O controle público da informação tem sido um dos principais fronts de guerra na era da desinformação. Entrevista especial com Afonso de Albuquerque

Para o professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense, é necessário criarmos um campo de formação contra a desinformação, projeto que está em andamento no núcleo universitário em que atua

Por: IHU e Baleia Comunicação

Um dos efeitos do neoliberalismo, na versão que hoje vivemos, é a fragilização e precarização de todo e qualquer serviço público, incluindo os sistemas de informação. Isso inclui não somente meios de comunicação, mas principalmente universidades, que mesmo sendo privadas podem operar por um princípio público, este em franco ataque das elites econômicas e políticas, especialmente de direita.

“O neoliberalismo, em particular, representou um ataque direto ao princípio do serviço público como princípio civilizatório. Nesse contexto, nós tivemos a criação de um ambiente muito fértil, a expansão da desinformação, porque agora o ambiente saudável que, de alguma forma, estabelecia normas/matrizes para a comunicação, entrou em crise”, explica o professor e pesquisador Afonso de Albuquerque, em entrevista concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Os meios de comunicação são os alvos preferenciais de extremistas. “Quando a mídia perde esse valor de transcendência, esse valor superior, ela entra no campo das coisas que pode ser atacada. Se o valor do serviço público da imprensa foi, de alguma forma, desvalorizado pelas circunstâncias, agora a imprensa pode ser atacada com mais facilidade”, sublinha o entrevistado.

No fundo, o que está em jogo é a contínua e aparentemente infindável guerra da barbárie contra qualquer projeto civilizacional. “Se existe um drama que se coloca hoje e que resume tudo o que estou falando, é um drama de civilização e barbárie mesmo. Ele define o conceito de valor público, princípios gerais que devem orientar a atuação dos agentes na vida social, aquilo que poderíamos chamar de valores civilizatórios, e os mecanismos, interesses e agentes que se organizam em contraposição à ideia de que deve haver valores civilizatórios. Portanto, nesse sentido, valores passíveis de serem classificados como barbárie”, explica Albuquerque.

Afonso de Albuquerque é doutor e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduou-se em Ciências Sociais pela mesma instituição. Desde 1992, atua como docente da Universidade Federal Fluminense (UFF) como professor titular do departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFF. Pesquisador do CNPq desde 1998, atua nas áreas de Comunicação Política, Jornalismo e Comunicação Comparada. Além disso, publicou um capítulo no livro Comparing Media Systems Beyond Western World, organizado por Daniel C. Hallin e Paolo Mancini (Cambridge University Press, 2011). Foi presidente da Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Comunicação (Compós) e da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica), editor da revista Contracampo, coordenador do PPGCOM/UFF e do curso de graduação em Estudos de Mídia/UFF. É superintendente de Comunicação Social da UFF.

Confira a entrevista.

IHU – Como o fenômeno das fake news tem operado globalmente nos últimos anos, ao menos desde a pandemia de covid-19?

Afonso de Albuquerque – Quando pensamos em desinformação, frequentemente enfatizamos a ação de agentes interessados em obter vantagem a partir da distribuição de desinformação. Mas, quando fazemos isso, por vezes perdemos de vista o cenário mais amplo: aquilo que propiciou a esses agentes se tornarem eficientes.

Gente mal-intencionada e o próprio uso da desinformação como recurso político são tão velhos quanto a humanidade. Do ponto de vista moral, não há propriamente uma mudança da natureza desses agentes. O que aconteceu, que talvez seja o aspecto mais notável, é uma mudança no ambiente comunicacional que permite a esses agentes se tornarem mais eficientes.

Vou fazer uma metáfora médica: nós temos em nossos corpos bactérias, que são potencialmente perigosas. Elas atuam em ambientes que neutralizam o perigo que essas bactérias representam. Quando são transportadas para outra parte do corpo ou quando nosso sistema imunológico entra em crise, elas se transformam em bactérias perigosas.

O que acontece com a desinformação é semelhante. Porque a desinformação, hoje, é um fenômeno tão impactante? Porque o sistema de defesa da qualidade da informação é um sistema que vive uma crise. Talvez o elemento mais importante dessa crise é que se trata de uma crise do valor do serviço público do sistema de informação. Principalmente no pós-Segunda Guerra, houve um avanço na ideia de que a comunicação é um serviço público. Mesmo quando exercida por agentes privados, supunha-se que esses agentes tinham um certo roteiro, um conjunto de compromissos com os quais precisavam lidar para serem agentes sociais respeitáveis.

Em particular, o neoliberalismo representou um ataque direto ao princípio do serviço público como princípio civilizatório. Nesse contexto, nós tivemos a criação de um ambiente muito fértil, a expansão da desinformação, porque agora o ambiente saudável que estabelecia, de alguma forma, normas/matrizes para a comunicação, entrou em crise.

IHU – Quais as particularidades, se houver, dos usos da desinformação pela extrema-direita brasileira?

Afonso de Albuquerque – De alguma forma, o ataque ao valor do serviço público tem sido, já há muito tempo – isso não é novo –, instrumentalizado por setores poderosos que ambicionam exercer poder político sem qualquer limite. Isso antecede muito a própria extrema-direita brasileira, porque tem a ver com o exercício de poder por parte das grandes empresas brasileiras que não querem ser fiscalizadas ou controladas pelo serviço público.

Há muito tempo nós temos questões em relação à desinformação científica, particularmente em relação a temas que afetam o interesse público, por exemplo: petróleo e o aquecimento global, agora mais conhecido como mudanças climáticas. Esses e outros tipos de fenômenos sempre tiveram uma fatia enorme de negacionismo por parte dos setores que lucram com o modelo atual de exploração.

A extrema-direita brasileira inova muito pouco nesse cenário. Para explicar melhor, é necessário dividir a questão em duas partes.

Tradição reacionária

Em primeiro lugar, existe um roteiro geral de desinformação que é transnacional. A extrema-direita brasileira, de alguma forma, mimetiza formas de comportamento que são características desse modo de atuação da extrema-direita internacional. Eu dividi a questão porque tem um personagem brasileiro que merece destaque em particular: Olavo de Carvalho.

É muito interessante pensarmos no Olavo de Carvalho, porque ele é um personagem que soa muito exótico, mas é menos exótico do que pareceu ser. Ele se insere no contexto de uma tradição reacionária que é centenária. Ele é representante de um tradicionalismo, que é um grupo de intelectuais que se revoltam contra o mundo moderno e ambicionam a construção de uma nova ordem baseada no retorno do sagrado. Uma ressacralização da vida.

É muito interessante porque essa lógica do tradicionalismo, em princípio, é radicalmente oposta à lógica do neoliberalismo, que é a lógica do ataque ao valor do serviço público. Mas, na prática, elas acabam construindo convergências. A tradição da extrema-direita brasileira acaba herdando dessas duas dimensões. Em primeiro lugar, existe essa dimensão do valor absoluto do mercado que, de alguma forma, obscurece o princípio do serviço público, o que constrói o meio ambiente favorável à expansão desses discursos de extrema-direita. Mas, em segundo lugar, existe esse grupo do tradicionalismo, com essa agenda ultrarreacionária, que também se opõe à lógica da informação quase como uma negação da lógica do mundo iluminista, racional.

Mídia tradicional é sócia da tragédia da desinformação

Há uma terceira questão que eu gostaria de destacar. É o fato de que o Olavo de Carvalho não surgiu como um intelectual brasileiro marginalmente. Precisamos lembrar que ele foi patrocinado por setores da mídia tradicional, a mídia jornalística – vários grandes jornais concederam a ele espaço editorial –, mas também a mídia editorial propriamente dita. Por exemplo, a Editora Record publicou muitos dos seus livros. De novo, há a convergência entre a lógica do tradicionalismo com o neoliberalismo porque o tradicionalismo olavista se transformou em um nicho de mercado vendável.

Existe um quarto aspecto a destacar: é o fato de que esse circuito da desinformação não é um discurso de agentes marginais. Ele é patrocinado por setores de uma velha elite que perdeu espaço no cenário intelectual. De alguma forma no passado, esses setores definiam o que era um “bom senso” intelectual – pensando em um [Carlos] Lacerda nos anos 1950, que era uma espécie de síntese do pensamento da elite conservadora naquele tempo. Hoje, esse tipo de pensamento perdeu espaço; é um pensamento que não encontra mais muito abrigo dentro das universidades. Esses setores intelectuais constroem uma retórica de ressentimento que apela ao retorno a certos padrões do “bom senso” de uma época passada, na qual tais setores eram mais relevantes. Vemos, por exemplo, um retorno relativamente forte de ideais, como o monarquismo.

IHU – Quem são os atores sociais que dão cara aos discursos radicais da extrema-direita no Brasil e no mundo? Por que essas lideranças não se reduzem aos políticos, mas incluem líderes religiosos e influenciadores digitais?

Afonso de Albuquerque – É importante fazer uma distinção em relação ao discurso mais comum sobre esse campo. Quando falamos de líderes religiosos, que são responsáveis pela desinformação, frequentemente o discurso comum remete a líderes evangélicos, como o [Silas] Malafaia e outros, que são agentes importantes dentro do cenário da extrema-direita, mas não são os agentes centrais. Os agentes centrais da extrema-direita estão ligados a uma lógica que é fundamentalmente católica, que é a lógica do Olavo de Carvalho e do tradicionalismo. É o retorno a uma velha tradição, anterior à modernidade, que é um tipo de discurso que os evangélicos, a priori, não são capazes de fazer. Porque a origem do protestantismo é moderna.

Alguns grupos protestantes vão construir uma genealogia do protestantismo – vemos isso acontecendo também no sionismo cristão. Eles vão construir uma origem do cristianismo que remete à Judeia, ao antigo Israel, ao Israel que antecedeu ao próprio cristianismo. Se olharmos como valor o conservadorismo, ele será na sociedade brasileira sempre muito católico. O Brasil nasceu católico, a civilização brasileira se constrói em torno do catolicismo. Então, há uma certa noção de bem-comum católico que se perdeu, ameaçada pela modernidade, a qual as fraturas de ameaça a essa ordem são geralmente associadas à dita “esquerda”. No caso brasileiro, esse é um elemento distintivo importante do qual se fala pouco.

IHU – Um dado aparentemente novo é o ataque, não somente à ciência, mas aos pesquisadores do fenômeno das fake news. Por que isso acontece e quais os ataques desses radicais?

Afonso de Albuquerque – A questão do ataque à imprensa por setores mais radicais merece ser analisada em diferentes aspectos. O princípio estruturador da imprensa, a partir da década de 1980, é o neoliberalismo. Nos Estados Unidos, o governo [Ronald] Reagan tem a frase, relativa ao controle da imprensa, de que o interesse público é aquilo que interessa ao público, o que mata a ideia de um interesse público transcendente, aquilo que dava uma certa condição de acima das fronteiras para as mídias, e transforma o sucesso comercial no grande valor de avaliação da mídia. Quando a mídia perde esse valor de transcendência, esse valor superior, ela entra no campo das coisas que pode ser atacada. Se o valor do serviço público da imprensa foi, de alguma forma, desvalorizado pelas circunstâncias, agora a imprensa pode ser atacada com mais facilidade.

Uma das consequências dessa lógica é que se percebe, também no âmbito da imprensa, que tomar partido transforma-se em algo comercialmente mais viável do que adotar uma postura mais neutra. Então, as práticas jornalísticas abandonam um certo discurso, que muitas vezes era criticado por ser muito cauteloso, de busca da verdade e da objetividade, e passam a ter uma atitude de intervenção maior, um campo maior de interpretação. Com isso, abre-se a possibilidade de que o conceito unificador de imprensa perca terreno para as imprensas e toda a imprensa passa a ser situada.

Um exemplo muito interessante desse processo, no âmbito comercial, é o jornal a Gazeta do Povo, jornal do Paraná. Como a grande mídia paranaense é conservadora – o estado é conservador –, mas que na Lava Jato ela muda a natureza da sua identidade, de forma que era um jornal impresso que passa a ser digital, era um jornal paranaense, mas que se transforma em um jornal nacional, porque era o grande jornal da Lava Jato, que estava em Curitiba, mas era uma operação com impacto nacional e, principalmente, é um jornal que passa a se definir como jornalismo conservador. Essa mudança aponta para uma quebra da expectativa de que a imprensa, mesmo a grande imprensa, fosse uma imprensa com uma ambição de falar a partir de uma perspectiva de neutralidade. Sabemos que a neutralidade nunca existiu, mas o discurso da neutralidade hoje está sob ataque. Então, se não há mais neutralidade, o que existe hoje é guerra, disputa aberta.

IHU – Qual o projeto político de quem tenta esvaziar a autoridade das universidades? Como poderíamos criar estratégias para proteger esses espaços de construção de saber e cidadania?

Afonso de Albuquerque – Um pouco antes eu falei que os setores que atuam no campo da desinformação são os setores que têm uma identidade mais católica do que evangélica e têm a ver com as elites tradicionais no Brasil, que são católicas e que perderam espaço para uma lógica laica, secular, moderna. As universidades são a encarnação desse modelo lógico, laico e secular.

É muito sintomático que as universidades mudaram seu perfil de formação de elites de maneira bastante acentuada, principalmente a partir das políticas de ações afirmativas. As universidades, no Brasil e no mundo, de modo geral – [Pierre] Bourdieu escreveu sobre isso –, são espaços de reprodução de elites. Porque, nas suas seleções, em países europeus e nos Estados Unidos, as principais universidades são espaços nos quais os filhos da mesma elite entram, se formam e asseguram a ocupação de certos cargos que não se abrem a outros perfis de formação – não como regra.

A universidade brasileira, particularmente o modelo de universidade pública, baseia-se em uma ideia de acesso universal, mas que, historicamente, o mecanismo do vestibular era o mecanismo que selecionava pessoas de um extrato de classe média para cima, que mantinha de alguma forma essa lógica de reprodução de elites. Ainda se mantém em um certo nível, mas com a política de ação afirmativa, há a entrada de um grande contingente de pessoas num volume muito grande, que não estavam aptas a ingressar na universidade. Isso muda dramaticamente o perfil da universidade, o perfil do que era discutido e valorizado dentro da universidade e esse do ponto de vista desses setores conservadores, isso significa que a universidade agora está formando elites a partir de uma lógica errada no seu entendimento. E que a universidade, na verdade, deveria se voltar para esses valores mais clássicos e tradicionais que são relacionados a essa formação mais clássica e canônica.

Portanto, há a ideia de que a universidade, que deveria ser o espaço de afirmação desse cânone tradicional, agora está sendo subvertida por setores que são esquerdistas. Eu vou dar como exemplo a lógica do Brasil Paralelo.

Brasil Paralelo

O Brasil Paralelo é um grupo midiático que está à frente de uma campanha contra as universidades seculares e tenta reconstruir/retornar aos valores tradicionais “católicos”. O Brasil Paralelo é muito católico, tradicionalista, valorizador de coisas como a monarquia e hoje apresenta uma tentativa, um esforço de ataque direto ao espaço de autoridade das universidades.

Nesse contexto, a área de ciências humanas é aquela onde se concentra o campo mais importante de ataque contra as universidades. Por parte do setor conservador tradicional, as ciências humanas são o maior obstáculo. Como esse é um jogo que torna atores com agendas políticas diferentes unidos nos ataques ao mesmo adversário, uma universidade secular estruturada a partir do de um serviço público, os setores mais ligados a uma lógica neoliberal de afirmação do mercado estão menos interessados em uma lógica conservadora e mais interessados na lógica do ataque ao serviço público. Dentro da lógica do serviço público tem a ideia da autonomia universitária.

Corrosão de princípios

É importante observar que o princípio da autonomia universitária tem sido muito corroído pela aproximação entre universidade e mercado. No Brasil, mas nem tanto como em outros países, o financiamento das universidades ocorre via agentes privados e interessados. A universidade acaba se transformando em um espaço onde os interesses dos financiadores acaba ganhando legitimidade acadêmica.

Vemos isso no caso das plataformas. As plataformas financiam pesquisas sobre as plataformas, oferecem os mecanismos de análises das pesquisas e querem garantir que aquilo que seja verdade científica sobre as plataformas corresponda ao interesse das próprias plataformas. Mas isso acontece em qualquer outra área onde agentes financiadores poderosos constroem os seus espaços de legitimação acadêmica. Do ponto de vista desses agentes, a universidade será um alvo toda vez que for universidade autônoma. Do ponto de vista dos agentes de mercado, a universidade autônoma é uma ameaça aos seus interesses privados. Esse é um segundo foco de ataque à universidade.

IHU – Qual a pertinência do conceito de fake news e como suas estratégias opera em nível global e local?

Afonso de Albuquerque – O primeiro aspecto, antes de tudo, é que não gosto do termo fake news, porque ele serve para um objeto muito específico, que é o conteúdo que é divulgado, geralmente nas mídias sociais, que procura se apresentar sob o formato de notícia para distribuir desinformação. Esse é um modelo muito específico de desinformação que são peças que mimetizam características formais: linguagem, apresentação gráfica e visual do noticiário para reivindicar o valor e a autoridade geralmente associado à notícia. No geral, desinformação é um termo melhor.

Existe uma espécie de roteiro – é uma coisa internacional. O roteiro passa por um ataque, frequentemente via Judiciário, aquilo que se chama de lawfare. É um roteiro vindo dos Estados Unidos e se explica por aquilo que eu estava falando antes sobre a natureza da universidade.

Nos EUA, a universidade foi privatizada de uma maneira que no Brasil não foi; estou falando das universidades privadas. Afinal, pode ser uma universidade privada com um ethos de serviço público, sendo que uma universidade privada não é um serviço público, mas existe a noção de que o controle da universidade é feito por agentes privados, a missão da universidade é uma missão pública.

Quando falo da privatização dessas universidades, estou falando do declínio do valor público como o valor organizador da universidade. Isso pode ser também em universidades públicas e isso passa pelo financiamento. Hoje, as universidades são pressionadas a obter recursos e obter recursos no mercado. A grande questão é que os financiadores dos recursos financiam porque têm interesses, não porque têm benevolência. O interesse fundamental é exercer um controle sobre a agenda daquilo que a universidade vai produzir.

Nos EUA, como esse processo avançou muito, os financiadores acabam exercendo um papel muito poderoso sobre o poder de decisão sobre o que seria da lógica do acadêmico. Assistimos isso, por exemplo, por ocasião do conflito e das práticas genocidas de Israel em relação ao povo palestino porque os financiadores, ligados ao Estado de Israel, têm um peso imenso no sistema universitário norte-americano e estão usando esse poder para reprimir iniciativas universitárias que contestem a ação israelense.

Trago este exemplo porque é um campo onde a ação contra pesquisadores independentes é forte. Por exemplo, ataques a pesquisadores que são antissionistas sob o argumento de que são antissemitas, que é algo que tem acontecido fortemente nos EUA. Também se fazem ataques contra pesquisadores do campo da desinformação sempre com a seguinte premissa: as universidades têm financiadores e se pressionarmos a presença desses pesquisadores, vai se tornar desconfortável do ponto de vista do sustento dessas universidades e as universidades vão preferir demiti-los.

Eu contei essa história porque, no caso brasileiro, o fomento público tem um peso muito maior. Sendo de fomento público, isto permite que o valor público da pesquisa ganhe um espaço maior do que nos países centrais. Estamos sempre acostumados a pensar o nosso país negativamente em relação a outros, mas esse é um aspecto no qual nós, pesquisadores brasileiros, estamos em grande vantagem. Quando olhamos para uma universidade dos Estados Unidos, a universidade tem tudo, a biblioteca tem tudo, os prédios são muito ricos, mas estas coisas têm um custo: a autonomia. No nosso caso, acompanhamos uma greve que terminou e as universidades brasileiras têm problemas de sustentação, mas, ao mesmo tempo, tem uma lógica de autonomia intelectual que a universidade brasileira dispõe maior do que os países centrais nesse sentido.

Quando esses setores radicais atacam pesquisadores das universidades brasileiras, eles usam um roteiro importado, mas a realidade em que estão aplicando esse roteiro não é a mesma. Acaba que os ataques a esses setores universitários não tendem a produzir o mesmo tipo de impacto. Não veremos em nenhuma universidade, se chegarmos a ver será muito residual – principalmente em uma universidade pública –, o departamento ou o diretor do instituto ou o reitor indo cobrar de um pesquisador, que está sendo atacado por esses setores radicais, para que mude de atitude. Pelo contrário, a tendência é a universidade se unir em torno da defesa da autonomia intelectual desse pesquisador que está sendo atacado.

IHU – Nas duas últimas décadas, as redes sociais foram ampliando sua interferência na política. Como isso ocorreu e ocorre atualmente?

Afonso de Albuquerque – Essa questão demanda uma explicação mais profunda e precisa ser desdobrada.

Em primeiro lugar, existe a questão de defender a universidade como um espaço de pesquisa. Aqui entra a questão da soberania, que precisa ser desdobrada porque, quando pensamos em soberania existem dois aspectos da palavra soberania. O primeiro é o aspecto interno, é a soberania, a autonomia do espaço de pesquisa regido pelo valor público contra a intervenção de agentes motivados por agentes privados e dotados de grande poder econômico. Esse é o primeiro aspecto.

O segundo aspecto remete a uma certa noção de soberania nacional. Por exemplo, na grande maioria dos países, o rádio e a televisão se constituíram a partir de uma lógica do controle público, até a década de 1980 e também na década seguinte. Todos os países europeus, com exceção parcial do Reino Unido, tinham controle público. Eram diferentes modelos, mas havia a ideia de que o meio de comunicação é, antes de tudo, um meio de educação e formação de cidadãos, o que é importante estar na mão de agentes públicos. Esse foi o modelo que entrou em colapso a partir do advento do processo neoliberal de globalização.

Autonomia do serviço público

Existe uma relação entre a autonomia do serviço público e a soberania nacional. Na medida em que o valor do serviço público cai, o valor do interesse privado ganha a dimensão transnacional. A lógica atual da governança – não é mais governo, governança é o termo neoliberal para governo – se baseia em uma lógica muito diferente da antiga lógica do serviço público. Ela não encontra mais limites pré-estabelecidos, por exemplo, por um modelo de regulamentação estabelecido a priori, sendo exercido por agentes reguladores dotados de certa autoridade, acima dos interesses privados do mercado.

Nesse contexto de crise, afirmar o princípio da autonomia da universidade pública é criar as bases para a construção de formação de elites intelectuais que sejam comprometidas com a ideia de que cabe a elas desempenharem um papel público em torno de valores que são afirmados como importantes, valores que estão acima de agentes de interesses privados. Essa é uma agenda muito política.

É uma agenda muito política, mas não partidária. É a afirmação do interesse público, da noção de que existem princípios que devem conduzir esse trabalho, valores que orientam esse trabalho e que esses valores não estão à venda de alguma forma. Essa ideia é muito política e, como está sob ataque, a extrema-direita trata essa ideia política, que não é partidária, como sendo partidária.

IHU – Existe democracia na era das redes sociais e da Inteligência Artificial?

Afonso de Albuquerque – Essa questão complementa as observações que estou fazendo, porque não se trata tanto de mídias sociais, mas de plataformas. Aqui existe uma questão interessante: durante muito tempo, até a primeira metade da década passada, as pessoas pensavam em termos de mídias sociais. Quando pensavam nesses termos, elas pensavam o que hoje chamamos de plataformas: espaços mais ou menos neutros, geralmente benignos, nos quais agentes individuais podiam se expressar, dizer o que pensavam e, portanto, de alguma forma, parecia ser uma grande evolução da lógica da mídia.

No fundo, é uma lógica que é de afirmação também de interesse individual em detrimento do interesse público. Era uma lógica muito de afirmação do eu: ali eu posso ser o que quiser. O que não se via ali eram as plataformas, ou seja, o fato de que essas mídias sociais são regidas por agentes privados que lucram com o fato de que nós nos expressamos publicamente.

Esses agentes lucram através do engajamento e o que produz o engajamento é a radicalização. O tipo de mudança que venho descrevendo nas outras questões, de uma crise do valor do serviço público e de afirmação do interesse privado, agora chega ao ápice. Porque não é necessariamente apenas do ponto de vista do discurso. O discurso não tem que refletir a perspectiva de quem vende o discurso, que são as plataformas. Pode refletir qualquer perspectiva desde que engaje. E, as perspectivas que mais engajam são as mais polarizadoras. O que significa que a pessoa começa a ter um incentivo objetivo à polarização, aos discursos de desinformação, porque o excesso e o sensacionalismo vendem mais do que a moderação e a cautela, e aos discursos de ódio que acompanham a polarização. As plataformas atuam, nesse sentido, como agentes muito anticivilizatórios.

Civilização versus Barbárie

Se existe um drama posto hoje e que resume tudo o que estou falando, é um drama de civilização e barbárie mesmo. Ele define o conceito de valor público, princípios gerais que devem orientar a atuação dos agentes na vida social, aquilo que poderíamos chamar de valores civilizatórios, e os mecanismos, interesses e agentes que se organizam em contraposição à ideia de que deve haver valores civilizatórios. Portanto, nesse sentido, valores passíveis de serem classificados como barbárie.

Nós temos as plataformas como mega agentes que ordenam o discurso público e a troca do discurso público em termos globais. Fazem isso a partir de algoritmos que são uma “caixa preta”. Eles funcionam a partir de uma lógica que se esvai e escapa a todo o controle público. Novamente o mesmo drama envolvido. Nós temos um sistema de gestão do processo, não apenas divulgação de mensagens a partir da grande mídia, como no passado, mas de gestão de todo o processo de troca de mensagens nas plataformas pelos mais variados tipos de agentes a partir de uma mediação algorítmica.

E uma mediação por parte de algoritmos que são secretos, que mudam seu modelo de patrocínio dos discursos. As plataformas, periodicamente, criam políticas que diminuem a visibilidade de determinados tipos de discursos, formatos e que eventualmente fazem isso de forma a obrigar os agentes a adquirirem a visibilidade financeiramente. É o chamado impulsionamento. Cortar visibilidade de discursos é o pré-requisito para que discursos possam ser impulsionados. Cria-se a escassez para vender a abundância.

IHU – Em que sentido esse tipo de prática se associa com a democracia?

Afonso de Albuquerque – De novo, precisamos à questão que mencionei da crise do Estado Nacional. A democracia como regime depende muito do Estado Nacional, porque ele é a estrutura na qual o povo pode exercer poder de maneira soberana. A globalização tira poder do Estado Nacional e redistribui esse poder para agentes que operam em escala transnacional sem o controle dos agentes que são representados: os eleitores, a base do poder democrático, o povo.

O enorme poder que agentes transnacionais têm de mediar as trocas discursivas dentro de contextos nacionais é, nesse sentido, profundamente antidemocrático. As plataformas são agentes que ameaçam diretamente a democracia. Nós acompanhamos isso no Brasil, em vários eventos recentes, nos quais as plataformas têm se colocado como agentes que patrocinam seus interesses, mesmo que tenham que passar por cima da legislação.

Vimos isso no caso do Elon Musk, intrometendo-se em casos da política interna brasileira. Vimos também com o Google, que atacou o processo regulatório das plataformas. O exemplo da regulamentação das plataformas é muito dramático porque mobiliza a ação das plataformas, que teoricamente são apenas agentes neutros – por isso que distingo plataformas e mídias sociais. São plataformas que antigamente eram vistas como espaços nos quais a pessoa tinha total poder e autonomia para ser quem fosse e dizer o que quisesse e que agora percebemos que esses agentes, nesses contextos, assumem um papel expressivo, ativo, no sentido de editar os discursos e silenciar aqueles que se opõem aos seus interesses de maneira bem clara.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Afonso de Albuquerque – Eu gostaria de desenvolver um último conjunto de informações que dizem respeito ao papel que a universidade tem a desempenhar enquanto agente civilizatório. O contexto atual requer que nós tenhamos agentes que se mobilizem na defesa de valores comuns, valores que sirvam de base para a existência social civilizada, valores que sejam públicos.

A universidade, hoje, tem um papel extremamente importante nesse sentido, a desempenhar de muitas formas. Em relação especificamente à desinformação, eu gostaria de falar de uma iniciativa que está sendo desenvolvida no campus da minha universidade, que é a Universidade Federal Fluminense – UFF. Atualmente coordeno uma iniciativa chamada Instituto de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberanias Informacionais – INCT-DSI.

Nossa ideia é debater os fatores que limitam a soberania do controle da informação em diversos níveis e propor soluções. Nós reunimos pesquisadores de muitas universidades espalhadas pelo Brasil. Eles conduzem pesquisas que são diferentes a partir desse mesmo tema, mas na UFF, que é a instituição sede desse projeto, nós criamos uma iniciativa chamada Centro de Referência para o Ensino do Combate à Desinformação – Codes. Essa iniciativa visa discutir e formular as bases para o ensino dos estudos de desinformação, transformar os estudos de desinformação em objeto de currículo acadêmico.

Estudos de desinformação

Os estudos de desinformação ainda têm sido objeto de pesquisa muito grande no mundo, mas não de ensino. Neste momento, as universidades têm um papel ainda muito limitado no seu campo. Na UFF estamos criando a ideia de um curso sobre a desinformação, mas, mais do que criar um curso dos estudos em desinformação, estamos querendo criar um campo de conhecimento sobre os estudos de desinformação.

Achamos que isso seria muito útil porque poderíamos sistematizar a desinformação como um campo de ensino e, dessa forma, construir uma espécie de saber sedimentado no campo. Ser um saber sedimentado no campo é muito importante porque nós acompanhamos que diferentes agentes estão atuando no campo do combate à desinformação, mas a atuação desses agentes fica muito precisa e suscetível a ser contestada como operando no campo da mera opinião. O que queremos fazer é ajudar a sistematizar o debate sobre o que é desinformação, que tipos de discursos são desinformativos, como se estruturam e como são financiados.

Neste momento também, estamos fazendo gestões para criar, na UFF, um departamento de estudos da desinformação. A UFF tem um modelo de curso chamado MINOR, que é o curso de 270 horas de complementação da formação. O que queremos fazer é oferecer cursos de formação em desinformação para a universidade como todo, e não formar profissionais específicos como bacharéis. Por exemplo, queremos garantir que a pessoa que se forma em Medicina, tendo o MINOR de estudos em desinformação, possa atuar como agente do combate à desinformação médica. Que os agentes formados em direito possam atuar no combate à desinformação naquilo que afeta os campos de decisão jurídica. Queremos que os historiadores disponham de melhores elementos para entender a dinâmica do negacionismo histórico e que os cientistas naturais tenham a capacidade de entender os tipos de discurso que contestam a sua autoridade.

É um movimento que ainda não foi feito. A universidade ainda não se preparou para lidar com os agentes que atacam a sua soberania. Aquela lógica do “conheça seu inimigo”. A universidade, hoje, não conhece seu inimigo. De alguma forma, é isto que o nosso curso busca fazer: que tipo de lógica contesta de maneira ativa e busca eliminar o campo de ação soberana, o espaço do saber universitário e acadêmico?

Queremos criar um departamento porque – e isso também remente à questão da universidade e da soberania – a universidade é uma instituição crucial do ponto de vista da soberania. Afinal, ela forma elites, pessoas que exercerão cargos e atividades dirigentes na nação. Se a universidade opera a partir de uma lógica de reprodução de verdades herdadas ou transmitidas por outras sociedades, a universidade acaba criando elites dóceis aos interesses de outras sociedades ou de grupos financiadores que operam ali, direta ou indiretamente, formando as elites de outros países.

Um Brasil forte, com perspectivas que afirmem suas agendas, persiga seus interesses, deve contar com elites capazes de pensar o Brasil a partir do Brasil, não a partir da mera importação de perspectivas estrangeiras. Para isso, é preciso que a universidade forme essas pessoas. Nós achamos que, com relação à desinformação, estas coisas seriam muito importantes.

Brasil um laboratório traumático

O Brasil é um país que passou pela experiência muito notável e, em muitos aspectos, muito traumática de desinformação, traumática tanto no que diz respeito em relação à saúde – no caso da pandemia –, mas também em relação ao uso da desinformação como ataque à democracia. O Brasil claramente experimentou, de maneira muito intensa, problemas que advêm da desinformação transmitida em grande escala. O Brasil enfrentou os efeitos de uma desinformação massiva em sua sociedade. O Brasil é um país que tem muitas razões para querer buscar formas de tratamento que sejam capazes de minorar esse impacto. Nós acreditamos que essa formação em estudos de desinformação pode desempenhar um papel muito importante nesse sentido.

Neste momento, o Codes está atuando na tentativa de criar um currículo de estudos em desinformação. É um currículo que envolve quatro eixos: desinformação, do campo dos discursos de ódio, das teorias da conspiração e de ética, e metodologia de pesquisa. São temas que são, na sua natureza específica, diferentes uns dos outros, mas andam juntos.

Estamos tentando fazer esse movimento. Essa base providenciada pelo departamento seria crucial do ponto de vista de criar as condições objetivas para um diálogo que fomentasse perspectivas soberanas sobre o campo de estudos da desinformação no Brasil.

Afonso de Albuquerque (Foto: Divulgação)

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