Paulo Amarante: o singular legado de Franco Basaglia

Há 45 anos, pai da reforma psiquiátrica da Itália veio ao Brasil – onde conheceu horrores de Barbacena e defendeu fim dos manicômios. “Mentaleiro” veterano relembra impacto da histórica visita na luta antimanicomial do país

Por Guilherme Arruda, Outra Saúde

Construída em paralelo ao impulsionamento da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) pelo movimento da reforma sanitária, a Reforma Psiquiátrica foi uma das mais importantes transformações da saúde pública brasileira nas últimas décadas. Sua busca – ainda não concluída – por fechar os manicômios abriu caminho para a introdução do cuidado em liberdade, revolucionário para o bem-estar dos usuários desses serviços.

Ainda nos anos 1970, o psiquiatra Franco Basaglia se tornou uma inspiração para os profissionais que queriam mudar a saúde mental no Brasil ao capitanear o fechamento do manicômio de Trieste, na Itália e sua substituição por equipamentos que inspiraram o modelo dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). A Lei 180, da reforma psiquiátrica italiana, também é conhecida como Lei Basaglia, em sua homenagem. “Basaglia teve uma influência importantíssima na nossa decisão de definir nosso movimento como antimanicomial e o manicômio como uma forma de opressão mental”, explica a este boletim Paulo Amarante, veterano da área e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).

Em 2024, Basaglia completaria 100 anos – e o movimento que liderou, a Psiquiatria Democrática, alcança seu cinquentenário. Mas uma terceira efeméride é a que mais o conecta ao nosso país: há 45 anos, uma viagem do psiquiatra de inspiração marxista ao Brasil deu forte impulso ao nascente movimento dos trabalhadores de saúde mental. Além de realizar uma série de conferências em sindicatos e faculdades, o italiano visitou o Hospital Colônia de Barbacena – e, ao classificá-lo como um “campo de concentração nazista”, multiplicou a audiência da denúncia dos horrores do hospital psiquiátrico mineiro.

Nos próximos dois dias (20 e 21 de junho), a ENSP/Fiocruz será palco de uma série de debates sobre o legado de Franco Basaglia e da Psiquiatria Democrática, no seminário A Liberdade É Terapêutica. As discussões poderão ser acompanhadas no canal da ENSP. Com a participação de Paulo Amarante, que é um dos organizadores do evento, Outra Saúde inicia hoje um dossiê sobre os 45 anos da histórica visita de Basaglia ao Brasil. A seguir, confira o relato de Amarante sobre as passagens do italiano pelo país nos anos 1970, sua avaliação de seu impacto na luta antimanicomial – e o anúncio da reedição das obras de Basaglia no país.

O que fez Basaglia

Nascido no norte da Itália, o psiquiatra italiano formou-se na Universidade de Pádua, onde também foi professor por doze anos. Um crítico consistente da psiquiatria tradicional, ele chegaria à posição de que as instituições asilares, por sua violência e por “silenciarem a voz dos loucos, apagarem a personalidade daqueles sujeitos”, deveriam ser fechadas, diz Paulo Amarante. Na década de 1990, o brasileiro escreveu Uma aventura no manicômio: a trajetória de Franco Basaglia, em que repassa a carreira do italiano.

Sua primeira experiência na direção de um hospital psiquiátrico foi em Gorizia, na fronteira italiana com a antiga Iugoslávia socialista. Ali, ele introduziu uma série de mudanças no cotidiano da instituição, humanizando o tratamento dos internos – mas, devido a problemas políticos, não logrou êxito em fechá-la.

Depois, Basaglia foi convidado para dirigir os serviços de saúde mental da província de Parma. O convite partiu do governo local, conduzido pelo poderoso Partido Comunista Italiano (PCI) – à época, o maior partido comunista da Europa Ocidental, com mais de um milhão de militantes e enorme influência nos meios sindicais, culturais e políticos. Inegavelmente, as propostas basaglianas ressoavam com os setores que defendiam uma transformação radical da sociedade.

Contudo, Basaglia rapidamente seguiu de Parma para Trieste. Naquela cidade, também próxima da fronteira iugoslava, é que sua visão pôde ser implementada mais integralmente. Foram encerradas as internações involuntárias no hospital psiquiátrico local e, por fim, a própria instituição deixou de ser um manicômio. Os ganhos no cuidado e na relação do serviço de saúde mental com o mundo a seu redor foram grandes e diversos – especialmente pelo modelo manicomial ser substituído por cooperativas de trabalho e projetos culturais e artísticos que engajavam os usuários e a comunidade.

Em 1974, no contexto do avanço da experiência de Trieste, foi convocado o primeiro congresso da Psiquiatria Democrática, que levantou a bandeira do fechamento geral dos manicômios. Em 1978, um amplo movimento social impulsionado por esta corrente mas com a participação protagonista de usuários dos serviços de saúde mental e familiares, conquistou a Lei 180/1978, ou Lei Basaglia, que deu início à reforma psiquiátrica da Itália. A socióloga Franca Ongaro, senadora eleita na lista do PCI, seria responsável por regulamentar a lei. Ongaro também era colaboradora de Basaglia, assim como sua esposa.

Pouco depois da aprovação da Lei Basaglia, o psiquiatra faria suas visitas ao Brasil – incendiando a luta pelo fim dos manicômios também em nosso país. Confira, a seguir, um depoimento sobre esse processo feito por Paulo Amarante, psiquiatra e pesquisador da Fiocruz, para o dossiê de Outra Saúde.

Outra Saúde: Paulo, você pode apresentar o contexto em que se deram as visitas de Franco Basaglia ao Brasil no final dos anos 1970?

Paulo Amarante: A primeira vinda de Basaglia, ainda em 1978, foi para participar de um simpósio muito importante e marcante – aliás, só agora estão sendo transcritos e lançados os anais desse evento –, que foi o I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições. Ele aconteceu no Copacabana Palace, em outubro de 1978, e foi organizado fundamentalmente pelo Gregório Baremblitt, um esquizoanalista argentino que estava recém-migrando para o Brasil. Gregório saiu da Argentina por causa da ditadura. Ele chegou a ter uma bomba explodida no seu consultório, que matou uma colega de trabalho.

O Gregório Baremblitt era médico, psiquiatra e psicanalista. Ele chegou a fazer formação com Pichon Rivière e conheceu outros grandes psicanalistas da história, como Emílio Mira y López, que fugiu da ditadura franquista, e François Tosquelles, cujo livro Por uma Política da Loucura saiu recentemente no Brasil. Por esse caminho, Gregório trilhou a trajetória de uma formação psicanalítica inovadora, não-ortodoxa.

Pois bem, quando o Gregório chegou aqui, se deparou com um fato surpreendente: no Brasil, especialmente aqui no Rio de Janeiro, praticamente só médicos faziam formação psicanalítica. Ele se surpreendeu, porque a psicanálise não é uma especialidade médica e nem restrita à medicina. Freud, apesar de originalmente ser um neurologista, ao fundar a psicanálise, fundou uma nova prática, uma nova forma de exercício no campo psi, que transcendia o campo da medicina.

Então, junto de dois outros psicanalistas, o Samuel Chaim Katz e o Luiz Fernando de Mello Campos, o Gregório criou o Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições, o IBRAPSI, onde eles começaram a discutir outras formas de formação psicanalítica, desvinculadas daquela coisa formal, burocrática, centralizadora e hierarquizada da Associação Mundial de Psicanálise. O IBRAPSI foi a materialização dessa ideia, um espaço de formação que representava um pensamento crítico, não apenas na psicanálise, mas também no campo da saúde mental como um todo.

Muito disso que eu estou contando está em um depoimento histórico que ele deu para o Projeto Memória da Reforma Psiquiátrica no Brasil e está disponível no YouTube. Apesar de argentino, o Gregório contribuiu fundamentalmente com a reforma psiquiátrica aqui no Brasil – inicialmente, por causa desse evento.

Voltando para o congresso organizado pelo Baremblitt, ele foi chamado na época, um pouco provocativamente, de “a grande feira da psicanálise” e trouxe para cá os principais nomes do pensamento crítico internacional. Vieram personalidades de muitos países, como o Franco Basaglia mas também Erwin Goffman, Félix Guattari, Thomas Szasz, Robert Castel, Ronald Laing, David Cooper, Howard Becker, Emilio Rodrigué. Muita gente do mundo inteiro veio para esse encontro, era um momento de muita efervescência.

Por coincidência de circunstâncias históricas, naquele mesmo ano de 1978, nós iniciávamos no Brasil o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, que começou com uma denúncia de três médicos psiquiatras sobre os maus-tratos e a violência em três hospitais psiquiátricos do Ministério da Saúde e um hospital psiquiátrico penitenciário. Eram quatro hospitais federais, todos aqui no Rio de Janeiro: o Hospital Pinel, a Colônia Juliano Moreira, o Centro Psiquiátrico Pedro II e o Manicômio Judiciário Heitor Carrilho.

Por conta da denúncia, os três médicos – eu era um deles – foram imediatamente demitidos. Em torno da nossa demissão, começamos a criar um movimento que tinha duas bases, originalmente. De um lado, o Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, que nesse período da virada para o final da ditadura começava a se organizar a partir de um movimento que se chamou Renovação Médica, REME. E, de outro, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, o Cebes, quando foi criado em 1976 em São Paulo por figuras como David Capistrano da Costa Filho – uma grande liderança do movimento sanitário que depois viria a ser secretário de saúde de Bauru, secretário de saúde de Santos e prefeito de Santos, com uma trajetória importante no campo da saúde coletiva e da saúde mental – e, aqui no Rio de Janeiro, por um recém-chegado Sérgio Arouca. O Cebes criou um núcleo de saúde mental, a partir do qual a gente organizava discussões e movimentos, e criamos esse Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental. Depois, em 1987, na cidade de Bauru onde o David era secretário, fizemos um encontro desse Movimento e nos transformamos, a partir de uma autocrítica da nossa própria história, em Movimento de Luta Antimanicomial.

Esse movimento, em 1978, estava eclodindo com uma grande repercussão. E no mesmo ano, tinha sido aprovada na Itália a Lei 180, que viria a ser conhecida como Lei Basaglia, primeira lei no mundo a prever o fim dos manicômios e hospitais psiquiátricos e propor sua substituição por métodos de tratamento em liberdade, no território e não-asilares. Você vê então a coincidência de podermos conhecer Franco Basaglia no ano em que surgiu a lei que ficou conhecida com o seu nome e que esse movimento está acontecendo no Brasil. Em uma matéria histórica na Veja, em 1º de novembro de 1978, ele disse: “vim para corromper esse sistema de opressão e de violência”.

O Basaglia era um autor conhecido do movimento estudantil desde 1968, quando foi lançado seu livro A Instituição Negada. Esse livro esteve debaixo do braço de estudantes lutando mundo afora, em muitos países, mas especialmente na França e na Itália. Vieram todas aquelas personalidades importantes, mas o Basaglia criou um vínculo e uma relação específica com o movimento brasileiro, porque ele tinha essa tendência a pensar que o processo da reforma psiquiátrica não era um movimento técnico, só de leis (ele mesmo fazia críticas à lei italiana), mas um processo de transformação social, cultura e política, que devia ser feito cotidianamente por atores engajados na construção de novas formas de relação com a diversidade, a loucura, a diferença.

Ele fazia uma crítica à psiquiatria. Dizia que a psiquiatria tinha colocado o homem entre parênteses para se ocupar da doença, então a Psiquiatria Democrática deveria fazer o oposto: colocar a doença entre parênteses para se ocupar do homem, do sujeito, das relações. Dizia também que isso era um processo político. Com isso, houve uma identificação muito grande. Ele perguntava sobre as favelas, queria conhecer os sindicatos, as universidades, os hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro – queria saber da nossa situação, discutir ela. Lembro de estar com ele ao Sindicato dos Médicos.

Ele também foi na UERJ, enfrentou o status quo psiquiátrico lá, que o desafiou, falando que ele não conhecia de fato doentes mentais para dizer que não havia doença. Mas o que ele fazia não era negação do fenômeno, do acontecimento. Era uma atitude, a um só tempo, epistemológica, ética e política, de propor uma nova relação com a loucura e dizer que o conhecimento psiquiátrico não contribuía em nada com o que ele se propunha a fazer. Muito pelo contrário, esse conhecimento silenciava a voz dos sujeitos loucos, apagava a personalidade daqueles sujeitos.

Foi muito importante a postura do Basaglia de ir à imprensa e encontrar os movimentos, enquanto os outros convidados daquele simpósio tiveram uma programação mais restrita ao encontro. Ele não, foi ao sindicato dos médicos, foi à UERJ, foi ao sindicato dos vidraceiros, visitou comunidades, quis ter esse contato.

Isso, para mim foi um marco, naquele momento de grande expectativa e otimismo com a situação italiana e também de muita preocupação com a nossa. Era uma pessoa que tinha a visão das críticas, dos limites e dos problemas que seriam enfrentados, das questões que deveriam ser abordadas, dos adversários e inimigos que iriam aparecer. Me lembro muito da forma afetiva, carinhosa e carismática com que ele lidava com as perguntas mais provocativas. Ele respondia à altura, mas sempre com muita dignidade e respeito.

Foi nesse momento histórico do Congresso que ele conheceu as pessoas do Brasil inteiro, que depois o convidaram a voltar no ano de 1979, primeiro para uma série de conferências [em junho e julho] e, depois, para o 3º Congresso Mineiro de Psiquiatria [em novembro].

É importante dizer que algumas sociedades psiquiátricas naquele momento não eram conservadoras como são hoje. Não tinham esse compromisso de interesses com a indústria farmacêutica que têm hoje. E muitas delas, digo especialmente as de Minas e a da Bahia, por exemplo, tinham uma autonomia em relação à indústria farmacêutica, um compromisso político e um projeto de assistência de saúde mental livre, popular e democrático.

Essa visita de 1978 ajudou a organizar a passagem por Barbacena em 1979? Quem se envolveu nessa articulação?

Nessa visita de 1978, ele conheceu o pessoal de Minas, que o convidou para participar de um congresso e organizou a vinda dele em 1979 para essas conferências. Me lembro muito especificamente do Antonio Simone e do César Campos, que foi da Sociedade Mineira de Psiquiatria e depois coordenador de saúde mental do Estado de Minas Gerais, uma liderança inequívoca, expressivíssima. Tinha também o Jairo Toledo, que acompanhou o Basaglia em Barbacena, e depois assumiu a direção do hospital, com o temeroso desafio de fechar essa instituição que ficou com a fama de ter sido o pior dos manicômios. Muito dessa fama vem exatamente porque ele foi visitado pelo Basaglia em 1979, que o denominou de “campo de concentração nazista”.

Lá, o Jairo Toledo criou o Museu da Loucura, cujo acervo tem fotos originais de Franco Basaglia nessa visita à Barbacena. Nessa época, a Associação Mineira de Psiquiatria era uma associação progressista. Além dela, as entidades que trouxeram Basaglia foram o Instituto de Psiquiatria Social e a Sociedade de Psicodrama de São Paulo, onde estavam outras figuras importantes naquele contexto, como Darcy Antônio Portolese e o Gabriel Roberto Figueiredo. Eu não acompanhei pessoalmente essa visita, foi mais um pessoal realmente de Minas Gerais que o levou lá em Barbacena.

Que repercussão tiveram essas visitas do Basaglia?

A vinda de 1978 teve uma grande repercussão. Saiu na Veja, no Jornal do Brasil, na Folha, no Globo, no Estadão e por aí vai. Mas por quê? Bem, ele era o fundador da Psiquiatria Democrática, e esse termo provocava um certo mal-estar nos setores conservadores da psiquiatria e da sociedade em geral. Eles diziam: “O que psiquiatria tem a ver com política e democracia?” Nós chegamos a fazer um dossiê com todo esse material, buscando nas editoras das revistas e em arquivos públicos. Foi muita coisa mesmo.

Naquele ano, havia sido aprovada na Itália a Lei 180, a chamada Lei Basaglia. Quando ele voltou, em 1979, também teve muita repercussão, principalmente por conta do trabalho das sociedades que se envolveram na organização dessa visita, como a Associação Mineira de Psiquiatria. Com a visita do Basaglia a Barbacena, a visibilidade da nossa pauta aumentou. Antes, nós não conseguíamos entrar nos manicômios facilmente. Nós psiquiatras sabíamos, mas a sociedade não sabia bem o que se passava dentro dos manicômios. Com a denúncia do Basaglia – que chamou o Hospital de Colônia de “campo de concentração nazista” –, isso ganhou mais visibilidade.

O primeiro trabalho do Helvécio Ratton, que hoje é  um grande e reconhecido cineasta, foi um curta-metragem em preto e branco chamado Em Nome da Razão, que foi uma bomba. Ele demonstra o que é o cotidiano de um manicômio. O abandono, a violência a que aquelas pessoas são submetidas. Nuas, desdentadas, abandonadas, operadas com lobotomias, sem autorização da família, sem seu consentimento. Uso de eletrochoques, celas-fortes.

Na época, nós não conhecíamos ainda a agora famosa matéria de 1961 da revista O Cruzeiro. Nós só viemos a conhecê-la em 2008, quando alguém a encaminhou ao Jairo Furtado Toledo e aí nós tivemos acesso. A partir daí, fizemos contato com o Luiz Alfredo, o fotojornalista que havia ido a Barbacena, e conseguimos as fotos e os negativos originais. Ele tinha ficado com todos os negativos muito bem conservados. Era um trabalho lindo e profundo, com um olhar fotográfico fantástico, apesar do horror das cenas.

Nós supomos que ele poderia estar vivo, entramos em contato com o Sindicato dos Jornalistas e imediatamente conseguimos falar com Luiz, que estava morando em Niterói. Ele pegou um carro, atravessou a ponte e foi para a Fiocruz com os negativos, que nós compramos para publicar em um livro que ficou fantástico: chama-se Colônia Uma Tragédia Silenciosa, de 1988. Eu, Jairo e Edson fizemos com o Luiz uma entrevista na sede da Fiocruz e tudo ficou registrado nesse livro. Nele, há toda uma coleção de fotos e também depoimentos de várias pessoas: meu, do Jairo, do Francisco Paes Barreto – outro psicanalista e médico que também estava com o Basaglia na visita de 1979 –, Fernando Brant, Helvécio Ratton e Hiram Firmino.

A partir da visita de Basaglia, o Hiram começou a fazer uma série de reportagens no Estado de Minas, que depois deram origem ao livro Nos Porões da Loucura, fazendo uma associação com a violência dos porões da ditadura. O próprio Basaglia tinha um livro chamado Crimes em tempos de paz – junto com a Franca Ongaro, a sua esposa, e mais de uma dezena de autores, entre eles Michel Foucault, Ronald Laing, David Cooper, Thomas Szazs, Noam Chomsky –, em que ele também faz essa associação [da violência nos manicômios] com os campos de concentração, a violência política.

Esse livro do Hiram Firmino teve uma grande visibilidade, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo. O Helvécio também ganhou vários prêmios como Em Nome da Razão. Da nossa parte, nós fizemos toda a divulgação possível. Depois, veio o Colônia: Tragédia Silenciosa, que hoje está disponível na Internet e, por fim, o Holocausto Brasileiro, lançado em 2012, pela Daniela Arbex. Em suma, a visita de Basaglia teve muita repercussão. Vieram até programas de televisão para filmá-lo e filmar o manicômio.

Por tudo isso, foi uma visita marcante e que impulsionou muito o movimento da reforma psiquiátrica brasileira. O movimento de trabalhadores de saúde mental, como eu disse, a partir do Basaglia, vai assumir esse caráter mais antimanicomial. Vale dizer que ele não é “antimanicomial” apenas contra o hospício, hospital psiquiátrico mas o manicômio enquanto todas as instituições políticas, simbólicas, legislativas, jurídicas, epistemológicas, científicas, culturais que inferiorizam pessoas, que as classificam como incapazes, como perigosas, como impossibilitadas de exercer a cidadania. No A Instituição Negada, o Basaglia fala de enfrentar todas as condições de opressão. Em um outro livro, chamado A Maioria Desviante, ele fala que a grande maioria da população está, de uma forma ou outra, categorizada como menor, perigosa, desviante, impossibilitada – e a psiquiatria surge como uma gestora do poder sobre essas pessoas.

O Basaglia teve uma uma influência importantíssima na nossa decisão de definirmos o nosso movimento como antimanicomial e o manicômio como uma forma de opressão mental.

À época, essas conferências que o Basaglia fez no Brasil em 1979 foram reunidas em um livro chamado A Psiquiatria Alternativa – Contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática, publicado pela editora Brasil Debates. O que você sabe sobre a organização e repercussão desse volume? Essas falas no Brasil chegaram a ser reeditadas aqui ou em outros países?

Não acompanhei de perto o processo interno de edição, mas a publicação partiu das fitas cassete que as pessoas gravaram das conversas com ele. Lembro, inclusive, que quando o Basaglia soube dele, não ficou tão satisfeito, porque não gostava de ser chamado de psiquiatra alternativo, de fazer uma psiquiatria alternativa – assim como não gostava de ser chamado de antipsiquiatra. Em seu capítulo no livro Crimes em Tempos de Paz, chamado “A Casa dos Loucos”, Foucault lista o Basaglia como parte do movimento da antipsiquiatria. Claro que o Basaglia não censurou o capítulo, mas não gostava. Isso porque ele dizia que era um psiquiatra democrático, ele fundou a Psiquiatria Democrática.

Em que pese a posterior banalização desse termo – hoje, parece que democracia é tudo e nada ao mesmo tempo –, ele falava de uma psiquiatria em defesa da vida, em defesa do sujeito, em defesa dos direitos humanos, em defesa das classes oprimidas. A Psiquiatria Democrática se via como instrumento de libertação, de anti-alienação. A psiquiatria, que nasceu com o nome de alienismo, e o chamado transtorno mental, com o nome de alienação mental, acabam sendo instrumentos de alienação e de opressão.

No livro, você vê que várias partes estão registradas incompreensíveis, inaudíveis. Não houve um esforço maior de reconstrução. Os gravadores eram muito precários, saía mais o som da rua do que o do conferencista.

Particularmente, eu não gosto de falar de “conferências brasileiras” do Basaglia. Foram bate-papos, encontros. Falamos muito pouco da experiência italiana e muito mais da experiência brasileira. A gente estava ávido de discutir o Brasil, de ouvir dele a crítica de que o Brasil estava no caminho errado, da violência, e que eram preciso mudanças.

Lá na  Itália, logo depois, o Paolo Tranchina – o psicólogo junguiano que fundou a revista Fogli di Informazione, o órgão oficial da Psiquiatria Democrática que até hoje existe com essa denominação – reuniu essas conferências e publicou um número especial da Fogli di Informazione com o nome Conferências Brasileiras [Conferenze brasiliane].

Depois, em 2000, a Franca Oncaro Basaglia – que já tinha estado aqui a convite da Fiocruz, em 1994 – fez um circuito pelo Brasil. Ela era senadora e foi responsável pela regulamentação da Lei 180. A partir daí, nós começamos a organização de um outro livro, que estava esgotado e está sendo republicado agora com uma edição comemorativa do centenário de Franco Basaglia e do cinquentenário da Psiquiatria Democrática. Eu e Franca selecionamos textos de toda a obra do Basaglia – que é grande, foi publicada na Itália pela Einaudi – e fizemos o Escritos Selecionados de Franco Basaglia.

Depois, com a Maria Grazia Giannichedda, que foi coautora de vários trabalhos com o Basaglia, veio a ideia de fazer uma nova edição das Conferências Brasileiras, tentando resgatar algumas conferências que não tinham entrado no Psiquiatria Alternativa – Contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática, da Brasil Debates. Com a ajuda do Antônio Simone e de mais algumas pessoas de Minas e de São Paulo, escavamos mais algumas e organizamos o livro, que saiu com um posfácio meu, da Fernanda Nicácio, e da Denise Dias Barros, profissionais que trabalharam em Trieste. Fizemos esse posfácio explicando para o leitor italiano a importância dessas falas.

Esse livro com as chamadas conferências brasileiras saiu na Itália em 2000, e logo depois saiu na França com o nome de Psychiatre Democratique e depois na Alemanha, na Espanha e na Argentina. Essa foi praticamente a última publicação de trabalhos dele – o último dele mesmo foi um livro com Paolo Tranchina, chamado Autobiografia de um movimento, em que eles contam como foi criada a Psiquiatria Democrática e resgatam documentos históricos.

Nós vamos recuperar muitos desses dados no evento que nós vamos ter nos dias 20 e 21 de junho na Fundação Oswaldo Cruz, na Escola Nacional de Saúde Pública, o seminário A Liberdade É Terapêutica. O primeiro congresso da Psiquiatria Democrática foi em 23 e 24 de junho de 1974, em Gorizia, e nós vamos comemorar o cinquentenário aqui.

De forma geral, está havendo uma certa curiosidade com a obra do Basaglia. Um pouco antes da pandemia, a Universidade de Oxford fez um livro muito interessante sobre a herança, o legado de Franco Basaglia no mundo. Eu e mais dois autores contribuímos com um texto sobre a importância dele aqui no Brasil, sobretudo da sua obra conceitual.

Em um sentido mais de longo prazo, qual é o legado dessas visitas de Franco Basaglia ao Brasil? Ela influenciou a Reforma Psiquiátrica de 2001?

Por um lado, o livro que acabei de falar se chama exatamente O Legado Internacional de Basaglia. Os artigos nele falam sobre a influência do Franco na saúde mental de países muito diferentes, como Espanha, Grécia, Suécia, Polônia e Iugoslávia.  Na verdade, influência do Franco e da Franca. Por ser mulher, e até por ter o mesmo nome que ele, ela ficou um pouco na sombra. Escrevi um artigo sobre isso recentemente para a Revista Cult. Agora, a fundação chama-se Fundação Internacional Franca e Franco Basaglia, está havendo um movimento de resgate, correção e reparação em relação à Franca. Ela foi coautora de muitas das coisas que o Franco fez. Ela estava lá na criação do movimento da Psiquiatria Democrática, na experiência de Gorizia, na experiência de Trieste. Organizou Utopia da Realidade, Crimes em Tempos de Paz, A Maioria Desviante, A Instituição Negada, O Que É Psiquiatria. Franca regulamentou a Lei Basaglia como senadora. Foi uma pessoa de papel político importante na Itália.

Por outro lado, ambos foram também esquecidos, apagados, silenciados. Se você procurar por Basaglia nos programas das universidades brasileiras, não está lá. O domínio é de uma psiquiatria que se entende como organicista, mas de organicista e biomédica não tem nada. Ela nunca conseguiu comprovar essa sua base orgânica, biomédica e segue negando as várias formas de crítica, seja da antipsiquiatria, do Thomas Szasz, do Frantz Fanon, do François Tosquelles, do Laing, do Cooper, do Basaglia, da Franca Ongaro. Todos foram apagados.

Eu acho que com todo esse momento atual de crítica à colonização – embora alguns deles sejam europeus, eram contra-hegemônicos, colocaram o dedo na ferida da psiquiatria –, essa visão das relações da psiquiatria com o poder e do papel político da psiquiatria na repressão, no controle social e na exclusão está sendo recuperada. Os trabalhos de Fanon, Basaglia, Franca Ongaro, Laing e Cooper são trabalhos fundamentais de crítica, mas não são tão conhecidos quanto deveriam. E olha que o Basaglia entrou no movimento brasileiro desde que esteve aqui.

Mas sobre a sua pergunta, eu faço uma correção. A Reforma não é a Lei. A Lei é aprovada em 2001, mas foi apresentada em 1989, após a revolucionária experiência de Santos, que fechou seu manicômio, e de várias outras experiências que pipocaram pelo Brasil, que geraram a necessidade de uma lei para o que nós fazíamos desde a primeira Conferência Nacional de Saúde Mental. Foi criada uma comissão de que faziam parte eu, Pedro Gabriel Delgado e outros.

Em Santos, isso partiu da intervenção na clínica Anchieta, que fechou a clínica e começou a criar uma rede substitutiva de serviços territoriais 24 horas, como os NAPS, cooperativas de trabalho, projetos culturais como a TV Tantan, o Teatro Tantan, a Rádio Tantan, uma residência de ex-moradores chamada República Manequim, enfim, todo esse movimento. Nesse período, o SUS tinha acabado de ser aprovado em 1988, e nós começamos a botar o SUS na rua, na prática. O David [Capistrano] falou: [O SUS] não está regulamentado, mas vamos em frente, porque já temos a lei”. Daí, começaram a surgir os CAPS, os NAPS,as cooperativas, associações de usuários e familiares. Quando a lei é aprovada, nos já temos um amplo movimento social e uma rede de serviços.

É uma insistência minha: a Reforma não é a Lei, não se reduz à Lei. Se fosse só a Lei, nós estávamos perdidos, porque a lei não é colocada na prática se não houver um movimento social forte. Você tem que ter pessoas falando, defendendo e praticando de maneira inovadora e diferente.

De toda forma, o projeto de lei original construído com o movimento de luta antimanicomial pelo então deputado Paulo Delgado (PT-MG), o PL 3657/89, tem como fundamentação explícita a Lei 180 da Itália, a Lei Basaglia. Por isso, quando foi aprovada, o empresariado dos donos de hospícios e os setores da conservadores da psiquiatria perceberam onde que a lei estava mexendo: com todo o mercado montado de clínicas privadas – e públicas também, porque tem todo um mercado de fornecimento de equipamento, alimento, vigilância, limpeza, lavanderia, etc. Por isso, eles começaram a lutar contra. Criaram todos os obstáculos possíveis, o que em certo sentido ajudou a lei, porque criamos um movimento para garantir a aprovação. Não é que a Lei não é importante, é que mais importante é o movimento. Isso o próprio Basaglia dizia. Quando a Lei 180 foi aprovada na Itália, ele dizia: “Não vamos cruzar os braços, porque gostava muito de quando não tínhamos a lei e fazíamos novas práticas, inovações, evoluções”.

O perigo da lei aprovada é o de as pessoas cruzarem os braços e dizerem: “agora é função do Estado cumprir”. Não se cumprem leis que não tem um forte movimento de base. E a base, para o Basaglia, era um movimento de trabalhadores, de loucos também, um movimento de transformação da sociedade.

Uma vez, perguntaram para ele como se faz para reabilitar uma pessoa. Ele dizia que não sabia – que o que é preciso é reabilitar a sociedade, a cultura. As sociedades têm de reaprender a viver com a diferença, com a diversidade, e não jogá-las fora. Nunca podemos esquecer que os grandes hospitais psiquiátricos se chamavam colônias – eram apartheids, locais de apartamento em que você retirava as pessoas da cidade e colocava lá.

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