O Bandido e o Vagabundo: o discurso sangrento da ‘Grande Mídia’ que defende a branquitude e condena à morte as favelas

Editorial do RioOnWatch

O comentarista de opinião da rede CNN Brasil, o veterano Boris Casoy, no dia 22 de junho de 2022, analisava a prisão preventiva de Milton Ribeiro, em Santos, São Paulo. O ex-ministro da Educação do então presidente Jair Bolsonaro era acusado de cometer pelo menos quatro crimes: tráfico de influência, prevaricação, corrupção ativa e passiva. O jornalista interpretou o episódio da seguinte maneira: “A polícia às vezes é muito afoita, me parece querer solucionar casos com muita rapidez. Isso é muito perigoso. Não sabemos os indícios que justificam essa prisão. É preciso ter cautela, pois podemos estar diante de um linchamento”.

Antes do comentário de Boris, seu parceiro de emissora, Rafael Colombo, foi ainda mais cauteloso e assim relativizou o fato: “Tudo nos leva a imaginar que são dados consistentes, mas temos sempre que ressaltar o princípio da presunção da inocência, que é um direito de todos nós”.

Quase um mês depois, esse zelo reservado ao ministro de Bolsonaro, com presunção de inocência, não estava presente no editorial da mesma CNN Brasil, quando, em mais uma operação realizada pela Polícia Militar (PMERJ), no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, 18 moradores de favela foram executados. Essa operação se tornou a quarta chacina policial mais letal na história do Rio de Janeiro. Ao invés de decisão judicial baseada em provas e uma pena sendo legalmente executada e cumprida, como no caso de Milton Ribeiro, dessa vez, moradores de favelas, negros e pobres, eram executados extrajudicialmente, sumariamente, sem direito à presunção de inocência, à defesa, a um advogado ou a um julgamento justo. Na favela, as pessoas às vezes não têm nem o direito de serem presas: são executadas. É comum escutar de mães, que choram por seus filhos vítimas do Estado: “Por que mataram meu filho?” Querem entender, e perguntam em sequência: “[Se o acharam culpado] por que não prenderam ele?”. Nas favelas, as pessoas ainda lutam pelo direito de serem democraticamente presas e julgadas, quando suspeitas de um crime.

Sob o governo de Cláudio Castro (PL), em apenas um ano de gestão, o Rio de Janeiro viveu uma sequência de 39 chacinas com 178 mortes promovidas pelas polícias. As informações são do levantamento realizado pelo Instituto Fogo Cruzado, que reúne dados sobre a violência armada, em conjunto com o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF).

Entretanto, ao se comparar a narrativa midiática, que relativiza tanto o poder de prender, quanto o poder de matar das autoridades policiais, de acordo com os recortes de classe, raça e território de origem da população, as diferenças são impressionantes. O ex-ministro tem nome, sobrenome, trajetória política e “direito a ter direitos”, enquanto a população que sofre desproporcionalmente mais com a violência policialdiscursiva e simbólica—negra e de favela—recorrentemente encontra sua prisão e/ou condenação à revelia de provas e até mesmo de crimes.

Quando as circunstâncias de uma chacina em uma favela, perpetrada pelas forças de segurança pública, são investigadas, recorrentemente surgem, na linguagem oficial, presente em inquéritos e processos, e na mídia, expressões moralizantes e estigmatizadoras, calcadas em séculos de racismo estrutural, sobre quem “merece” morrer ou viver.

Criam-se dualidades e oposições que perpetuam diferenças sociais, dispositivos da colonialidade luso-brasileira ativos até os dias de hoje. É recorrente encontrar, quando se tratam de vítimas de confrontos armados ou da brutalidade policial, o uso de expressões totalizantes como “trabalhador”, “bandido”, “inocente”, “suspeito” e “vagabundo”, que já involucram em si uma sentença de culpa ou de inocência, independentemente do devido processo legal, de julgamentos, dos direitos humanos e da própria lei. Nesse caso, esses “tribunais” são supremos, suas decisões são finais, não oferecem chances de recurso, funcionam nos becos e vielas, na rua mesmo, com base no poder discricionário e social conferido às forças policiais.

A mídia tradicional e os policiais são, ao mesmo tempo, juízes, acusadores e executores da pena.

Diferentemente da relativização moral conferida a um ministro de Estado acusado de crimes contra patrimônio público, a mídia trata as favelas sem o benefício da dúvida, sem presunção de inocência, com culpabilidade independente de provas, recorrentemente condenando cidadãos que estavam “no lugar errado e na hora errada”. Como Bóris Casoy disse no caso do ministro, a polícia pode ser “afoita e solucionar casos com rapidez”. No entanto, enquanto no caso das favelas isso se concretiza com massacres (como a Chacina do Jacarezinho), no caso de Milton Ribeiro, ministro da educação de Bolsonaro, isso se fez com uma prisão por menos de 24 horas em uma sala especialmente montada para ele na sede da Polícia Federal, em São Paulo.

Se analisarmos a história do Brasil, o país criou uma série de instituições políticas, jurídicas e policiais para prender e subjugar a população negra escravizada e seus descendentes, criminalizando tudo o que fizesse referência às suas origenscrenças e formas de vida. A evidência mais explícita, descrita em minúcias no livro Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e Resistência numa Cidade do Século XIX, de Thomas Holloway, retrata como a capoeira foi um dos alvos preferenciais das autoridades policiais desde a abolição da escravatura. Essa dança-luta era enquadrada na categoria das “ofensas à ordem pública”, uma cultura indesejável, logo um crime. O trabalho da polícia é, desde sua origem, moralizante, pois regula os hábitos privados e públicos da população negra e de seus territórios de origem e moradia. Junto aos crimes contra a ordem pública, havia outros dispositivos legais que permitiam a polícia vigiar e punir comportamentos “moralmente questionáveis”, que supostamente trouxessem alguma ameaça à sanidade moral da sociedade.

A partir dessa realidade, cria-se um grande conjunto de categorias morais para classificar os “não-civilizados” e, entre eles, identificar aqueles que podem viver e os que podem morrer: separar quem merece empatia, pena ou ódio. Categorias sociais—como capoeira, vadio, mendigo, bandido, vagabundo, criminoso, traficante, suspeito, cidadão de bem, trabalhador, pai de família e morador—passam a ser sentenças, a determinar a vida de milhões de cidadãos brasileiros.

Categorias Morais com Resultados Bastante Concretos

O ódio ao bandido negro de favela e, por consequência, à pobreza, é mais do que a produção sistemática de estereótipos. É estrutura. Ela molda e é parte das nossas categorias de pensamento historicamente construídas. Como afirmavam os escravistas e os racistas científicos de séculos atrás, o ex-governador Sérgio Cabral defendeu a legalização do aborto como forma de conter a violência no estado, afirmando que as mães faveladas são “fábricas de produzir marginal”. Cabral, no entanto, ao se tornar um notório criminoso, preso em regime fechado por seis anos, entre novembro de 2016 e dezembro de 2022, mesmo com suas penas somando centenas de anos, referentes a múltiplas condenações na Operação Lava Jato, não foi retratado como fábrica de marginal, não teve seus filhos, sua família, seus vizinhos e seu bairro criminalizados pela mídia e pelos aparelhos de repressão do Estado.

Protegido por sua branquitude e classe, assim como Milton Ribeiro, Cabral não é presa da sujeição criminal, termo cunhado pelo sociólogo Michel Misse. Ele é representado e tratado como o ex-governador preso, como o político preso ou até mesmo como preso político, mas não como um criminoso perigoso. Ele ficou por longos períodos preso em batalhões dos bombeiros e da Polícia Militar, ao invés de em presídios comuns, comprovadamente contando com regalias. Ele teve até o espaço midiático e o direito de se arrepender, um direito impensável quando se trata de pessoas negras de favela, sobretudo as presas por tráfico de drogas.

Para o senso comum, o “vagabundo” que coloca a sociedade em perigo, em geral, é o preto de favela. O criminoso de terno e gravata é suspeito até que tenha seus processos transitados e julgados, e tenha sido condenado em última instância, contando com audiências de custódia, três instâncias judiciais, apelações, direito a habeas corpus, à prisão domiciliar, à tornozeleira eletrônica, à fiança ou até mesmo com direito à soltura por ser mãe. Esse foi um caso emblemático protagozado pela esposa de Cabral, Adriana Ancelmo que, mesmo condenada a 18 anos e três meses de prisão pelo crime de lavagem dinheiro e por ser beneficiária do esquema de corrupção comandado por seu marido, teve sua soltura decretada por ter filhos menores de 12 anos. O Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes emitiu a decisão baseado no fato dela ser mãe, para que não houvesse “punição excessiva” à mulher ou à criança.

Enquanto isso, milhões de outras mães permanecem presas em regime fechado e milhares de mulheres dão a luz a seus filhos presas no Brasil todo ano. Enquanto, segundo Gilmar Mendes, Adriana e seus filhos são vítimas da punição que o Estado determinou pelo crime que ela comprovadamente cometeu, outros milhões não têm nem direito à defesa ou a um julgamento justo.

É a partir de casos emblemáticos da história recente da narrativa midiática e oficial que se pode afirmar que as categorias sociais que moralizam e justificam a eliminação do outro são tão responsáveis pelas chacinas e pelo genocídio negro quanto as balas da polícia. A polícia, os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público agem de acordo com o que é socialmente legitimado e, portanto, são agentes moralizantes, embebidos da moral advinda do senso comum. Se a mídia e a sociedade legitimam assassinatos e execuções extrajudiciais como método de aplicação da justiça, é isso que as polícias vão entregar à sociedade. Uma mudança à nível discursivo na mobilização dessas categorias poderia ter impactos positivos, no médio e longo prazo, na redução da letalidade policial nas favelas e periferias. Uma nova pedagogia jornalística é necessária.

Sobre a artista: Estevão Ribeiro é escritor, ilustrador e roteirista audiovisual. É autor da tirinha antirracista Rê Tinta, publicada no instagram @renatatinta.

 

 

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