No Mato Grosso do Sul, um mamão nem sempre é só um mamão

Por Alessandro Prado, Jean Menezes e Pedro Peruzzo, no Justificando

Este texto é uma denúncia de mais um ato de racismo e abuso policial praticado por agentes de segurança pública e vereadores de Paranaíba, no Mato Grosso do Sul. O Estado é conhecido internacionalmente pelos ataques a populações indígenas e parece querer não perder tempo em aumentar sua fama também em relação a racismo contra negros. Talvez os vereadores de Paranaíba e os policiais dessa cidade não tenham se dado conta de que ao mesmo tempo que nossas vidas estão flagradas 24 horas pelas redes sociais, também a deles está. Não existe mais lugares e nem pessoas neste país que estão à margem da lei se existir internet e câmeras de celular.

Paranaíba, uma cidade do interior sul-mato-grossense, liga-se ao contexto histórico de repressão nacional e internacional diante da crise capitalista. Os planos de austeridade e a repressão política e policialesca não são uma exclusividade dos grandes centros urbanos. Seja em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Rio Grande do Sul, Curitiba, Belém ou Teresina, a retaliação aos que lutam pela democracia (ou pela sobrevivência) parece não ter fim. Ao passo que a crise se fortalece, o estado intensifica a repressão àqueles que não aceitam calados o preço de uma crise que não causamos.

Em Paranaíba, município com uma dívida milionária, arrocho salarial dos servidores, prédios públicos abandonados, ruas destruídas e creches funcionando com inúmeros problemas, os vereadores aprovaram um aumento em seus rendimentos da ordem dos 31,17%.

Um verdadeiro contrassenso, se considerarmos a precarização dos servidores e da população em geral que devem sobreviver com salários defasados e a inflação.

Passado uma semana da infame autopromoção financeira do legislativo da cidade, exatamente no dia 24 de abril de 2017, parte da população dirigiu-se à Câmara de Vereadores para acompanhar a sessão, talvez para verem a cara dos vereadores após a autopromoção. Havia muitas pessoas, a maioria absoluta branca.

Enquanto isso, a algumas centenas de metros deste local havia um aluno, negro, que estava na aula de política, e que informava ao seu professor que respeitosamente não terminaria de assistir a aula, porque desejava participar como cidadão da sessão na Câmara Legislativa de Paranaíba, pois era morador, pagador de impostos e também responsável pelo desenvolvimento deste lugar.

Iniciada a sessão, plenária lotada, vereadores acuados, sem saberem como se comportar diante da ação de parte da população de Paranaíba, optaram por tomar a decisão que qualquer animal acuado tomaria: a violência!

Era necessário fazer alguma coisa, só não sabiam como exatamente e contra quem e, para isso, existem os lacaios! Entre as várias pessoas, um dos lacaios identificou um jovem negro e um mamão amarelo, maduro! Onde já se vi? Um negro com um mamão em punhos dentro da Câmara de Vereadores? Só poderia ser um ato de violência! Um mamão maduro nas mãos?! Por acaso nunca ouviram falar do poder explosivo dos mamões? Da capacidade dos caroços pretos perfurarem roupas e até mesmo a pele (majoritariamente branca) daqueles que legislam em causa própria?! Onde já se viu!?

Tratou-se, a mando de algum membro da Câmara Municipal (não identificado), imediatamente, de solicitar apoio militar, armado com equipamentos letais, pois tratava-se de uma situação de tremenda periculosidade e o “terrorista” deveria ser neutralizado imediatamente! Onde já se viu, um garoto negro segurando um mamão!? Um garoto negro com um mamão em uma Câmara Legislativa?

A origem do mamão, na verdade, se tratava de um presente de uma amiga; de um alimento, pois normalmente o mamão amarelo está pronto para o consumo. Trata-se de um alimento muito importante para o corpo; tratava-se de um presente e como tal era carregado nas mãos (alguém conhece algum recipiente para guardar mamões para que não seja confundido com armas de terror?)

Mas o idiota (do grego, idiótes, aquele que apenas se preocupa com si, não com a cidade), ignora as propriedades do mamão e, ainda, a relação dos seres humanos com essa fruta. O desdobramento é que o jovem negro foi visto como uma ameaça, acusado, imobilizado e agredido pela Polícia Militar a mando de algum vereador específico. Quem assina o boletim de ocorrência é a funcionária da Câmara Municipal, Sra. Elizangela Aparecida Ramos Borges, informando que o entrevero teria ocorrido pelo fato de o jovem negro portar um mamão maduro dentro da Câmara de Vereadores.

O jovem teve ferimentos na região da garganta, além da humilhação de ter sido retirado a força de dentro de um órgão público sem ter feito nada de errado. O argumento foi apenas a ameaça do mamão e o fato de estar com shorts dentro da Câmara (como muitos outros jovens brancos que não foram presos). A curiosidade é que o mamão ficou apreendido como prova de um suposto crime que, é claro, jamais ocorreu. Os vídeos dessa cena lamentável estão no decorrer do texto.

Do que trata esta história?

Trata-se de uma história de racismo, violência física, abuso e opressão. Trata-se de uma tentativa do poder legislativo municipal aterrorizar aquela parte da população que se indignou com o legislar privado dos vereadores. Foi um artifício para tentar impor o medo através da violência, bem típico do coronelismo escroto e machista que trata a coisa pública como privada e que faz gestores públicos acreditarem que o espaço público é o banheiro das suas casas, onde podem fazer merda de qualquer jeito, a qualquer hora. Pra variar, dentre todos os jovens que ocupavam a Câmara de Vereadores, as agressões se voltaram contra o jovem negro.

Era necessário calar todos que estavam ali, para isso o jovem do mamão foi escolhido, foi vitimado porque era negro, porque era estudante, porque tinha uma fruta na mão que, supostamente, poderia ter como destino a face de algum nobre vereador.

Em outras partes do Brasil, outras pessoas foram presas por terem, supostamente, em mão, um frasco de vinagre… Outros por estarem de chinelos, alguns por carregarem um desinfetante (Pinho Sol – Rafael Braga), outros, supostamente, mamão!

Tudo isso poderia ser piada, mas não é! É apenas a versão moderna do colonialismo escravocrata que nunca deixou de existir neste país!

Com o acirramento da crise, a saída para garantir as mordomias dos políticos corruptos e os interesses da burguesia é justamente garantir que se legisle em causa própria. É preciso fazer os trabalhadores pagarem pela crise e a repressão deve fazer parte deste pacote de maldades! Quanto maior a crise, maior a repressão para fazer passar as leis que farão a classe trabalhadora pagar pela crise que não deram causa. Ao passo que cresce a crise capitalista, cresce também a repressão e nenhum mamão é poupado, menos ainda um jovem negro interessado em participar como cidadão da política de sua cidade!

Seja aqui, ou nos grandes centros, a lógica da repressão se faz presente e demonstra que a organização da classe trabalhadora é mais do que necessária!

Em Paranaíba, nestes últimos dias, foram os vereadores, ignorantes e violentos, juntamente com policiais claramente despreparados para atuar como representantes do Estado e à serviço da Constituição que repetiram a lógica da opressão. Pelo Brasil afora o Estado militaresco, tomado pela política militaresca, trata civis como terroristas, como inimigo interno, “aquele inimigo interno”, aquele mesmo nascido e criado na Ditadura Civil/Militar de 1964.

Reprimir! Aterrorizar e manter o status quo! Um mamão como arma letal!

Ignoram o calibre 12 apontado para barriga de pessoas, sacam pistolas com munição também letal para a população ali presente. Um verdadeiro espetáculo de despreparo da força policial, de ignorância! Não é por menos que o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas recomendou o fim da Polícia Militar no Brasil e nós, signatários deste texto, pelos motivos aqui expostos, pedimos também o fim da militarização da política.

Por mais que se tente encontrar, ao analisar o fato concreto, não há justificativa para hediondez dos desdobramentos dos atos daquela noite.

O vereador Andrew Robalinho tomou o microfone e atacou a UEMS, dizendo que os alunos não votam e não moram em Paranaíba e que “[…] são utilizados por falsos demagógicos a vir aqui fazer fanfarra […]”. Não obstante, analisando os diversos vídeos feitos por pessoas que estavam presentes na cena da agressão, os trabalhos da casa legislativa ocorriam na mais perfeita ordem e não havia nenhum sinal de desrespeito ou “fanfarra” por parte de qualquer pessoa presente naquela noite.

Era uma noite, como dito anteriormente, que a postura dos ilustres Legisladores, desde o início, foi incompatível com a verdadeira honradez exigida para quem ocupa o cargo. Os fatos narrados no boletim de ocorrência, dizem que foi provocado por um membro de referida casa, foi apenas a consubstanciação de uma bestialidade que, talvez, quem sabe, esse mesmo legislador acreditasse que ficaria no esquecimento popular da iniquidade contumaz destes tempos.

No entanto, nos termos da Lei 12.288, de 20 de julho de 2010, que Institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica, ficou definido em seu artigo primeiro discriminação racial como sendo:

I – discriminação racial ou étnico racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo, ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada.

O Estatuto da Igualdade Racial é seguramente considerado um dos principais avanços legislativos de nosso país e instrumento jurídico de aperfeiçoamento ao combate à discriminação e a desigualdade social que são tristes ranços deixados por nossa colonização e desenvolvimento histórico que sempre privilegiou uma sociedade elitista em detrimento do desenvolvimento social e da igualdade de classes.

Além disso, o artigo 20 da Lei 7.716/89, define como crime o fato de praticar,  induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Espera-se de um país democrático que ocorrências relacionadas com qualquer forma de discriminação racial tendam a diminuir. Esperava-se, com a Promulgação de legislação considerada tão avançada, a diminuição dos casos de discriminação racial e o combate exemplar dos casos em que ocorresse um ato de discriminação dessa natureza, ainda mais, um ato tão evidente. Porque justo um jovem negro com um mamão chamou a atenção? A tribuna da casa naquela noite estava repleta de pessoas, no entanto, as diversas imagens de celulares não negam, os trabalhos ocorriam na mais perfeita ordem, silêncio e respeito

É necessário a criação de comitês de segurança por parte da população, pois as “autoridades” políticas e armadas promovem neste lugar uma verdadeira barbárie em nome da “lei”.

Luiz Gama (o advogado negro abolicionista) estaria estarrecido pela forma como a Lei Áurea ainda é tratada como um texto morto por esses ignorantes que se tratam por excelências, mesmo tendo passado mais de 100 anos da abolição.

Alessandro Martins Prado é Mestre em Direito na área de Concentração de Tutela Jurisdicional no Estado Democrático de Direito. Docente das disciplinas de Antropologia Jurídica; Direito Internacional Público e Temas em Direitos Humanos no Curso de Direito e na Disciplina de Direito Internacional dos Direitos Humanos no curso de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – Unidade Universitária de Paranaíba – MS.

Jean Paulo Pereira de Menezes é historiador, cientista político e colunista da Revista Caros Amigos. Doutor em Ciências Sociais pela UNESP de Marília – SP e docente de Política na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – Unidade Universitária de Paranaíba – MS.

Pedro Pulzatto Peruzzo, advogado ativista de direitos humanos, mestre e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, professor pesquisador da PUC-Campinas.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Lara Schneider.

 

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