Como a polícia utiliza a fé pública para matar e lucrar

Quando o sangue é derramado em qualquer operação policial, a voz do agente segue tendo valor de prova quase absoluto em relação a todos os outros relatos. Essa boa vontade excessiva com a polícia tem nome e sobrenome jurídico: fé pública

Matheus de Moura e Thales Cruz, Le Monde diplomatique

Nota-se, em algum momento entre a infância e a adolescência, que há, na forma como a luz reflete em nossas peles, algo que dita o lugar que ocupamos na sociedade. É caminhando pelas ruas gélidas de um inverno em Florianópolis ou sentindo os órgãos serem esmagados pelos outros corpos num ônibus atolado de São Gonçalo no calor dissipado do fim de tarde de veraneio fluminense que, eventualmente, você se entende enquanto o “outro”. Um outro que equivale a mais de 50% da população; o negro, preto, pardo, marrom, retinto, jambo, enfim um personagem racial no teatro de poder do cotidiano brasileiro. Quando a ficha cai, o sentimento de estranheza para com a polícia se aflora. Os olhares suspeitos, a sensação de que o coração deverá sair pela boca, de que é irremediável o conflito celeste entre sua vida ensimesmada, seguindo reto para um objetivo obscuro, e a vida dele, que veste uma botina grossa, um uniforme ridiculamente quente para nosso espectro tropical-subtropical e carrega consigo um brinquedo de furar moletom. É quando o medo da polícia, que supostamente deveria protegê-lo, quando o asco pelo fardado ultrapassa mera noção midiática e ganha significado pleno que você entende, mesmo que sem sabê-lo, que a polícia não detém “monopólio legítimo da violência”, que de legítimo há pouco, a depender do caso.

Eu e Thales, meu colega com quem escrevo este ensaio, dividimos com pelo menos 51% da população brasileira o medo pela polícia, segundo uma pesquisa do Datafolha de 2019, uma pesquisa que também constatou que nem metade do povo confia nos fardados. A tal legitimidade imbuída pelo sociólogo Max Weber é, na prática, pouca e volátil. Morador de favela, preto, indígenas, artistas, políticos e até alguns pequeno-burgueses de zona sul. Todos dividem, eventualmente, alguma desconfiança misturada com medo da polícia. Seja por traumas com operações, por intoxicação com bombas dispersivas em manifestações ou até receio quanto à agressividade numa abordagem, a legitimidade do comportamento policial é baixa ou nula. Os[1] Panteras Negras, por exemplo, levavam esse discurso ao extremo, pensando que, se um gueto/favela nos EUA é um território ocupado pelo próprio Estado genocida dos EUA, então a polícia é um órgão invasor e ilegítimo a manter uma colonização interna.

Ponto é: as instituições de segurança pública seguem construindo uma mesma noção de agente exógeno e invasor em comunidades de todo Brasil. Só em 2022, as polícias fluminenses cometeram 29% dos homicídios do Rio de Janeiro. A legitimidade cai por terra para os 51% apavorados — e com razão. Todavia, as mesmas pessoas amedrontadas pela figura bélica que ronda os bairros e escancara as portas de barracos podem legitimar pontualmente a atuação do opressor, quando este recuperar um celular perdido, espancar um estuprador, matar um inimigo, agir como age, por fim, porém com alguém que julgue ser merecedor de tortura e dor. Cria-se assim uma sociedade com uma relação aterrorizada e ambivalente para com seus vigilantes oficiais. E, ainda assim, quando o sangue é derramado em qualquer operação policial em qualquer estado do Brasil, a voz do agente segue tendo valor de prova quase absoluto em relação a todos os outros relatos — isso quando eles são ouvidos. Seja perante o inquérito, seja perante o juiz, ou até mesmo da mídia, o policial fala, alguém anota e fica por isso mesmo: de repente, todo mundo é bandido, todo tiro foi dado em autodefesa, por justa reação.

Essa boa vontade excessiva com a polícia tem nome e sobrenome jurídico: fé pública. O Estado, numa prerrogativa de se blindar contra a obrigação de ter que fundamentar cada passo dado em suas rotinas administrativas e burocráticas, tem como instituto a presunção da legalidade, legitimidade e veracidade, pilares da fé pública. Ou seja, tal instituição é da ordem do direito administrativo, mas, em algum momento, passou a ser usado como fundamento no processo penal tornando o depoimento do policial como prova, produzindo uma aberração jurídica. E embora não haja leis tão abertamente abordando a fé pública policial, ela é abertamente garantida em inúmeros acórdãos, entendimentos de turmas e súmulas, o policial detém fé pública em seu testemunho. Isso ocorre mesmo em situações de assassinato cometido por fardados em serviço porque a morte ela é um pressuposto possível da atividade policial no Brasil. Aqui, o agente do estado sai armado e com liberdade para se defender belicamente caso venha a encontrar ‘bandidos’ armados e/ou com intenções malignas para com estes. O fardado não é tão somente um servidor público de gabinete, mas também e principalmente um servidor de atuação urbana, nas ruas. Sua atividade perpassa as mazelas da violência urbana e, portanto, aos olhos da lei, a morte passa a fazer parte do seu cotidiano tanto quanto apreensão de objetos roubados. Em outras palavras, o ato de matar é um ato tanto penal quanto administrativo, porque corresponde às possíveis expectativas do que um agente deve e pode fazer em serviço.

No Rio, a auto defesa contra um criminoso que deveria ser preso, mas acaba entrando em modo de ataque, se chama ‘auto de resistência’ e é um pressuposto da atividade administrativa policialesca. Em primeiro lugar, é válido destacar que não existe uma tipificação penal para isso, já que o auto de resistência é meramente uma classificação administrativa da Polícia Civil criada para diferenciar do homicídio doloso, mostrando que o policial, ao usar da letalidade, atuou de forma legal e protocolar, impedindo o agente de sofrer medidas punitivas até o julgamento. Portanto, ele nasce na delegacia, quando o policial faz o Registro de Ocorrência e preenche o Termo de Ocorrência. O que Michel Misse nos mostra, é que os testemunhos dos policiais envolvidos naquilo costumam ser praticamente idênticos e padronizados. Eles começam fundamentando o motivo de estarem naquela área, normalmente para cumprir seu papel de reprimir o tráfico, porém, se veem forçados a reagir a “injusta agressão” quando os “elementos” começam a atirar, num conflito que, segundo suas palavras, adaptadas pelo escrivão, resulta na morte do “nacional”. Portanto, o processo de incriminação do sujeito começa ali, com o aval do delegado, que estrutura a Dinâmica dos Fatos — a coleta de relatos que constrói a narrativa — de modo idêntico ao Termo de Ocorrência, este raro momento de cooperação entre a PC e PM surge justamente para atestar a legalidade do procedimento que resultou na morte de alguém. Caso isso chegue ao tribunal — e é importante lembrar que, segundo o fórum de segurança pública, ao menos no Rio, apenas 8,7% dos inquéritos finalizados não sigilosos de morte por intervenção policial viram denúncia, o resto é arquivado —, a narrativa tida como verdadeira é que o honrado policial fez o que precisava para se defender do nefasto criminoso.

A polícia brasileira é uma polícia para defesa de elites e patrimônio desde sua primeira forma oficial, a Guarda Real. Vê-se, contudo, que muito mais do fazer como qualquer outra polícia capitalista e prediletar um substrato social em detrimento do outro, a nossa constrói uma imagem interna e externa (ou seja, de si para si mesmo e de si para os outros, neste caso, nós) baseada em mentiras sistemáticas que a longo prazo constroem realidades falsas e incontestes. Isso pode ser observado em dois exemplos que vão corresponder às seguintes categorias não excludentes, mas de ordens opostas: (1) A relação sistematizada que redes criminais estabelecem com policiais; (2) a relação sistematizada que policiais estabelecem com redes criminais — geralmente de extorsão, vide o arrego organização interna da extorsão.

(1) De primeiro exemplo, puxo da minha dissertação sobre as relações entre Castor de Andrade, seus herdeiros e as primeiras milícias do Rio. Em determinado momento, antes de os policiais ingressarem ou formarem as milícias de Rio das Pedras e Campo Grandes, as pioneiras do gênero, eles trabalhavam para Castor e seus colegas da cúpula do jogo do bicho. Diferente de casos em que agentes de segurança pública se rendiam ao cargo de segurança de contraventor, aqui, de acordo com a contabilidade da rede criminal de Castor, que vai de 1987 a 1994, e sobre a qual me debrucei por meses. Nota-se a partir de entrevistas e dessas análises sociológicas-contábeis que os mais de 40 policiais militares e os incontáveis agentes civis e [2]federais eram pagos para fabricar batidas, apreensões e inquéritos. Os advogados de Castor detinham cópias de investigações em andamento, o material apreendido era plantado propositadamente nos locais e nas horas exatas programadas. Isso gerava uma mentira repetida sistematicamente até fabricar uma verdade. Assim, o trabalho policial soa exemplar, sem suspeição, pois segue coibindo, ao menos a olhos leigos.

Ou seja, a polícia, até hoje, é procurada, contratada ou oferta serviços diversos às redes criminais que demonstram certo poderio moral e financeiro superior às outras, neste caso o jogo do bicho, embora comportamento similar, mesmo que diferente em pontos cruciais, possa ser observado na relação entre milicianos e fardados, uma vez que estes últimos usam a instituição que compõem e o são para dirimir o avanço de rivais das milícias locais. Por exemplo, segundo dados levantados pelo Geni a pedidos, entre 2019 e junho de 2022, a Cidade de Deus, leia-se o maior reduto do Comando Vermelho na Zona Oeste da capital fluminense, foi o local que mais sofreu com operações policiais, com 72 ao todo, tendo Zona Oeste por si só recebido 418 nesse mesmo período. Isso mostra que, além de agir fabricando uma realidade policialesca com frequência, a polícia constrói a verdade para promover enriquecimento ilícito pessoal e corporativista a partir de colaborações daqueles pelos quais nutrem respeito (bicheiros) ou daqueles com quem firmam negócios com simetria (milícias).

(2) Em 2017, na cidade de São Gonçalo (RJ), a Operação Calabar, encabeçada pela polícia civil, Ministério Público e Corregedoria da Polícia Militar, revelou o envolvimento de ao menos 96 policiais em um esquema de cobrança de propinas do Comando Vermelho. Segundo as informações levantadas na investigação, que durou aproximadamente dois anos, semanalmente, em reais: cada um dos sete Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE) recebia 20 mil; dos cinco Destacamentos Policiais Ostensivos (DPO), os valores recebidos iam de 7,5 mil a 24 mil; e o Patrulhamento Tático Móvel do Morro da Coruja ficava com 12 mil; Ocupações da Coruja do morro do Alto dos Mineiros captavam 12 mil cada. Totalizando, temos um valor próximo de 800 mil reais mensais de propina pagas de forma sistemática. Em 2021, o 7º Batalhão de Polícia Militar (BPM) possuía um efetivo de aproximadamente 600 homens, ou seja, quase ⅙ do efetivo foi acusado de integrar um esquema de ‘arregos’ com traficantes locais. Diferentemente do tratamento que policiais tem para com bicheiros, a quem respondem moral e financeiramente, e com milicianos, com quem desenvolvem parcerias econômicas simétricas, com o tráfico os agentes de segurança pública agem com superioridade, impondo o arrego como um cessar fogo pontual, quando possível, isso porque, ao menos em partes, a polícia consegue se aproveitar do assujeitamento criminal que pequenos varejistas sofrem ao serem julgados como criminosos passíveis de morte por conta de raça e classe.

A legitimidade policial, como já falamos, é fluída e de baixa intensidade, quando a há. Logo, a relação de economia social e política que sustenta o arrego enquanto um fenômeno social não pode vir de uma suposta legitimidade da polícia perante a sociedade. O trabalho do policial não é validado por todo o meio externo, sua presença gera medo e desconfiança e é justamente aí que surge o arrego. Porque, se parar para pensar, uma facção do tamanho do CV ou até do PCC (caso esta quisesse entrar em conflito armado direto com as forças de segurança pública) tem paridade mínima para sustentar uma guerra aberta, com trocas de tiro, invasões domiciliares, uso de armamento pesado e recrutamento de efetivos de outras favelas ou até mesmo estados. A polícia, em comportamento, se assemelha às facções quando estas guerreiam entre si: ela age em busca de benefício da corporação e não do coletivo; age em busca de um enriquecimento político, territorial ou diretamente financeiro. Logo, o arrego não se estabeleceria se fosse por mera superioridade moral ou bélica. Se um grupo do TCP incursionar numa favela do CV e atacar, será fogo contra fogo, a mediação por meio de um suborno fixo não é uma opção para resolver a questão entre eles. Com a polícia o papo é outro: ela pode trocar tiro e depois te prender, expor detalhadamente sua vida para a imprensa, destruí-lo pública e intimamente de diferentes formas. O arrego ocorre para que a facção legalizada que chamamos de polícia não precise utilizar o aparato jurídico-estatal, ou seja, não prenda e persiga judicialmente os criminosos. Aparato este que a permite ter validade e algum grau de legitimidade, mesmo que baixa, na esfera pública. Ilegítima ou não, a polícia é amparada legalmente e isso é o que desnivela de modo a criar essa mercadoria política (“Trata-se, nesse caso, de uma mercadoria que depende de um cálculo efetivo de poder e de correlação de forças para poder adquirir características econômicas, tenho-a chamado, por isso, de ‘mercadorias políticas’”[3]) entre o policial e o “criminoso”.

Vê-se então que as polícias no Brasil, em especial em capitais como Rio e São Paulo, fabricam mentiras sistematizadas e reiteradas até que se tornem verdades legitimadas em juízo e midiaticamente. Logo, um dos primeiros pontos a se pensar no porque não se deve apelar para a fé pública em tribunal surge no fato de que as instituições policiais demonstram constantemente que carecem de confiabilidade e que se aproveitam da legalidade para forçar relações econômicas para privilégio próprio. A mentira é sistematizada por todas as polícias e tem aval pelos tribunais. O auto de resistência, como já apontado, é uma das formas de homogeneizar abordagens para facilitação da letalidade policial. Do registro de ocorrência ao processo penal, pouco é alterado do ponto de vista da argumentação. O policial mata para controlar a população ou então em benefício próprio e de seus aliados e chefes informais (bicheiros, milicianos etc.), os órgãos de investigação e denúncia constroem um arcabouço burocrático para protegê-lo e o processo termina ou arquivado de princípio ou arquivado depois de algum tempo de existência inócua. No meio disso, a legitimidade das ações deles, embora não existe com força no meio do povo, que desconfia da polícia salvo quando se vê em necessidade dela, é fabricada pela imprensa que toma por prova entrevistas e notas oficiais justificando operações letais ou ações suspeitas e de claro conflito de interesses.

Todavia, supondo que a polícia fosse uma organização confiável, com legitimidade mais alta e menos conflitos de interesses gritantes a cada vazamento de informações de ações ilegais, supondo tudo isso, ainda haveria — pelo menos — uma questão que nos faria questionar a validade da fé pública para com os policiais: é imoral. Pode soar como um apelo barato, mas se tratarmos a morte de civis como um ato de cunho administrativo, estamos banalizando a vida preta e proletária e validando o morticínio como uma política de estado válida e meramente burocrática. Não se investiga as condições de uma morte causada por um agentes estatal porque ela é um ato quase prosaico e mecânico para o próprio estado, que constrói, ancorado pela imprensa e produtos artísticos como Trope de Elite, um imaginário de guerra urbana, com heróis, vilões e a finalidade do entretenimento e do pânico moral. Ao eliminarmos a fé pública da argumentação jurídica que protege esse agente estatal, nós estamos eliminando também o auto de resistência e tentando forçar o próprio sistema a escancarar as intenções genocidas e capitalistas (no sentido de busca por acúmulo de capital) de suas ações. Se cada morte for necessariamente investigada, se a voz do policial valer tanto quanto a da mãe que perdeu o filho para a o ribombar do cano da Taurus, talvez tenhamos que encarar a necessidade de construirmos uma nova noção de policiamento: desatrelada de interesses meramente burgueses e da lógica de punir e violentar.

*Matheus de Moura, autor de ‘O coronel que raptava infâncias’ (Intrínseca), jornalista e sociólogo especializado em violência policial e redes criminais. Atualmente realizando doutorado na Universidade Federal Fluminense; Thales Cruz, graduando em Segurança Pública e Social na Universidade Federal Fluminense.

Notas:

[1] WILLIAMS, Landon. ‘Capitalismo negro e o que isso significa’ In: Todo poder ao povo! São Paulo: Editora Raizes da América, 2017, 175 p.

[2] A dissertação, que foi defendida no dia 16 de março deste ano, ainda não está disponível no repositório da UFRJ.

[3] MISSE, Michel. Violência, Criminalidade & Mais-Valia; Insight Inteligência, Rio de Janeiro,

pp.64-84, abril-maio-junho 2018.

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