A Comissão Pastoral da Terra – Regional Nordeste 2 torna público o relatório “Morrer de fome um pouco por dia – Impactos aos direitos humanos causados pela Usina Trapiche à comunidade pesqueira no município de Sirinhaém/PE”. O estudo, que contou com o apoio da OXFAM, apresenta as principais violações de direitos humanos sofridas pela comunidade de pescadores artesanais e extrativistas costeiros marinhos que vivia nas ilhas de Sirinhaém, localizadas no município de mesmo nome, litoral sul do estado de Pernambuco. O conflito ocorreu com a Usina Trapiche, uma das maiores do estado de Pernambuco e fornecedora de açúcar para grandes multinacionais, como a Coca-Cola e Pepsi Co.
Os conflitos agrários e violações de direitos humanos praticados por Usinas de cana-de-açúcar contra populações camponesas compõem o cotidiano e a história da zona da mata de Pernambuco. No entanto, desde a sua eclosão, na década de 1980, o conflito territorial nas ilhas de Sirinhaém tornou-se emblemático por possuir um extenso histórico de graves impactos sociais e ambientais causados pela Empresa Trapiche no local. A grave injustiça praticada contra as famílias que foram expulsas de seu território, as constantes denúncias de poluição ambiental e a não observância e reparação, por parte do estado brasileiro, do conjunto dos direitos violados foram os principais motivos para a realização do estudo.
Para a elaboração do relatório, iniciado em abril de 2015, a equipe de CPT analisou mais de quatro mil páginas de documentos, realizou entrevistas com os membros da comunidade tradicional, pescadores e pescadoras do município, com os principais órgãos e entes públicos envolvidos no caso e empresas compradoras do açúcar da Trapiche. O resultado foi um minucioso relatório, com detalhadas informações sobre a vida das famílias enquanto ainda viviam em seu território tradicional, a história do conflito territorial, o despejo forçado provocado pela empresa, os impactos causados à vida das famílias após a expulsão do território, além de análises sobre os impactos causados ao meio ambiente.
O estudo apresenta também uma série de recomendações direcionadas aos principais envolvidos no caso, especialmente aos órgãos e entes públicos, para que tomem medidas imediatas no intuito de reparar todos os direitos violados, entre eles: o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Ministério Público Federal (MPF), o Governo do Estado de Pernambuco -por meio de sua Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) -, a Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH),o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Ministério Público de Pernambuco (MPPE), a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), além das empresas compradoras dos produtos da Usina Trapiche, como a Coca Cola e a Pepsi Co.
Para a CPT, o relatório “revela muito mais do que a violência cometida contra uma comunidade tradicional de pescadores(as), que criaram um manejo próprio e estabeleceram uma relação de equilíbrio com a natureza, em harmonia com o território tradicional. Elas escancaram como, ainda hoje, no Brasil, os poderes públicos mantêm íntima relação com a elite agroaçucareira do Nordeste brasileiro, reproduzindo formas arcaicas e provincianas de opressão.”
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RESUMO EXECUTIVO
METODOLOGIA – Este estudo apresenta uma análise dos acontecimentos e das violações de direitos humanos causadas pela Usina Trapiche S/A e denunciadas por membros da comunidade tradicional que residia nas Ilhas de Sirinhaém e pelos demais pescadores que atuam na zona estuarina. As informações aqui contidas foram coletadas através de um amplo processo de pesquisa realizado de abril de 2015 a agosto 2016 pela Comissão Pastoral da Terra, a qual já atua na área desde 2006, dando apoio às famílias impactadas pela Usina Trapiche, tanto por meio de seus agentes quanto de sua assessoria jurídica. À missão e aos princípios da CPT, aliamos os procedimentos metodológicos utilizados pela OXFAM: “Getting it Right”, para a avaliação de impactos de direitos humanos que envolvem a iniciativa privada (em inglês, Community-Based Human Rights Impact Assessment Iniciative/COBHRA).
O CONFLITO E SEU CONTEXTO – No estuário do Rio Sirinhaém, localizado no município de Sirinhaém, litoral sul do estado de Pernambuco, consolidou-se uma comunidade tradicional composta por 57 famílias de pescadores artesanais e extrativistas costeiros e marinhos (aproximadamente 360 pessoas), que viviam em constante harmonia com esse ecossistema, seu território tradicional. Lá, segundo relatos dos antigos moradores, era um lugar de “barriga cheia”, pois era um lugar bom de viver, demonstrando a consolidação da comunidade em um território de abrigo e de fartura, de trabalho e de vida. Havia a pesca artesanal, a agricultura do autoconsumo e a criação de animais de pequeno porte que garantiam a soberania e a autonomia alimentares, além das relações de solidariedade e partilha, que tornavam o convívio harmonioso no território.
Permaneceram nessa região, segundo relatos orais, desde o início do século XX até o período de 1998 a 2010, em virtude de ter se iniciado, no fim da década de 1980, um extenso e violento conflito territorial com a Usina Trapiche – uma das maiores usinas de cana-de-açúcar do estado de Pernambuco -, que acabou culminando no esfacelamento da comunidade. As famílias expulsas foram deslocadas para bairros de periferia no município de Sirinhaém, tendo sofrido durante esse período, e até os dias de hoje, diversas violações aos direitos a que fazem jus de acordo com o direito pátrio e internacional, sobretudo aos direitos humanos.
As violações de direitos humanos contra a comunidade tradicional das Ilhas de Sirinhaém, imputadas à Usina Trapiche, são melhor compreendidas dentro do contexto histórico e ambiental em que estão inseridas, na Zona da Mata sul pernambucana, configurando apenas uma pequena parte do volume de denúncias de violações de direitos humanos praticadas por empresas do setor sucroalcooleiro na região. O monocultivo de cana-de-açúcar consiste em um modelo de exploração que condenou a região a enfrentar uma estrutura baseada na concentração de terras e de renda, na degradação ambiental e nas relações de trabalho degradante, não superadas até os dias atuais.
Dentro deste contexto, é possível resumir o conflito vivido pela comunidade tradicional de Sirinhaém como decorrente do avanço do setor sucroalcooleiro em territórios historicamente constituídos pelos povos do campo. Diante do prestígio e do forte apoio político e econômico que essas usinas produtoras de açúcar e álcool possuem junto ao Estado brasileiro, como é o caso da Trapiche, houve grande facilidade na retirada das famílias das ilhas, por meio da utilização de sua força privada, havendo ainda a conivência do Estado por meio de suas polícias militar e civil, do Judiciário e do Ministério Público, no sentido de criminalizar e deslegitimar a posse dessas famílias.
AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS – No intuito de expulsar as famílias da área e destruir a comunidade tradicional que existia na localidade, a empresa utilizou-se de variados métodos, como um acordo de comodato forjado, denúncias ao Ministério Público atribuindo crimes ambientais aos pescadores, destruição de lavouras, fruteiras e casas, incêndios, ameaças e acordos forçados. Além disso, por meio de ações de reintegração de posse com base no acordo forjado, buscou deslegitimar a posse antiga da comunidade na área.
Essas estratégias utilizadas pela empresa para deslocar as famílias do seu território para outras áreas vulneraram e ainda vulneram, direta e indiretamente, diversos direitos fundamentais dos antigos moradores, como o direito à dignidade da pessoa humana, à liberdade, à moradia adequada, à segurança pública e ao não despejo forçado.
Além dos citados acima, um direito fundamental bastante maculado foi o direito ao um meio ambiente ecologicamente equilibrado, tendo em vista que a atividade sucroalcooleira traz consigo inúmeros impactos ao ambiente. Além do desmatamento de vegetação nativa consideradas como áreas de preservação permanente – APP para plantação de cana na beira do rio, o impacto mais sentido pelos pescadores é aquele decorrente dos incessantes despejos de efluentes industriais no rio Sirinhaém ou seus afluentes, a exemplo do vinhoto. A substância, por apresentar um alto consumo de oxigênio, acarreta a morte das espécies aquáticas e diminui abrupta e drasticamente o estoque pesqueiro, trazendo enormes prejuízos econômicos e alimentares para quem vive da pesca. Além disso, a água contaminada traz riscos à saúde das mulheres pescadoras, que, pelo tipo específico de pesca que exercem (coleta de crustáceos e moluscos), estão em constante contato com a água.
A análise dos fatos e documentos aponta ainda para a presença de falhas nos procedimentos adotados por órgãos e entes públicos, a exemplo do Ministério Público e do Judiciário, ao desconsiderarem, por exemplo, tratar-se de uma comunidade pesqueira tradicional, lidando com os casos isoladamente, fragilizando a articulação dos ilhéus. Além da questão procedimental, é possível ainda fazer crítica à lógica patrimonialista e conservadora adotada pelo judiciário pátrio e pela SPU, que, ao invés de resguardarem o direito legítimo dos ilhéus de permanecerem no seu território, optaram por proteger direito da Usina ao domínio útil do terreno, fundado unicamente em títulos formais, e não na posse de fato.
O não reconhecimento da tradicionalidade da comunidade acabou, consequentemente, por acarretar o descumprimento de outros direitos nacionais e internacionalmente promulgados, como o direito à proteção do território tradicional, à autonomia, à consulta prévia, ao não deslocamento forçado, entre vários outros apontados no relatório.
CONCLUSÕES – Os fatos relatados revelam muito mais do que a violência cometida contra uma comunidade tradicional de pescadores(as), que criaram um manejo próprio e estabeleceram uma relação de equilíbrio com a natureza, em harmonia com o território tradicional. Elas escancaram como, ainda hoje, no Brasil, os poderes públicos mantêm íntima relação com a elite agroaçucareira do Nordeste brasileiro, reproduzindo formas arcaicas e provincianas de opressão. O caso revela como a comunidade tradicional não conseguiu obter amparo aos seus direitos territoriais nem no Poder Judiciário e nem no Poder Executivo. O Estado manteve-se de mãos dadas com a Usina para expulsar essas famílias e colocá-las em uma condição de indignidade e indigência.
ALGUMAS RECOMENDAÇÕES –
ICMBIO- INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE: Recomenda-se ao ICMBio que o processo de criação da RESEX Sirinhaém seja retomado e a decisão de seu arquivamento, revogada. Na impossibilidade de tal medida, recomenda-se ao ICMBio que cobre do governo do estado de Pernambuco uma posição sobre a criação da Resex em âmbito estadual.
MPF – MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL: Recomenda-se ao MPF dar continuidade ao procedimento interno que apura a procedência das motivações dadas pelo ICMBio para arquivar o processo administrativo de criação da Resex, a despeito de todos os estudos constatarem a necessidade de sua criação como melhor solução para as questões socioambientais da região. Que assim proceda para, ao final, entrar com uma Ação Civil Pública contra o ICMBio.
GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO E SEMAS – SECRETARIA DE MEIO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE: A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) deve ser instada a se manifestar formalmente sobre a sua posição oficial a respeito da criação da Reserva Extrativista federal Sirinhaém/Ipojuca ou sobre o que definitivamente pretende fazer, com brevidade, em relação às reivindicações da população para aquela área.
CPRH – AGÊNCIA ESTADUAL DE MEIO AMBIENTE: Recomenda-se que o órgão ambiental do Estado realize uma efetiva fiscalização acerca da poluição hídrica que vem sendo infligida ao rio Sirinhaém e atribuída à Usina Trapiche.
IBAMA – INSTITUTO BRASILEIRO DE MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS: Recomenda-se ao Ibama que volte a empreender fiscalizações sistemáticas a fim de monitorar e autuar os responsáveis pela poluição do Rio Sirinhaém, seu estuário e a mata atlântica adjacente.
SPU – SECRETARIA DO PATRIMÔNIO DA UNIÃO: Recomenda-se à Secretaria do Patrimônio da União que cumpra seu papel institucional, cancelando o aforamento das ilhas à Usina Trapiche, para efetivar o cumprimento da função socioambiental do imóvel da União e propiciar a regularização fundiária da comunidade tradicional.
EMPRESAS COMPRADORAS DOS PRODUTOS DA USINA TRAPICHE, A EXEMPLO DA COCA COLA E DA PEPSI: Recomenda-se que essas empresas compradoras do açúcar fornecido pela Usina Trapiche dialoguem para que esta deixe de constituir um empecilho à criação da Reserva Extrativista. Ficando constatada a impossibilidade de se avançar no diálogo e nas ações tendentes ao respeito aos direitos territoriais da comunidade tradicional, recomenda-se o rompimento do vínculo comercial, já que tal ato é coerente com os princípios que orientam as políticas de relacionamento das grandes empresas com seus fornecedores.