O inconfiável setor nuclear. Por Heitor Scalambrini Costa e Zoraide Vilasboas

São extremamente preocupantes as perdas, desaparecimentos e roubos de material radioativo notificados à Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Em 2019, ocorreram cerca de 190 ocorrências com material nuclear radioativo, fora do controle regulatório. Estas informações são remetidas voluntariamente por 36 países, alimentando o banco de dados da AIEA. A média registrada na última década foi de 185 ocorrências/ano.

Notícias veiculadas por organizações da sociedade civil na mídia alternativa, pela internet, mostram que o Brasil tem passado por situações graves, nos últimos meses, relacionadas a materiais atômicos e os riscos decorrentes de sua exposição, podendo afetar a saúde de pessoas e contaminar o meio ambiente. Pelo perigo inerente às atividades nucleares, elas devem estar cercadas do especial cuidado da segurança em radioproteção. Elementos radioativos não podem ser usados para comércio ilícito, muito menos ir parar nas mãos de traficantes mal-intencionados, e assim podendo servir para propagar medo e violência, com fins estratégicos e políticos.

Vazamento de água radioativa, roubos, sumiços, armazenamento impróprio de rejeitos tóxicos e radioativos provam a falta de controle, fiscalização e transparência das empresas das Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Evidenciam também o descumprimento de suas obrigações e deveres constitucionais perante a população. Assim a pauta sobre o perigo da contaminação, provocados pela radiação, desde a exploração mineral na natureza, suas diversas aplicações e usos, deve ser prioridade. É um tema que afeta a saúde pública e o meio ambiente. E como tal é de interesse da população, infelizmente não informada devidamente sobre a natureza da atividade atômica, e que segue propositadamente alijada destas discussões.

Não esqueçamos que o setor nuclear brasileiro, guarda em sua trajetória um passado nebuloso. Desde o contrabando e exportação de areias monazíticas do litoral capixaba, baiano e fluminense; a cabulosa venda de urânio para o Iraque; o desastre socioambiental provocado pela Nuclemon; o secretismo do Programa Nuclear Paralelo; a tragédia do Césio-137, em Goiânia; a falta de transparência e de controle social; o recebimento de propina por gestores, até a omissão de informações para a população.

Lembremos episódios mais recentes que aprofundam o crescente desgaste da política nuclear brasileira:

16 de setembro de 2022 – Houve um vazamento de água com material radioativo na usina nuclear de Angra 1, contaminando a Baía de Itaorna, em Angra dos Reis (RJ). Só no dia 29 do mesmo mês, denúncia anônima levada ao Instituto Estadual do Ambiente/RJ (INEA) denunciou o vazamento ocorrido duas semanas atrás. A Eletronuclear, responsável pelas duas usinas do País, chegou a negar o fato, mesmo depois de ter recebido notificação do Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), que multou a empresa em fevereiro de 2023, após analisar os relatórios apresentados pela Eletronuclear e pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), que na pratica, são responsáveis por regular, licenciar e fiscalizar a produção e uso da energia nuclear no Brasil.

A ocultação deste episódio ampliou a desconfiança por parte da população e autoridades de ter havido outros vazamentos sem divulgação. Também levou a embargos pela Prefeitura de Angra dos Reis, da construção de Angra 3. Obra ícone da irresponsabilidade e insanidade do setor nuclear. Iniciada em 1984, foi paralisada diversas vezes nos seus 39 anos de obra inacabada.

29 de março de 2023 – Segundo informações (www.taniamalheiros-jornalista.blogspot.com/2023/03/armadilha-parte-do-processo-de.html), no final de fevereiro, início de março, ocorreu na Unidade de Enriquecimento de urânio da Fábrica de Elementos Combustíveis (FEC), da Indústria Nucleares do Brasil (INB), em Rezende (RJ), o rompimento de um equipamento, de onde vazou um gás  hexafluoreto de urânio (UF6), que ao reagir com a umidade do ar produz o ácido fluorídrico (HF), líquido incolor, fumegante, de ponto de ebulição 20 ºC sob pressão normal. Portanto, nas condições ambientes, onde a temperatura é de 25 ºC, ele é um gás incolor, elemento corrosivo.

As informações dão conta que tais equipamentos, chamados de “armadilha”, e que servem para recolher os subprodutos do processo do enriquecimento de urânio realizado nas ultracentrífugas, recorrentemente têm apresentado problema.

Felizmente neste caso não houve vazamento de nenhum produto para o meio ambiente. O problema ficou restrito ao local e aparentemente foi contornado. 

INB confirmou a ocorrência e, como de praxe, tentou minimizar o problema, declarando que a quantidade envolvida no vazamento foi “ínfima”, sem atingir o meio ambiente.

Neste caso também houve um grande déficit de informações prestadas pela empresa sobre o ocorrido, o que provoca dúvidas, incertezas, medo, pânico na população do entorno desta unidade da INB.

13 de junho de 2023 – a Barragem D4 da Unidade de Descomissionamento de Caldas (MG), foi declarada em estado de emergência Nível 1, com categoria de risco alto, pelo perigo de rompimento, que provocaria uma tragédia ambiental inédita. A declaração de emergência veio após fiscalização da Agência Nacional de Mineração (ANM), responsável pela monitoração de barragens em todo o território nacional. O enquadramento em níveis de emergência ocorre pela insegurança da integridade estrutural e operacional da barragem.

A unidade da INB, em Caldas, primeiro complexo mínero-industrial do Brasil a extrair e produzir concentrado de urânio em pó, desativada em 1995, hoje abriga toneladas de material radioativo (urânio e tório), provenientes de atividades industriais locais e de outros Estados, rejeitos da mineração, que estão a céu aberto com materiais pesados e muita lama radioativa.

A Usina de Santo Amaro-USAM, que funcionou no Brooklin (zona sul da cidade de São Paulo), até 1992, extraia minerais pesados e terras raras utilizando solventes, a partir de areias monazíticas. Caldas recebeu cerca de 75% do subproduto deste processo, conhecido como “Torta II” (fosfato contendo metais pesados de terras raras – terra contaminada), aumentando o já extenso passivo ambiental no Planalto de Poços de Caldas. O restante do lixo atômico da USAM foi para outros locais.

A situação presente do armazenamento dos rejeitos é muito preocupante, e tem provocado grande inquietação na população do Planalto de Poços de Caldas, de seus municípios limítrofes. A INB, seus dirigentes ao longo dos anos têm criado animosidades com os gestores municipais e moradores pelo desrespeito na relação de bem informar os problemas quando se trabalha com materiais radioativos, e os cuidados a serem tomados.

29 de junho de 2023 – A mineradora AMG Brasil, no município de Nazareno, a 150 km de Belo Horizonte (MG) informou à CNEN o furto de dois equipamentos de medição que utilizam fontes seladas de Césio-137, mesmo material radioativo que causou a tragédia em Goiânia, em 1987. A diferença entre as fontes utilizadas em aparelhos de radioterapia e de aparelhos de medição, é que a quantidade de césio, neste caso, é menor. Mas o manuseio incorreto é extremamente perigoso, podendo causar danos graves à saúde. As consequências dependem do tempo de exposição e da dose recebida. Neste raro “final feliz”, os dois equipamentos foram encontrados incólumes em 10 de julho, em uma empresa que revende sucatas em São Paulo.

17 de julho de 2023 – foi constatado o desaparecimento de duas cápsulas, contendo gás hexafluoreto de urânio enriquecido (UF6) na Fábrica de Combustível Nuclear, em Resende (RJ). Tal material é utilizado na fabricação de elementos combustíveis para as duas usinas atômicas de Angra (RJ). Cada tubo possui cerca de 8 gramas de urânio enriquecido (4,5 %). A confirmação do “sumiço” destes dois tubos aconteceu em 16 de agosto pp. Até hoje segue desconhecido o paradeiro do urânio à deriva, que conduz perigos radiológicos e químicos significativos, em caso de manipulação imprópria.

03 de agosto de 2023 – Dois pacotes com fontes radioativas (radiofármacos produzidos com o radioisótopo Flúor-18) foram roubados de um veículo que seguia da empresa R2 Soluções em Radiofarmácia, sediada em Duque de Caxias (baixada fluminense), para entrega em centros médicos em São Paulo. A radioatividade do referido radioisótopo é bastante reduzida, visto que sua meia-vida é inferior a 2 horas (109 minutos). O que significa reduzido potencial de causar mal à saúde. Mas, deve-se evitar qualquer contato direto com o material. Os pacotes roubados não foram recuperados.

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Nos casos relatados, o setor nuclear alega que os efeitos sobre os seres humanos e o meio ambiente são “neglicenciáveis”. Assim tentam minimizar a possibilidade de contaminação e/ou de uma provável catástrofe. Mas os fatos ocorridos, em tão breve período de tempo, evidenciam a irresponsabilidade, incompetência técnico-administrativa e a falta de cuidados obrigatórios, quando se trata de material radioativo. Ficam evidentes falhas nos protocolos de segurança relativos ao deslocamento, manuseio e armazenamento de material tão perigoso a vida. E, ao contrário do que afirmam os órgãos do setor nuclear, a manipulação por pessoas despreparadas pode ocasionar gravíssimos danos à saúde e ao meio ambiente. Há ainda a possibilidade destes materiais terem sido roubados, desaparecidos sob circunstancias criminosas, para fins de terrorismo nuclear.

Por outro lado, os meios de comunicação corporativos não dão importância às más notícias referentes à questão nuclear. Desprezam ouvir e divulgar opiniões diferentes. E assim se associam aos grupos que, por diferentes razões, defendem esta fonte de energia cara, suja e perigosa.

Heitor Scalambrini Costa é Doutor em Energética, Professor aposentado pela Universidade Federal de Pernambuco

Zoraide Vilasboas é Ativista socioambiental pelos Direitos Humanos e da Natureza, facilitadora da Articulação Antinuclear Brasileira

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