Relatório aponta: até 2050, escassez global de água pode cortar 8% no PIB mundial e 15% nos países pobres. Metade da produção de alimentos será afetada. Encontros internacionais caríssimos que dizem tratar destes temas estão cegos a tais emergências
Por José Eustáquio Diniz Alves, do Projeto Colabora / Outras Palavras
A maior parte da superfície do planeta Terra é composta por água. Cerca de 70% da superfície terrestre é coberta pelo líquido H2O e 70% do corpo humano é composto por água. A água é essencial para a vida de todos os seres vivos do planeta. Ela é essencial para a hidratação e para a produção de alimentos. Porém, os oceanos salgados respondem por 97,5% de todos os recursos hídricos e outros 1,75% estão congelados, nos polos, nas geleiras, nos glaciares e no permafrost. Desta forma, a humanidade e as demais espécies vivas do planeta contam com uma proporção de água potável de apenas 0,75% do total dos recursos hídricos para o consumo comum.
Na ilustração abaixo, a esfera à esquerda representa a Terra seca, com toda a água removida. A esfera azul, à direita, mostra o volume aproximado de toda a água da Terra. O minúsculo ponto azul, na extrema direita, representa a água doce disponível no mundo. O contraste é expressivo.
Segundo o Serviço Geológico dos EUA, uma outra maneira de comparação, ocorre pela representação do tamanho da Terra como uma bola de basquete, toda a água do planeta como uma bola de pingue-pongue e toda a água doce disponível seria menor do que um milho de pipoca.
Com o crescimento da população e da economia, a demanda por água potável cresceu de forma exponencial. Entre 1772 e 2022 a população mundial passou de cerca de 840 milhões de habitantes, para 8 bilhões de habitantes, um crescimento de 9,5 vezes em 250 anos. Mas a economia cresceu em ritmo bem superior, pois o Produto Interno Bruto (PIB) global cresceu 177 vezes entre 1772 e 2022. Portanto, cresceu a demanda por água para o consumo individual, para a indústria, a agricultura, a pecuária e para toda a produção de bens e serviços. As desigualdades sociais no acesso à água também cresceram.
Para agravar a situação, a crise climática impacta os recursos hídricos de maneira significativa e multifacetada. O aumento das temperaturas globais intensifica a evaporação da água de rios, lagos e reservatórios, reduzindo os estoques disponíveis. A crise climática altera padrões de chuva, causando períodos mais prolongados de seca em algumas regiões e chuvas excessivas em outras. Isso afeta a distribuição e a quantidade de água disponível para consumo humano, agricultura e ecossistemas. Regiões com baixa pluviosidade podem enfrentar secas mais frequentes e severas. O aquecimento global provoca o degelo dos glaciares e afeta o fluxo dos rios que são fontes de água doce para milhões de pessoas.
O degelo dos polos e da Groenlândia provoca a elevação do nível dos oceanos acelerando o fenômeno da intrusão de água salgada em aquíferos das regiões costeiras, tornando a água imprópria para consumo ou irrigação. À medida que o nível do mar sobe, há o naufrágio dos deltas dos rios, que são tipicamente áreas planas e vulneráveis. As temperaturas mais altas também contribuem para o aumento de algas nocivas em lagos e reservatórios, afetando a qualidade da água e tornando o tratamento mais difícil e caro.
Avaliando o cenário de estresse hídrico global, a Comissão Mundial sobre a Economia da Água publicou o relatório “The Economics of Water: Valuing the Hydrological Cycle as Global Common Good”, onde aponta que a crise da água ameaça uma queda de 8% do PIB mundial até meados do século, com uma perda de 15% nos países de baixa renda. Coloca também em risco mais da metade da produção mundial de alimentos até 2050. Hoje em dia, metade da população mundial enfrenta escassez de água. Como esse recurso vital tem se tornado cada vez mais escasso, a segurança alimentar e o desenvolvimento humano estão em risco.
A capacidade dos cientistas de medir a extensão do esgotamento das águas subterrâneas, níveis de água em lagos e rios, umidade do solo e mudanças na água armazenada na neve e gelo melhorou muito nas últimas duas décadas. Graças às missões do satélite Gravity Recovery and Climate Experiment (GRACE), se pode medir as tendências de armazenamento de água e a escassez hídrica, como mostra a figura abaixo.
A Comissão Mundial sobre a Economia da Água argumenta que a crise exige um pensamento mais ousado e integrado e uma reformulação das ações políticas, reconhecendo que o ciclo da água deve ser administrado como um bem comum global. Isso só pode ser feito coletivamente, através de ações coordenadas em todos os países, através da colaboração entre fronteiras e culturas e para benefícios que serão sentidos em todos os lugares. Criticamente, devemos redefinir a maneira como valorizamos a água, refletir sobre a sua escassez, ao mesmo tempo em que reconhecemos os múltiplos benefícios da água e um ciclo hidrológico global estável em todas as economias.
O desafio torna-se ainda mais urgente quando reconhecemos a demanda hídrica que cada pessoa precisa diariamente para viver uma vida digna. Cerca de 50 a 100 litros de água por dia são necessários para atender às necessidades essenciais de saúde e higiene, mas quando se inclui a nutrição e consumo adequados, o mínimo passa para cerca de 4.000 litros por pessoa por dia. A maioria das regiões não consegue garantir tanta água localmente.
O relatório sugere uma regulação fundamental fundada na abordagem “dirigida pela missão”. Essas missões incentivariam inovações, capacitação e investimentos, e seriam avaliadas não em termos de custos e benefícios a curto prazo, mas sim de como podem catalisar benefícios a longo prazo e em toda a economia. O relatório recomenda cinco missões:
1- Lançamento de uma nova revolução nos sistemas alimentares
Transformar a agricultura para sustentar o planeta, ampliando a micro irrigação e melhorando radicalmente a produtividade da água, reduzindo a dependência de fertilizantes à base de nitrogênio, espalhando a agricultura regenerativa e deslocando-se progressivamente de dietas de origem animal para vegetais.
2- Conservar e restaurar habitats naturais essenciais para proteger a água verde
Conservar 30% das florestas e restaurar 30% dos ecossistemas degradados até 2030. Deve ser dada prioridade à proteção e restauração das áreas que melhor podem contribuir para um ciclo de água estável.
3 – Estabelecer uma economia de água circular
Captar o valor total de cada gota tratando e reutilizando águas residuais, reduzindo as ineficiências de distribuição e recuperando recursos valiosos.
4 – Permitir uma era limpa e rica em IA com intensidade de água muito menor
Energia renovável, semicondutores e inteligência artificial (IA) estão definindo uma nova era econômica. Devemos estimular a inovação com altas ambições e garantir equidade, sustentabilidade e eficiência para garantir que seu crescimento não enxague o estresse global da água ou restrinja os benefícios que eles fornecem.
5 -Garantir que nenhuma criança morra por causa de água insegura até 2030
Atualmente, mais de 1.000 crianças morrem todos os dias por insegurança hídrica. Garantir o acesso à água potável para as comunidades rurais e de difícil acesso, incluindo o investimento em sistemas descentralizados de tratamento de água e saneamento.
O relatório sugere criar um Pacto Global de Água multissetorial para enfrentar os desafios da água verde e azul e estabilizar o ciclo hidrológico. Pede também que os governos de todo o mundo entreguem um “novo curso de água em todas as escalas” e revigore as estruturas de cooperação internacional para enfrentar os desafios da água compartilhada para garantir um futuro de água justo e sustentável.
Crise climática, crise hídrica e o aumento do preço dos alimentos
Os últimos 10 anos foram os mais quentes do Holoceno (últimos 12 mil anos), sendo que 2024 deve ser o primeiro ano com a anomalia da temperatura global superando 1,5ºC acima da média do período pré-industrial (1850-1900). A conjugação da crise climática, hídrica e do aumento da demanda por comida tem elevado o preço dos alimentos.
A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) divulgou, no dia 08 de novembro de 2024, os novos dados do Índice de Preços dos Alimentos (FFPI). O preço mundial dos alimentos que havia caído em 2023 em relação ao recorde de 2022, voltou a subir no segundo semestre de 2024 e apresenta um alto patamar no último quadriênio. Os números indicam que a carestia é o grande desafio da atual década.
O gráfico abaixo mostra o Índice de Preço Real dos Alimentos da FAO, de 1961 a 2024, considerando como referência a média de 2014 a 2016, com valor 100. Nota-se que a média decenal do preço dos alimentos estava acima de 100 nas décadas de 1960 e 1970, ficou abaixo de 100 nas três décadas seguintes e voltou a superar a média de 100 na década passada. Os valores mais baixos foram registrados na última década do século XX, mas os preços estão apresentando tendência de alta nos anos 2000. O valor do FFPI registrado em 2022 (140,6) foi o mais elevado em mais de 100 anos, desde os recordes alcançados na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e o valor de 113,1 em 2024 é maior do que nas décadas anteriores.
Para além da variação de um ano específico, o aspecto mais preocupante reside no fato de que a média real do Índice de Preços dos Alimentos (FFPI) no quadriênio 2021-2024 atingiu a marca mais elevada dos últimos 60 anos, superando a média do quadriênio 1973-1976. Os altos preços observados em meados da década de 1970 foram diretamente influenciados pela Guerra do Yom Kippur (Guerra Árabe-Israelense de 1973) e pelo subsequente aumento nos preços do petróleo.
No cenário atual, os altos valores dos preços dos alimentos foram determinados pela disrupção das cadeias produtivas decorrente da pandemia da covid-19, pela invasão militar da Ucrânia pela Rússia, pela extensão da Guerra do Oriente Médio, envolvendo Israel, Hamas, Hezbollah e Irã e por todas as consequências globais decorrentes da crise climática e ambiental.
As estimativas indicam que o Índice de Preços dos Alimentos deve se manter em elevado patamar nos próximos anos, indicando que a média decenal do FFPI deve alcançar o seu maior valor na década atual. O aumento do preço dos alimentos é um reflexo da insustentabilidade entre o aumento da demanda alimentar provocada pelo crescimento da população e da economia e as dificuldades pelo lado da oferta em decorrência da degradação ambiental, dos conflitos armados e dos efeitos do aquecimento global.
Os últimos dois anos (2023 e 2024) têm sido marcados por recordes na concentração de CO2 na atmosfera, por recordes na temperatura média do planeta e por uma aceleração do degelo da criosfera, com o consequente aumento do nível dos oceanos. O planeta se aproxima dos pontos de inflexão de risco para vida humana e não humana.
Toda a população mundial será afetada por ondas letais de calor e bilhões de pessoas poderão ter o padrão de vida reduzido pelos efeitos da emergência climática, da perda de biodiversidade e pela ineficiência da governança global. Os consumidores de baixa renda dos países pobres, que gastam mais em alimentos como proporção do orçamento familiar, serão os mais afetados pelo aumento do preço dos alimentos, assim como pela falta de alternativa diante dos desastres climáticos extremos. Ninguém vive sem água e sem comida.
Sabendo disto, o Brasil articulou uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza para ser tema de destaque na 19ª Cúpula de Líderes do G20 está marcada para os dias 18 e 19 de novembro, no Rio de Janeiro. O G20 é a iniciativa internacional com maior força na Governança Global.
O que esperar da 19ª Cúpula de Líderes do G20
Os 19 países do G20 (África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia), mais os blocos da União Europeia e da União Africana representam cerca de 85% do PIB mundial, 75% do comércio internacional e cerca de três quartos da população do planeta. O G20 também responde por mais de 80% dos gastos militares globais.
Sem dúvida, o G20 é o grupo que agrega a maior força econômica, populacional e militar do planeta. Porém, existem contradições internas nas propostas de ações e uma situação conjuntural desfavorável na 19ª Cúpula do G20. O presidente Vladimir Putin, da Rússia – maior país do mundo em extensão territorial – não estará presente na reunião do Rio de Janeiro, pois enfrenta um mandado de prisão emitido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). O presidente Joe Biden, dos EUA – a maior economia do mundo (em dólares correntes) – estará presente, mas como um “pato manco”, com pouco poder de decisão e de comando, uma vez que será substituído, em janeiro de 2025, por Donald Trump, o presidente eleito que é declaradamente negacionista do clima e que não prioriza as questões de direitos humanos e ambientais.
Por exemplo, os climatologistas não se cansam de dizer que a economia mundial precisa abandonar a dependência dos combustíveis fósseis, fazer a transição energética e impedir a 6ª extinção em massa das espécies. Para evitar que a temperatura global avance para níveis acima de 1,5ºC em relação ao período pré-industrial e possa ser reduzida no futuro, é necessário diminuir as emissões globais de gases de efeito estufa (GEE) em torno de 50% até 2030, em relação ao nível de 2019 e zerar as emissões líquidas de GEE até 2050.
Porém, a vitória do candidato republicano à presidência dos EUA coloca em xeque o tímido legado climático de Joe Biden e ameaça o tabuleiro das negociações internacionais. Donald Trump prometeu retirar os EUA não somente do Acordo de Paris, mas também da Convenção-Quadro da ONU sobre Mudanças Climáticas e tem como meta o aumento da exploração de combustíveis fósseis, com o lema “Drill, baby, drill”.
Infelizmente, os EUA não são exceção. No Brasil, a presidenta da Petrobras, Magda Chambriard e o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, são ferrenhos defensores da expansão da produção nacional de combustíveis fósseis e da exploração de petróleo na Margem Equatorial da Amazônia. No Azerbaijão, o ministro Mukhtar Babayev, presidente da 29ª Cúpula climática anual da ONU (COP29), que ocorrerá na cidade de Baku, entre os dias 11 e 22 de novembro de 2024, disse que pretende capitanear os países a avançar na descarbonização de suas economias, mas sem abandonar a expansão da produção de combustíveis fósseis.
Hipoteticamente, a 19ª Cúpula do G20 e a 29ª Cúpula climática que irão ocorrer neste mês de novembro de 2024 podem ser decisivas para evitar o descontrole do aquecimento global e suas consequências, como a crise hídrica e a insegurança alimentar. O futuro da humanidade e do meio ambiente dependem da clarividência e da eficácia da governança global. Mas o quadro atual não é muito alentador. Resta torcer por um milagre para que estas Cúpulas dispendiosas tomem medidas efetivas para acabar com a pobreza social e ambiental que se espalha pelos quatro cantos do mundo.
Referências:
ALVES, JED. Afinal, qual a importância do G20, grupo que se reúne este ano no Brasil?, # Colabora, 13/05/2024 https://projetocolabora.com.br/artigo/afinal-qual-a-importancia-do-g20-grupo-que-reune-este-ano-no-brasil/
ALVES, JED. Alguns países do G20 estão reduzindo as emissões per capita de CO2 e outros não, # Colabora, 24/06/2024 https://projetocolabora.com.br/ods13/alguns-paises-do-g20-estao-reduzindo-emissoes-de-co2-outros-nao/
ALVES, JED. Da Índia aos EUA, as desigualdades de renda entre os países do G20, # Colabora, 19/08/2024 https://projetocolabora.com.br/artigo/da-india-aos-eua-as-desigualdades-de-renda-entre-os-paises-do-g20/
Global Commission on the Economics of Water. The Economics of Water. Valuing the Hydrological Cycle as a Global Common Good, 16 Oct 2024
https://economicsofwater.watercommission.org/report/economics-of-water.pdf
The FAO Food Price Index (FFPI), 08 Nov 2024 https://www.fao.org/worldfoodsituation/foodpricesindex/en/