‘Nem a secretaria, nem a comissão vai resolver a vida dos atingidos’

Representante dos pescadores, Lambisgoia critica reparação do crime da Samarco/Vale-BHP

Por Mariah Friedrich, Século Diário

O acordo de repactuação do crime socioambiental da Samarco/Vale-BHP trouxe novos desdobramentos no Espírito Santo, com a criação de uma comissão parlamentar na Assembleia Legislativa para monitorar a execução das medidas e a aprovação de uma lei do governo estadual que institui uma secretaria estadual para coordenar as ações. No entanto, a efetividade dessas iniciativas é questionada por comunidades impactadas, que ainda enfrentam dificuldades na recuperação de suas condições de vida, afetadas pelo rompimento da barragem em 2015, como ressalta o presidente do Sindicato dos Pescadores e Marisqueiros do Espírito Santo (Sindpesmes), João Carlos Gomes da Fonseca, conhecido como Lambisgoia.

Para ele, as medidas adotadas até o momento não atendem às reais necessidades dos atingidos, que continuam a enfrentar uma crise de segurança alimentar, saúde e subsistência “Nem a secretaria, nem a comissão vai resolver a vida dos atingidos. O que o atingido precisa nessa hora? É de arroz, é de feijão, uma conta de luz para pagar. O que a secretaria vai poder fazer sobre isso?”, questiona, enfatizando a necessidade urgente de atender às condições básicas de vida das comunidades impactadas.

Segundo o governo, a Secretaria de Recuperação do Rio Doce (Serd) tem como objetivo coordenar as ações de recuperação da bacia do Rio Doce, buscando articular projetos e gestão de recursos oriundos do novo acordo de repactuação. A estrutura contará com três subsecretarias e seis gerências, incluindo uma para a retomada econômica da região. Serão criados 45 cargos comissionados e três funções gratificadas, com um impacto financeiro anual de R$ 4,7 milhões, representando cerca de 2% dos recursos do acordo judicial firmado em outubro, sob protestos.

Proposta pelo deputado João Coser (PT), a Comissão de Acompanhamento do Processo de Reparação visa fiscalizar o cumprimento do acordo de repactuação do Termo de Transação de Ajustamento de Conduta de Mariana e será composta por cinco membros efetivos e cinco suplentes, com um prazo inicial de seis meses para desenvolver suas atividades. Entre as funções do colegiado, está o monitoramento da implementação das medidas previstas no novo termo.

Ambas as iniciativas têm sido vistas com desconfiança pelos atingidos, relata Lambisgoia, que ressalta o desamparo da população, sem acesso aos recursos essenciais para a sobrevivência diária. Ele considera que a criação da secretaria representa mais uma estrutura burocrática que, na prática, não resolve os problemas e geram novas despesas. “A vida dos atingidos é muito mais urgente do que uma secretaria”, destacou.

A falta de participação das comunidades atingidas na negociação do acordo de repactuação gerou um forte sentimento de exclusão. Lambisgoia enfatiza que as decisões foram tomadas sem a devida consulta às populações impactadas, o que aumenta a desconfiança nas iniciativas de reparação, tornando as soluções propostas incapazes de refletir as necessidades das pessoas afetadas. “O acordo foi feito sem a nossa voz, sem a nossa presença. Não fomos consultados de fato sobre o que precisávamos, o que realmente faria diferença na nossa vida. A comissão pode até monitorar, mas quem está sentindo na pele o que aconteceu não está sendo ouvido de fato “, destaca.

Para as comunidades que dependem da pesca artesanal, a situação é crítica. A degradação dos ecossistemas costeiros impede a retomada segura das atividades e expõe os trabalhadores a condições precárias. A maioria dos atingidos pela tragédia vai receber a quitação final da indenização até 2026, mas a contaminação por substâncias tóxicas não será resolvida até lá, alerta o representante dos pescadores.

De acordo com uma nota técnica publicada no início do ano pela Aecom do Brasil, perito judicial do caso Samarco/Vale-BHP, alimentos como pescados, frutas e vegetais provenientes da Bacia do Rio Doce tem apresentado níveis alarmantes de elementos nocivos, como bário, chumbo e metilmercúrio. “Como fica a vida do atingido quando descobre que o seu corpo está com tudo isso que o rejeito de lama trouxe, e até agora só foi comprovado nos peixes e alimentos, mas e o ser humano, que come isso?”, questiona Lambisgoia.

Ele acrescenta que muitos pescadores e outros grupos estão excluídos do processo de indenização devido às limitações de reconhecimento como atingido ou porque o acordo judicial nega esse direito a quem já acessou indenizações anteriores, como o Novel, sistema indenizatório simplificado criado em 2020, que visava pagar indenizações individuais aos atingidos pelo rompimento da barragem da Samarco em Mariana (MG) e foi encerrado de 2023 por falta de amparo legal, conforme decisão judicial.

Com a extinção da Fundação Renova após a repactuação, o desafio de garantir a reparação integral recai agora sobre novas estruturas administrativas e políticas. Entretanto, o pescador afirma que enquanto os recursos são destinados a outras finalidades, os atingidos continuam sem soluções concretas para seus problemas mais urgentes. “O dinheiro para pagar os atingidos veio, mas a parte mais importante de se recuperar é a vida do ser humano. Estão tirando dinheiro do atingido para investir em outras áreas”, critica.

Impunidade

O valor da repactuação a ser pago pelas empresas criminosas foi estimado em R$ 167 bilhões, dos quais R$ 95,5 bilhões deverão ser transferidos ao longo de vinte anos aos cofres da União, estados do Espírito Santo e Minas Gerais, e para 49 municípios afetados, para serem aplicados em políticas de reparação socioambientais. As mineradoras ainda terão obrigações financeiras de R$ 31,5 bilhões para ações de reparação direta, incluindo indenizações e assistência às comunidades impactadas. Além desse montante, as empresas afirmam ter desembolsado cerca de R$ 37 bilhões por meio da Fundação Renova, criada para gerir ações de reparação e compensação, como parte do Termo de Transação e Ajuste de Conduta (TTAC).

Milhares de famílias ainda lutam para serem reconhecidas como vítimas do crime e garantirem seus direitos no processo de reparação pelo rompimento da barragem de Fundão, que liberou aproximadamente 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, devastando vilarejos, poluindo o Rio Doce e atingindo o litoral do Espírito Santo.

O crime socioambiental, considerado o maior da história brasileira, resultou na perda de 19 vidas, na contaminação de 684 km do Rio Doce e no impacto a mais de 2,5 milhões de pessoas em três estados do país.

Diante da impunidade das mineradoras, absolvidas em decisão de primeira instância pela a Justiça Federal de Minas Gerais, os atingidos acompanham o julgamento da BHP Billiton em Londres, na Inglaterra, na expectativa de que o processo internacional responsabilize as empresas e traga justiça para as populações afetadas. Recentemente, o Ministério Público Federal (MPF) apresentou recurso para reverter a sentença, que absolveu as empresas Samarco Mineração, Vale, BHP Billiton e Vogbr Recursos Hídricos e Geotecnia Ltda., além de seis executivos e técnicos, pelas acusações criminais relacionadas ao rompimento da barragem de Fundão em Mariana (MG), em 2015.

Imagem: Acervo pessoal

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