A Comissão Pastoral da Terra Nordeste 2 compartilha seu balanço do ano de 2023.
Na CPT
“Ai daqueles que ficam planejando a injustiça e tramando o mal. É só o dia amanhecer, já o executam, porque têm o poder em suas mãos. Cobiçam campos e os roubam; querem casas e as tomam. Assim oprimem as pessoas e as famílias.” (Miquéias 2, 1-2)
Em 2023, o Brasil encerrou um período nefasto para o povo brasileiro, marcado pela ascensão e pelo domínio da extrema direita, desde Temer em 2016 até Bolsonaro em 2022. A volta de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República foi recebida com entusiasmo e esperança pelo povo brasileiro e foi celebrada como uma histórica vitória popular e democrática. Esse fato abriu as portas para um diálogo mais amplo no âmbito federal, algo há muito esperado. No entanto, os principais problemas que afetam a vida dos povos da terra, das águas e das florestas permaneceram inalterados durante o ano. Terminamos 2023 compartilhando do sentimento de frustração sentido pelas milhares de famílias camponesas espalhadas pelo Brasil, mas na certeza de que a resistência e a mobilização seguirão firmes em 2024 para avançar na consolidação dos direitos e na construção de uma Terra Sem Males.
Reforma Agrária – O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) permaneceu inoperante no que diz respeito à desapropriação de terras para a reforma agrária. Tampouco realizou assentamentos em terras públicas, pertencentes à União, muitas delas alcançadas por históricas e injustas cessões de uso para grandes empresas. Ou sequer aproveitou a oportunidade significativa de impulsionar a política de redistribuição de terras no país surgida em setembro de 2023, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que a propriedade produtiva que não cumpre a função social também está sujeita à desapropriação para fins de reforma agrária. Essa postura revelou que a bancada ruralista do Congresso Nacional e as elites latifundiárias conseguiram pautar seus interesses junto ao governo federal.
Nem a pauta mínima apresentada pelos movimentos sociais para aquisição das terras onde vivem comunidades ameaçadas de despejo e sob violência foi cumprida. É preciso destacar que há no país uma demanda acumulada de desapropriação de terras que perdura por mais de uma década, atravessando os governos de Dilma, Temer e Bolsonaro. O Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) afirma que no ano de 2023 foram assentadas 6.030 famílias, sem que isso, no entanto, tenha sido resultado da aquisição de novas terras, por meio de desapropriação, conforme dados coletados até novembro de 2023. Logo, a palavra “desapropriação” ainda não voltou ao vocabulário do governo federal.
À grande maioria das famílias camponesas, o Incra ofereceu como “saídas” o crédito fundiário ou a negociação com grandes proprietários detentores de dívidas multimilionárias, que exploram o trabalho rural, degradam o meio ambiente e praticam a violência no campo. Na prática, foram esses latifundiários que ditaram o que pôde ou o que não pôde ser feito. Nos estados de Pernambuco e da Paraíba, por exemplo, o governo priorizou a negociação com grandes latifundiários (a maior parte deles composta por empresas falidas) em vez de se voltar para a desapropriação de terras improdutivas e descumpridoras da função social, como determina a Constituição Federal.
Em meio às dificuldades, um alento temporário para as populações rurais que seguem ameaçadas de despejo foi a decisão do STF, seguindo o voto do ministro Luís Roberto Barroso, que instituiu um regime de transição após a decisão proferida na ADPF 828, que proibiu as reintegrações de posse rurais e urbanas durante a pandemia da Covid-19. A medida foi um reconhecimento importante de que a execução dos despejos coletivos representaria enormes atrocidades contra populações do campo e da cidade e agravaria injustamente as suas já difíceis condições de vida. Para cumprir a determinação do STF, ao longo do ano os Tribunais Estaduais criaram Comissões de Conflitos Fundiários para mediar e buscar soluções alternativas para os casos de despejo. Mas, apesar de positiva, essa importante medida não resolve o problema da falta de acesso à terra e à moradia digna no Brasil. Por isso, do lado de fora das salas dos tribunais, organizações sociais do campo e movimentos sociais alertam que não se trata apenas de “humanizar os despejos” ou de minimizar as costumeiras violências do Estado nas ações de reintegração. O desafio que se avizinha para 2024 é enfrentar a enxurrada de despejos retidos desde a pandemia da Covid-19. Nessa perspectiva, o Poder Executivo deve cumprir a Constituição Federal e garantir o direito à terra e ao território de milhares de famílias ameaçadas.
Também para este ano, a pauta da reforma agrária seguirá ameaçada se depender do orçamento. Segundo o Incra, o Ministério da Fazenda destinará R$567 milhões para essa política em 2024. Ainda que represente um aumento expressivo em comparação com os R$256 milhões de 2023, o valor é muito inferior ao necessário e ao reivindicado para atender às demandas acumuladas por anos de paralisação da reforma agrária. Para se ter uma ideia, esse é o menor orçamento para a reforma agrária de todos os governos petistas, que durante os anos de 2003 e 2016 nunca foi menor que R$2,5 bilhões.
Incluir os pobres no orçamento do governo federal, mantra sempre repetido pelo presidente Lula, é, sobretudo, garantir recursos e medidas concretas para realizar uma reforma agrária ampla e popular, inadiável e indispensável para reverter a situação de fome, de pobreza, de miséria, de injustiça, de concentração fundiária e de desigualdade que assola o Brasil, bem como para contribuir com a consolidação de uma agricultura agroecológica, que preserva a vida humana, o meio ambiente e que contribui para reduzir os efeitos das mudanças climáticas, o que, sem dúvida, é a pauta mais importante da atualidade no mundo contemporâneo.
No que concerne às comunidades quilombolas, passados 20 anos do Decreto nº 4.887/2003 (que regulamentou os processos administrativos de identificação, delimitação, reconhecimento, demarcação e titulação de territórios), dos 1.800 processos em aberto, apenas 17% avançaram até a etapa de publicação dos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID). O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identificou apenas 494 territórios quilombolas oficialmente delimitados no país, que abrigam 167.202 quilombolas. Isso significa que apenas 12,6% da população quilombola reside em territórios oficialmente reconhecidos, enquanto 87,4% estão em quilombos não delimitados e reconhecidos.
No primeiro ano do terceiro mandato do presidente Lula, a emissão de títulos definitivos favoreceu 1.163 famílias quilombolas em seis territórios nos estados da Bahia, Ceará, Minas Gerais e Sergipe, totalizando 6.341,8797 hectares regularizados. No entanto, o desafio reside na abordagem dessa regularização, que frequentemente ocorre em terras já ocupadas pelos quilombolas e sem a remoção dos invasores presentes no território, o que acarreta o acirramento de conflitos agrários.
Já no que diz respeito à política agrícola, ao contrário da política agrária, houve alguns avanços e aumento de recursos para importantes programas, a exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que recebeu um aporte de R$250 milhões, e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com R$5,5 bilhões. Por sua vez, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), uma das principais linhas de crédito do Plano Safra, recebeu um investimento de R$77,7 bilhões. Mas ao mesmo tempo em que a medida deve ser celebrada, é preciso alertar para o fato de que ainda há uma distribuição desigual e injusta dos investimentos, na medida em que a balança pendeu mais, como de hábito, para o agronegócio, que recebeu, por meio do plano Safra, um total de R$364,22 bilhões para custear sua insustentabilidade e para disfarçar a sua ineficiência social e financeira.
Com relação aos agrotóxicos, até meados de julho de 2023, foram registrados, pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), mais 231 pesticidas. O governo Lula bateu seu próprio recorde de liberações, que em 2008 foi de 202, perdendo apenas para os anos do obscuro mandato de Bolsonaro (475, em 2019, 493, em 2020, 562, em 2021 e 652, em 2022). Muitos desses produtos, inclusive, foram banidos em diversos países há décadas, até mesmo nos países nos quais foram desenvolvidos, devido a sua elevada toxicidade à saúde e ao meio ambiente. Ainda em dezembro, Lula sancionou, com 14 vetos, a lei nº 14.785/2023, que facilitou a liberação de agrotóxicos. Antes de aprovado, o projeto de lei ficou conhecido, com toda razão, como o “PL do Veneno” e assim foi denominado até pela grande mídia, apesar de tradicionalmente aliada do latifúndio. Dentre os trechos vetados, estão alguns que davam ao MAPA e ao Ibama o poder de avaliar riscos ou alterações nos registros.
Violência no campo – A estrutura fundiária perversa instalada no país há mais de quinhentos anos, e geradora de uma das maiores concentrações de terra da história humana, encontrou reforço na falta de implementação efetiva da reforma agrária para aprofundar a chaga da violência no campo no Brasil. De acordo com dados parciais da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram registradas 973 ocorrências de conflitos no campo no primeiro semestre de 2023, o que representa um aumento de 8% em comparação com o mesmo período de 2022. O número também indica que o primeiro semestre de 2023 ocupa o 2º lugar nos últimos 10 anos, sendo superado apenas pelo ano de 2020, quando foram registrados 1.007 conflitos.
Os conflitos por terra foram os mais recorrentes, totalizando 791 ocorrências, enquanto os conflitos pela água somaram 80 casos. Por trás desses números, está o martírio de famílias, povos e comunidades que vivem uma rotina de ataques e que têm seus direitos arrancados de si, assim como eles mesmos são arrancados de suas terras e de sua vida digna. Mais de meio milhão de pessoas foram alvos de violência e de violações de direitos humanos no campo, nas águas e nas florestas durante o período. Desse total, os povos indígenas foram os principais afetados, presentes em 38,2% dos casos registrados pela Pastoral, seguidos dos trabalhadores rurais sem-terra (19,2%), posseiros (14,1%) e quilombolas (12,2%). Os números evidenciam o avanço da exploração capitalista e do modelo de desenvolvimento do Estado no campo brasileiro, com o agronegócio expandindo-se sobre áreas tradicionalmente ocupadas. Embora tenham sido criados os Ministérios dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial, essas medidas mostraram-se insuficientes para proteger os direitos constitucionais dessas populações.
Os dados preliminares acendem um alerta para o primeiro ano do Governo Lula. Não há dois caminhos para a resolução da violência e dos conflitos no campo, há apenas um: a plena efetivação da reforma agrária e a demarcação de territórios tradicionais, como estabelecido pela Constituição Federal. Na maioria dos casos de conflitos agrários, bastaria fazer cumprir a lei para pôr fim ao martírio e ao sofrimento de milhares de famílias camponesas, como aquelas que vivem na Zona da Mata de Pernambuco ameaçadas de despejo das terras onde vivem há gerações, torturadas pelo avanço da pecuária, sendo submetidas às ordens e aos interesses escusos de usinas maculadas por dívidas multimilionárias, por crimes ambientais, por desrespeito trabalhista e por práticas fraudulentas de grilagem e lavagem de terras.
Os números da CPT ainda indicam outro mal que persiste nestas veias abertas do Brasil: o trabalho escravo. Nos seis primeiros meses do mandato do presidente Lula, 1.408 pessoas foram resgatadas dessa condição. O agronegócio seguiu na liderança como o principal responsável por essa gravíssima violação aos direitos humanos, sendo o setor sucroalcooleiro a atividade campeã, com 532 pessoas resgatadas. Após 134 anos da abolição da escravatura, a ganância do agronegócio e a precarização do trabalho seguem transformando a rotina de milhares de pessoas empobrecidas no campo em agonia e exploração. A impunidade é um dos grandes alimentos dessa violência.
Meio ambiente – Em 2023, o ano mais quente já registrado na história da humanidade, o Brasil enfrentou ondas de calor intensas e frequentes. Foi o ano da chegada incontestável das mudanças climáticas. Foi o ano em que o Estado brasileiro assumiu publicamente, inclusive internacionalmente, a bandeira da transição energética. Mas essa postura assumida apresentou problemas sérios. O primeiro deles foi limitar as causas do colapso ambiental à queima de combustíveis fósseis. Embora esse seja um fator relevante, com certeza não é o único problema que ameaça a sobrevivência humana no planeta. Por isso, é um grande risco e um equívoco de pressupostos apenas se preocupar em diminuir o uso de combustíveis fósseis sem considerar outras causas para um possível colapso da vida no mundo. Não se pode falar em proteção à natureza sem reduzir cada vez mais a crescente e irracional lógica do consumismo. É impossível proteger a vida reproduzindo modelos de geração de energia opressores e concentradores de riqueza e sem questionar o capitalismo.
O crescimento vertiginoso de empreendimentos de energias renováveis no país (terminamos o ano com 916 usinas eólicas instaladas), especialmente no Nordeste, mostra a gigantesca discrepância entre o discurso e a prática. Enquanto o governo tem vendido ao mundo a imagem de sermos um dos países que mais avança na instalação de grandes usinas eólicas, centenas de comunidades camponesas e povos tradicionais têm sofrido os danos da instalação de aerogeradores em seus territórios. O latifúndio da energia, comandado por empresas transnacionais e incentivado pelos governos federal e estaduais, favorece apenas os ricos e violenta os povos do campo. Contratos abusivos, depressão, ansiedade, doenças de pele, casas rachadas, migração forçada, animais adoecidos, comunidades inteiras extintas e desmatamento são algumas das consequências da implementação desses empreendimentos, as quais ocorrem sem qualquer regulamentação.
Além da terra, também sofre o mar. Em 2023, cresceu a oferta para a produção de energia eólica com os chamados parques offshores. No entanto, povos tradicionais pesqueiros e acadêmicos/as alertam que tais empreendimentos causarão prejuízos irreparáveis à pesca artesanal e aos ecossistemas marinhos. Os fatos são de conhecimento do governo federal e de governos locais, os quais, até o momento, não tomaram nenhuma iniciativa para impedir a grande lista de violência e danos causados pelo modelo centralizado de geração de energia renovável. A chamada transição energética em curso não carrega consigo uma preocupação genuína com a natureza. É apenas mais um cálculo de mercado.
É inadmissível que a expansão das unidades de geração de energia eólica e de energia solar reproduza as violações a direitos humanos que marcaram a história da implantação de outras fontes de energia ditas “limpas”, como ocorreu com as usinas hidroelétricas e com as usinas de etanol, que impuseram conhecidas violências ao povo brasileiro e ao meio ambiente. Não é aceitável que essa história se repita, que os governos e as lideranças políticas não tenham aprendido com os seus efeitos perversos e que não cumpram o dever de regulamentar, fiscalizar e garantir os direitos humanos de milhares de camponeses(as).
Precisamos refletir criticamente sobre o significado dessa chamada “transição energética”. Na prática, o Brasil já tem uma matriz energética majoritariamente composta por fontes renováveis (47,4%). No entanto, entramos na onda da transição energética, especialmente para atender às necessidades dos países centrais do capitalismo, que correm para importar energia produzida em grandes empreendimentos desenvolvidos nos países da periferia do capitalismo, como o Brasil. Ou seja, estamos pagando o preço da transição energética da Europa com nossos territórios, com a natureza e com o nosso povo.
Que neste ano de 2024 possamos definitivamente encarar a necessidade de construção de uma transição energética justa, que não atenda aos interesses dos países centrais do capitalismo, mas sim às necessidades históricas dos povos da terra, das águas e da classe trabalhadora do Brasil e do mundo. Que possamos desenvolver o projeto das energias renováveis sem prejudicar as comunidades, as famílias, as/os trabalhadores, mas potencializando sua autonomia energética, incentivando, por exemplo, a implementação de modelos descentralizados de produção de energia solar, com usinas comunitárias, instaladas nos territórios sob gestão das próprias comunidades.
Mobilizações – O ano de 2023 foi marcado por importantes mobilizações, atos, protestos e marchas. De natureza diversa, essas ações foram verdadeiros sinais de resistência e de utopia viva em defesa da reforma agrária, da demarcação de territórios tradicionais, dos direitos humanos, da justiça social, da democracia e contra os males que ameaçam a terra, a vida e a dignidade dos povos do campo. Entre algumas ações nacionais, lembramos as mobilizações de trabalhadores/as sem-terra em todo o país pela reforma agrária e por soberania alimentar; as marchas e mobilizações dos povos indígenas contra o Projeto de Lei do Marco Temporal; o Grito dos/as Excluídos/as; a Marcha das Margaridas; além de incontáveis manifestações comunitárias espalhadas pelo Brasil que levaram milhões de camponeses e camponesas a cobrar do Incra e de outros órgãos do governo a efetivação do direito à terra, do direito ao território e do direito de viver em paz, com justiça e dignidade.
Que a fraternidade, o amor e a alegria do evangelho subversivo de Jesus de Nazaré nos movam ao encontro dos irmãos e das irmãs da terra, das águas e das florestas. Ainda temos um longo caminho a percorrer, até construirmos uma fraternidade social na solidariedade ativa e transformadora. “É preciso coragem para caminhar, para ir mais longe. É uma questão de amor”, diz o chamado do Papa Francisco para o ano de 2024.