Deus se mandou. Por Milly Lacombe

“Sentir vontade de vomitar diante do que estamos vendo é um vestígio de nossas humanidades.”

Do UOL

Se existe uma entidade cósmica organizadora dessa nossa experiência terrena, se existe um ser superior capaz de testemunhar o que fazemos, Ela talvez tenha desistido da gente. Deus não está morto, como anunciou Nietzsche. Deus vazou. Quem não vazaria?

Peguemos um recorte curto no tempo: a pandemia. Tínhamos a chance de compreender como estamos ligados uns aos outros. O rapaz lá do outro lado do mundo comeu uma carne crua de alguma coisa, adoeceu e nossa saúde aqui embaixo foi afetada. A minha, a sua, a das pessoas que você ama, a da geral. Como, a partir disso, seguimos falando em saúde privada, em liberdade individual, em “da minha vida cuido eu”?

Se fôssemos inteligentes teríamos aproveitado a pandemia para aprender que toda saúde é pública. Não há saúde sem ser pública, coletiva, comum. Se não há saúde privada, tampouco existe liberdade individual. Parar de falar besteiras seria o começo da cura de nós mesmos.

Derrubar patentes, distribuir gratuitamente vacinas para o mundo inteiro, fortalecer sistemas públicos de tudo o que há de importante: saúde, educação, transporte. Alargar o comum, estreitar o privado.

Fizemos isso? Não, e muito pelo contrário. Saímos da pandemia para mergulhar em duas guerras. Na primeira, bombas caíam sobre corpos muito brancos. O horror. Na segunda, bombas caem sobre corpos nem tão brancos. Segue o jogo.

As imagens das crianças mortas na faixa de Gaza já estão em seu contexto histórico como retratos de um massacre. Não há atentado terrorista que justifique a carnificina.

Sim, é preciso condenar sem ressalvas as ações do Hamas. Mil vezes sim. Condenemos todos os que assassinam inocentes sem relativizações, sem reservas, sem condicionantes, sem restrições. Condenemos o Hamas e condenemos Netanyahu. Sintamos repulsa, nojo, ódio, ira por quem mata crianças e suas mães. Sentir vontade de vomitar diante do que estamos vendo é um vestígio de nossas humanidades.

Não há explicação para que as bombas continuem sendo jogadas sobre inocentes. Quem ainda busca justificar está morto. Anda, fala, come, mastiga, mas morreu. São zumbis, corpos sem vida que pensam apenas em suas convicções macabras e putrefatas.

A Guerra não é contra um grupo terrorista, seria importante que essa verdade fosse dita abertamente. Não se mata três mil crianças para pegar 100 mil, 200 mil, 500 mil terroristas. Não se mata uma criança. A guerra é por dinheiro. Por armas. Por poder. Por território. Por supremacia.

De novo. Mais uma vez. Com tudo sabido e estudado. Cá estamos nós, nos matando uns aos outros em nome de uma ideia de superioridade que não existe, nunca existiu, nunca existirá.

Estamos devastando o planeta e, com isso, nossas chances de seguir existindo. Morreremos de bomba, de seca, de inundação, de calor, de fome, de doenças, de tempestades. Seremos a primeira espécie a se autoextinguir. Uma proeza. E nos achamos tão inteligentes… Não, não somos.

O planeta florescerá com nossa ausência. Tudo ficará mais bonito. Não haverá mais assassinatos em nome de vaidades. Não haveria mais um sexo superior a outro, uma cor de pele melhor do que outra, uma forma de desejo mais certa do que outra. O planeta se curará dessa infecção chamada humanidade.

Nessa hora, uma nave estará a caminho de Marte com os Musk, os Bezzo, os sheiks, os Zuckerberg e mais meia dúzia de seres gosmentos. Terão que existir sozinhos, convivendo uns com os outros e lidando com suas vaidades. Durarão meses.

Há, claro, alternativas a esse cenário de horror. Milhões de pessoas estão nas ruas berrando para que seus governos acordem. Que fique registrado nos autos do Apocalipse que alguns de nós lutaram até o fim.

Mas, para nos salvar, deveríamos mudar a rota de imediato. Não daqui a pouco, não mais tarde, não amanhã – agora.

Parar de querer lucrar acima de tudo e de todos, parar de queimar, de devastar, de explorar. Cessar as bombas, sair de terras que não nos pertençam, aprender a conviver. Acho improvável que façamos tantas conciliações. Improvável que nesse mundo tão masculino topemos nos curvar, nos deixar atravessar por compaixão e sentimentos, levemos desaforos para casa sabendo que há uma causa maior do que nossas vidas particulares. Descolonizar nossos pensamentos, nossas almas, nossos espíritos.

E, quem sabe, se fizermos um pouco, se nos movermos um tico que seja em direção ao comum, ao solidário e ao coletivo, Deus tope voltar e nos dar mais uma chance? Cheia de compaixão, Ela retornará imaginando que talvez tenhamos entendido que “ame o próximo como a ti mesmo” quer na verdade dizer “ama o próximo porque é tu mesmo”.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Regina Moreira.

Não se sabe se este bebê, cujas fotos foram encontradas nos escombros do complexo da Igreja de São Porfírio, está entre sobreviventes do ataque aéreo israelense ocorrido em 19 de outubro. Foto reproduzida da BBC

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

doze + 5 =