma vez que o discurso reacionário e corporativista voltará a rugir.
“Os buracos (do primeiro Mais Médicos) eram a ausência de vínculos empregatícios com direitos previdenciários; a falta de compromisso com a revalidação imediata do diploma obtido no estrangeiro com apoio administrativo; trâmites burocráticos governamentais obrigatórios; oferta de cursos de eventual capacitação para aprovação nos exames de revalidação; controle pelo SUS da comissão do MEC que bloqueou o ‘Revalida’, controlada por uma máfia corporativa contrária a exame de caráter geral em medicina que reprovava mais de 95% dos médicos formados no estrangeiro, inclusive EUA e Europa; e falta de bônus para promoções e incorporação ao SUS daqueles que desejassem ficar nos locais para onde foram enviados”.
Como analisa a portaria que cria uma Comissão Permanente de Avaliação de Documentos da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária em Saúde (Adaps), um programa criado em 2019?
Não precisa sequer avaliar. A Adaps é um entulho autoritário, fruto do golpe de 2016, que precisa fechar. Mas tem uma complicação, que parece uma tecnicalidade jurídica, pois a instituição da Adaps é fruto de uma lei ordinária do congresso, votada com maioria do centrão. Na época do general Eduardo Pazuello no ministério da Saúde, foi feito um decreto para regulamentá-la. Se foi criada por decreto, que por decreto fosse destituída, logo em 1º de janeiro. Depois o governo poderia negociar aspectos da lei. Há centenas de leis que nunca foram regulamentadas e o governo não é obrigado a seguir.
Fato é que por decreto se criou uma estrutura governamental semelhante às demais agências. E já existe no Brasil uma experiência: toda vez que se pretende caminhar na direção da economia do Estado mínimo, cria-se uma agência e retira-se a função estatal do controle público e a possibilidade de que tal função seja acompanhada, como orçamento, metas, desempenho, objetivos, uma coisa clássica da economia neoliberal. Em associações que eu participo, como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), o Instituto Walter Leser, em todos os lugares onde pisamos como sanitarista e especialista em saúde, rejeitamos tal metodologia.
Dessa forma, ao se criar uma portaria e dizer que se estudará a situação parece que o problema é falta de coragem para fechar a agência. Essa é a minha interpretação. A maioria dos sanitaristas tem essa interpretação. Sanitarista a favor da criação de agência não é a favor da saúde pública, é sanitarista quinta coluna.
Numa entrevista de 2019, na introdução das MP-890, que criava o Médicos pelo Brasil, você falava que a Adaps seria um cavalo de troia e criaria a possibilidade de porta dupla no sistema de saúde, entre outras brechas para o privatismo. Como foram esses quatro anos de Adaps na prática?
A Adaps e suas regulamentações eram brechas para que a oposição e o pessoal a favor do Estado mínimo pudessem penetrar no Estado. Era previsível que organizações reacionárias como o Conselho Federal de Medicina – hoje uma das organizações mais fascistas do Brasil, repetindo o que aconteceu na época de Hitler quando os médicos foram uma das categorias que mais aderiu ao nazismo na Alemanha – apoiassem.
No Brasil era previsível que um movimento de extensão da atenção em saúde, não só atenção médica, à população pobre e afastada recebesse rejeição das categorias corporativas, notadamente a categoria médica, que entende como reserva de mercado um povo pobre desassistido. Éramos favoráveis ao Mais Médicos, mas era necessário tapar seus furos. Você não joga um navio no mar com escotilha aberta. Vai vazar a água, vai entrar. E foi por aí que entrou. A reação da corporação médica foi virulenta, a ponto de médicos que viraram destaque na administração do general Pazuello irem gritar na orelha de médicos cubanos, como naquela cena que se tornou clássica no aeroporto de Fortaleza. Essa médica da foto célebre veio a se tornar expoente do ministério da Saúde de Bolsonaro.
Ainda que o programa fosse necessário e possa ter uma série de disposições retomadas, havia brechas para a oposição reacionária. Para o seu retorno, é necessário tapar alguns buracos a fim de evitar a gritaria reacionária e corporativa.
Quais teriam sido esses buracos na concepção do Programa Mais Médicos e como poderiam ser corrigidos pelo novo governo, que já anunciou o retorno do programa?
Os “buracos” eram a ausência de vínculos empregatícios com direitos previdenciários; a falta de compromisso com a revalidação imediata do diploma obtido no estrangeiro com apoio administrativo; trâmites burocráticos governamentais obrigatórios; oferta de cursos de eventual capacitação para aprovação nos exames de revalidação; controle pelo SUS da comissão do MEC que bloqueou o “Revalida”, controlada por uma máfia corporativa contrária a exame de caráter geral em medicina que reprovava mais de 95% dos médicos formados no estrangeiro, inclusive EUA e Europa; e falta de bônus para promoções e incorporação ao SUS daqueles que desejassem ficar nos locais para onde foram enviados.
Com esses “rombos” estruturais era previsível todo o discurso xenofóbico de médicos incompetentes contra seus “concorrentes” estrangeiros, criando brechas para ações judiciais e campanhas políticas de lobistas que de fato aconteceram como uma profecia autocumprida.
Uma outra coisa importante seria fechar acordos diplomáticos com os países de origem dos médicos estrangeiros para receberem direitos previdenciários e salariais quando eventualmente retornassem para países como Costa Rica, Guatemala, Nicarágua, Cuba e até EUA, tal como existem acordos do INSS brasileiro com Portugal e Itália, e muita gente desconhece.
Uma coisa especial seria direito de aposentadoria no Brasil, caso ficassem, e contagem de tempo para aposentadoria nos países de origem após o retorno. Com esses direitos planejados ou pelo menos prometidos a fascista cearense não teria como ficar xingando e gritando no ouvido dos médicos cubanos, nem os ministros do STF acolheriam ações judiciais reclamando que médicos cubanos “eram escravos” ou até senadores dizendo que eram “espiões”.
Na prática, a Adaps não acrescentou nada à promoção da atenção primária?
Não. E nem poderia ter sido criada. Se foi criada por lei, não poderia ser regulamentada por decreto. Se foi regulamentada por decreto, não poderia existir. Mas ela existe concretamente, tem um monte de gente trabalhando lá e há uma percepção social de que quem foi trabalhar nessa agência o fez por conveniência salarial, não por convicção, porque os salários das agências são superiores aos do funcionalismo público regular, mesmo para fazer uma função igual. Atrair pessoas por salário e não por qualificação técnica não é uma boa coisa.
E quais os desafios centrais da Atenção Primária à Saúde neste início de governo?
Antes da Emenda Constitucional 95, que manteve saúde, educação e serviços sociais garroteados e sem dinheiro até 2036, existia a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que deveria ter sido revogada. Essa LRF (criada em 2000 no governo de Fernando Henrique Cardoso) é produto da direita chamada moderada, que é a direita banqueira; ela quer que o Estado conserve orçamento para poder manter os bancos nutridos dos juros mais elevados do mundo.
Antes disso, já tinha essa lei que impedia que prefeitos, governadores de estado e o próprio governo federal investissem em saúde e educação porque eram consideradas despesas extraordinárias. Quando veio a EC-95, em 2016, início do governo Temer, veio o arrocho de um orçamento que já era contingenciado, já era preso. As visões neoliberais de saída dessa lei não foram revogá-la para criar uma Lei de Responsabilidade Social, que existe tramitando há quase 20 anos no Congresso.
Ou seja, não tem como desresponsabilizar agentes públicos de Estado que deixam as pessoas morrerem de fome e sem assistência. Uma Lei de Responsabilidade Social faria isso. Pelo contrário, o que temos é uma lei econômica a dizer: “não pode gastar dinheiro com pobre”. E nesse sentido, o apelo feito pelo Lula ao Banco Central é esse: incluir uma meta social. Mas ele só consegue isso se sairmos do Estado mínimo, revogarmos a EC-95 e voltarmos um pouco atrás com as alianças que ele tem, o que é muito difícil.
De um lado a cruz, do outro a caldeirinha. A cruz é a LRF, a caldeirinha a EC 95. Enquanto isso vigorar, as soluções como a tal da Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária vão sempre pipocar em tudo que é lugar. Porque é mais fácil fazer uma agência, fugir do orçamento e dizer que o dinheiro gasto na agência não é despesa de Estado, é gasto contratado, e assim contratar terceiros, contratar organizações não governamentais ou Oscips e toda essa variedade de formas de jogar dinheiro no ralo e colocar o Estado a serviço de terceiros.
Quem optou pelo Estado mínimo ou pelas agências optou contra desenvolver a atenção primária no SUS. Pega-se bairros inteiros de grandes cidades brasileiras e vende-se para organizações terceirizadas, que prometem saúde e atendimento. Essas organizações vão querer lucro. Assim, aquilo que “dava prejuízo”, que é o Estado contratando posto de saúde, hospital, policlínica, de repente passa a “dar lucro”. E aí todo mundo quer comprar. Sendo que a liderança de quem quer comprar é do pessoal do centrão, até hoje liderado pelo cara que ajudou a fazer tais coisas, o ex-ministro da saúde Ricardo Barros, que vendeu a saúde para ele mesmo.
Ou seja, criaram-se subterfúgios para que despesas do Estado com saúde que passem pela mão da iniciativa privada não entrem na conta do teto.
Sim, a LRF permite que recursos humanos, do médico ao porteiro, do motorista da ambulância ao carregador de maca, não sejam considerados orçamento público. É considerado contrato de terceiros, através de empresa. Como não é orçamento de recursos humanos, não entra na mesma rubrica, foge das limitações da antiga LRF. Esse era o objetivo. Em que pese tudo isso, continuam as restrições da EC-95. Não pode gastar dinheiro com saúde. Se entrar na rubrica saúde vai bater no teto.
Traz-se uma briga para dentro de casa. Quem está gastando dinheiro contratando terceiros não vai ter interesse em contratar funcionário para o ministério da Saúde ou para o funcionalismo estadual e municipal, porque já está gastando com a agência que contratou para lhe vender serviço, a Adaps. Assim, uma briga que era do congresso e pelo orçamento com o ministério da Economia do Paulo Guedes vem para dentro do próprio terreno do ministério da Saúde. E manda-se o ministro da Saúde resolver com o dinheiro empenhado na tal da Adaps para outras finalidades. É óbvio que não vai ter grana pra contratar técnico, gestor, um monte de outras coisas que precisaria fazer. Se duvidar, vai faltar dinheiro para remédio e vacina.
Ainda nesse sentido, estamos falando de uma política fiscal que você coloca como trava histórica, imposta desde antes de 2016, quando aparece a EC-95. Agora, vemos debates intensificando entre os defensores da autonomia do Banco Central e os críticos não alinhados ao “liberalismo econômico à brasileira”, que colocam as posições do BC como uma barreira ao governo Lula, inclusive uma barreira politizada. Como você observa essa questão e como ela vai repercutir no financiamento do SUS e nos desafios da saúde brasileira, depois de toda uma luta para recompor um orçamento mínimo?
Na prática o Banco Central come orçamento público. Quando se elevam os juros, eleva-se a quantia de dinheiro do orçamento retirada das funções públicas para pagar juros a banqueiro. O Banco Central brasileiro está trabalhando a favor de quem montou sua “independência”, isto é, os próprios banqueiros. E se eles têm de cuidar de alguém, vão cuidar primeiro deles mesmos.
Lula é corajoso ao não recusar o debate, mesmo sabendo que Globo, Folha de S. Paulo, a mídia chamada da corrente principal, virá bater em cima na hora que ele reclamar dos juros do Banco Central. Já estão fazendo isso. O interessante é que começa a vazar, até vi um pequeno clipe da CNN em que alguém diz “todo mundo está batendo no Lula, mas ninguém ouviu a versão dele”. Ele tem conseguido furar a bolha. Ele está sendo politicamente mais corajoso do que nas circunstâncias anteriores, quando tentava contemporizar com o BC da época do Henrique Meirelles.
Enquanto isso, temos visto debates de algumas categorias da classe trabalhadora, como a enfermagem, que de certa forma significam a briga por uma fatia maior do orçamento. O movimento de saúde vai ter de entrar mais a fundo no debate econômico?
Realmente, estamos lutando contra muitos dragões ao mesmo tempo. E talvez o Lula esteja seguindo um pouco da sabedoria do Ho Chi Min: “um inimigo de cada vez, tendo os outros como aliados”. Mas não sei se é prático no momento ir por tal via e estou dando um crédito de confiança ao governo que se iniciou em janeiro, primeiro porque é a nossa única alternativa atual para combater o fascismo, coisa que está fazendo de fato. Segundo, porque está colocando atores sociais em jogo, que podem se destacar na mídia, na educação popular, na discussão do boca a boca na rua. Essa disputa está mais equilibrada do que há um ano.
Não tenho a visão de que nós vamos, por exemplo, conseguir que o Banco Central volte a responder por políticas públicas, com um Congresso desses na mediação. Não penso que a Adaps, que deveria ser fechada no primeiro dia, o será, a exemplo da Funasa (Fundação Nacional de Saúde), fechada no dia de entrada. Lula botou o pé no tapete da sala do Palácio e fechou a Funasa. A fundação era um problema, nem os gestores mais honestos tinham conseguido dar uma solução e fechá-la logo no primeiro dia de governo foi uma medida corajosa.
A Adaps deveria fechar, mas não sei se há força política. E agora há um processo em que grupos técnicos que se bandearam para a agência estão justificando a própria existência, dizendo coisas como se o Mais Médicos, por exemplo, existe e deu algum resultado é porque eles colaboraram. É mentira, eles não colaboraram. A Adaps foi criada para furar o programa Mais Médicos. Agora, reescrevendo a história, fica parecendo que o Mais Médicos recebeu ajuda da Adaps recém-criada. Isso não aconteceu. As pessoas estarem na Adaps hoje e reportarem resultados positivos no programa Mais Médicos é uma coincidência histórica, não é produto do trabalho da Adaps*.
Não podemos ter a ingenuidade de pensar que resolveremos isso no primeiro momento, mas devemos reconhecer que alguma coisa pode acontecer de positivo se soubermos quem estamos enfrentando. Eu não tenho nenhuma aspiração de continuidade com o modelo de criação de agências para substituir o Estado. Eu acho que isso é básico, inclusive para quem pensa saúde pública de modo geral. Não é somente um pensamento da esquerda, é também da chamada direita esclarecida, que hoje não sabemos bem onde anda.
* O autor refere-se a este artigo publicado no site da Adaps.