“Camarada Mário, meu avô! Resolvi lhe escrever esta carta e te contar as novas, inspirado nas cartas do companheiro Ivan Cosenza, que escreve para o falecido pai, Henfil – @ascartasdopai – Sei lá, né? Parece que está sendo um dos poucos recursos que familiares de pessoas afetadas pela Ditadura de 64 estão tendo hoje para serem escutados: falar com seus próprios mortos!
Não sei se você esbarrou por aí com o Henfil para ele te atualizar, mas eu resumo pra ti, rapidamente, o estado de coisas que chegamos no Brasil. Olha meu velho, a milicada do teu tempo deu um jeito de saírem livre, leve, soltos dos crimes da ditadura. De lá para cá, vê-se que a “redentora” (salve Stanislaw!) forjou uma militarização tal da sociedade, que hoje as PM’s matam crianças na rua, à luz do dia. Meu velho, matam grávidas, trabalhadores nas favelas… É mesmo um apartheid social. E, só para citar uma última, até o dia 8 de janeiro do ano passado, passamos por uma série de golpes e tentativas de golpe, sempre com a milicada no meio, desde 2016. Repito, sempre! Essa última do dia 8 foi a gota para mim. Finalmente, ficou cristalino que são dois Estados, como sempre diz a companheira Diva Santana, velha guerreira baiana, irmã de Dinaelza Santana, desaparecida no Araguaia… O Estado deles tutelando o nosso, no caso! O governo agora – do nosso campo, avô! – não nos escuta, o presidente não recebe os familiares. Não explica afinal porque não reinstala a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, aquela que, em tese, deveria estar procurando seu corpo. Faz mais de um ano já sem essa comissão, extinta pelo “inominável”. Nada além do que um direito, que nem é perfeito, conquistado pela luta da tua filha e as Divas Santanas. Não é um projeto de lei, já é uma lei! Tão barganhando nossos direitos com os militares, vô, tá puxado, puxadíssimo!
Mas vamos lá, para não pesar tanto, tá aí uma boa nova: tua filha Lucinha Alves, junto com as Divas Santanas, todas as mães e familiares de mortos e desaparecidos da favelas, do campo, estão nos ensinando tanto! É gente porreta, de uma força descomunal, que choram, é óbvio – eu choro! e nem te conheci!!! – mas que forjam uma humanidade sem tamanho em nós das gerações seguintes. E ensinam, principalmente, a lutar por justiça e direitos iguais – viu, tua filha pegou a lição direitinho! hehehe. Ah, e a vó, tua companheira Dilma Borges, será sempre uma heroína para mim, manda beijo para ela e diga que a amo – e que não esqueci o gosto divino das panquecas dela!
Então velho, essa lição de humanidade tá valendo ouro por aqui, país que agora tem um monte de polícia e milico no congresso nacional – não como segurança do congresso, como senadores! deputados… anomalia em outros países! – vários milicianos “patrãozão” por aí, capitão que gosta assumidamente de torturar, nas instituições, pela sociedade… Sem mencionar o último presidente que tivemos, meu… que fita! Melhor nem mencionar mesmo, tamo chamando ele por aqui de “inominável”, “bozo”, “inelegível”, qualquer coisa para evitar o asco que o nome dele chama. Pergunta aí pro Henfil, rsrsrsr
Muita coisa para te botar a par meu avô, não vai caber nesta cartinha. Atualizar 54 anos de babado não é mole. Antes de me despedir, posso dizer que teu neto virou músico, defensor de direitos humanos, e arriscou filosofia na faculdade. Minha companheira Aline tá aqui mandando um beijo, e aproveito para compartilhar um videoclipe (mais abaixo, nesta publicação) onde ela canta lindamente uma música do Gonzaguinha que fala de guerreiros como você, desaparecidos do nosso cotidiano neste planeta, mas sempre aparecidos políticos nas mentes e corações! Beijos, Leo Alves
PS: eu faço a assistência de direção do clipe – pelo visto teu neto se arrisca no audiovisual também, hehehe. Depois do texto da companheira Fernanda, além do vídeo, tem a letra da música, e a ficha técnica dessa produção audiovisual
Mário Alves, presente! – por Fernanda Rocha
54 anos do desaparecimento do cientista social, pesquisador e jornalista Mário Alves. Nascido na cidade de Sento Sé, norte da Bahia, em 1923, sua trajetória foi interrompida pelas mãos dos agentes do estado ditatorial brasileiro instaurado em 1964. Falar do que aconteceu com Mário Alves é tocar na memória da dor da perda de seus familiares, que compartilham a mesma dor com dos familiares de tantos que lutaram contra um regime autoritário, em um país que ainda continua sendo tutelado pelos militares. Ainda.
Em sua juventude na Bahia, a sua escolha de vida foi ingressar no Partido Comunista Brasileiro. Liderou o movimento estudantil do seu estado, e em virtude da perseguição aos comunistas no governo Dutra, Mário migrou para o sudeste. Levou consigo o conhecimento em prol das lutas que ainda são muito caras ao povo brasileiro: a luta do operariado e a luta pelo direito à terra. A revolução foi o caminho possível na prática e na teoria de Mário. Ele entendia que o caminho era mudar profundamente as estruturas agrárias, no corte radical do privilégio e monopólio dos latifundiários. Atual é o pensamento de Mário Alves, quando se trata de desmascarar as reformas que perpetuam o projeto de colonização da terra, dos territórios indígenas e dos territórios urbanos marginalizados e marcados pela violência de Estado contra a juventude negra.
Quando a ditadura de 64 chegou para destruir partidos e seus projetos coletivos de revolução e mudança social, Mário juntamente com homens e mulheres da resistência, foi alvo. Preso por um ano no prédio onde funcionou o DOPS/RJ, ao sair da prisão em 1965, não desistiu de seus ideais. Mas em 1970, dia 16 de janeiro, Mário foi levado para o DOI-Codi e desde então continua desaparecido. Há 54 anos o estado brasileiro ainda não foi capaz de devolver uma resposta à Dilma Borges Vieira, sua companheira, Lucinha Alves, sua filha, e Leo Alves, seu neto. Há 54 anos os assassinos de Mário Alves, os ex-tenentes do Exército Luiz Mário Correia Lima, Roberto Duque Estrada, Armando Avólio Filho e Dulene Garcez e o ex-major do Corpo de Bombeiros Valter da Costa Jacarandá, continuam impunes. A impunidade até hoje grita diante das injustiças cotidianamente silenciadas.
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Imagem: Lucinha Alves, Mário Alves e Dilma Borges