Em memória de Vítor: nós, os índios e o crime

Por Camila Torres, em Pandora Livre

O episódio foi tão chocante e cruel que sinto embrulhos no estômago ao tentar escrever este texto. Os poucos jornais que noticiaram o caso contaram que, na rodoviária de Imbituba, em Santa Catarina, um menino indígena de dois anos estava no colo de sua mãe quando um homem se aproximou e, com um golpe, cortou sua garganta. A criança morreu nos braços da mãe. Aparentemente, o autor do crime apresentava distúrbios mentais e era usuário de drogas, mas a motivação para o crime segue pouco esclarecida. Independentemente disso, o brutal assassinato nos relembra a necessidade de conversarmos sobre um tema tão antigo quanto urgente: nossa relação com os povos indígenas.

“Se um indígena cortasse a garganta de uma criança branca o Brasil viria abaixo. Quero a mesma indignação pela morte do meu filho”, disse a mãe do menino ao jornal O Estado de São Paulo. Em comunicado, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) manifestou preocupação com a intolerância que se propaga, na região sul do país, contra os povos indígenas. “Um racismo – às vezes velado, às vezes explícito – é difundido através de meios de comunicação de massa e em redes sociais”, diz a nota.

“As rodoviárias são espaços frequentemente escolhidos pelos Kaingang para descansar, quando estes se deslocam das aldeias para buscar locais de comercialização de seus produtos”, explica o CIMI. Os Kaingang, etnia a que pertencia a criança, ainda não tiveram a demarcação de suas terras concluída e, no verão, costumam ir ao litoral vender seus artesanatos como meio de subsistência.

Nós, no entanto, não nos sentimos menos brasileiros por falarmos inglês, por ouvirmos música gringa, sermos applemaníacos. Abre parênteses para um desafio: quantos applemaníacos estavam entre os que cantarolaram “eu sou brasileiro / com muito orgulho / com muito amor” nas manifestações de 2013? Fecha parênteses.Essa convivência certamente incomoda muita gente. Sobretudo aqueles que, vendo os índios à distância, supõem que não são índios “de verdade”. Ele fala português! E está vestido. Usa havaianas. Ou tênis da Nike.

Ao mesmo tempo, os índios são primitivos demais para estar ali, numa rodoviária, perturbando a dinâmica civilizada da nossa urbanização. Queremos ver, conversar e lidar com gente como a gente. A diferença incomoda.

Para sermos francos, nunca fizemos muita questão de aprender a lidar com os povos indígenas porque esperávamos que eles desaparecessem, que em pouco tempo não sobrassem à nossa vista – os que sobrassem, estariam devidamente incorporados à civilização. A existência de povos indígenas, até pouco tempo atrás, era tratada como uma situação necessariamente transitória pela legislação brasileira.

Quando resolvemos que queríamos ser independentes dos portugueses, nos idos de 1822, tratamos de armar nossa estrutura social de acordo com os moldes europeus: Estado único e Direito único. “Os índios que vivem nos bosques não são brasileiros enquanto não abraçam a nossa civilização”, dizia um deputado à época da nossa primeira Assembleia Constituinte. Não cabia outro modo de organização social dentro desse modelo.

Essa nova sociedade, portanto, pouco tinha de inovadora quanto à ordem anterior quanto à relação entre colonizadores e a população nativa do território brasileiro: a ideia de que todos os indivíduos estariam convertidos em cidadãos traduzia-se na assimilação, absorção ou integração dos povos culturalmente diferenciados, e essa conversão, do ponto de vista dos dominantes, fazia parte das conquistas do processo civilizatório.

Essa projetada integração jamais ocorreu, não só porque as sociedades latino-americanas não ofereceram oportunidades de integração, mas também porque a integração nunca pôde ser sinceramente aceita pelos indígenas. Sobre esse processo de integração, o jurista catarinense Carlos Marés, no livro O renascer dos povos indígenas para o direito, explica:

“Um sistema jurídico que se pretende uno e regido por um Estado impessoal e poderoso não poderia fazer melhor do que os conquistadores portugueses e espanhóis. A nova sociedade tirou dos indígenas tudo o que eles tinham, especialmente sua identidade, para lhes oferecer a integração que nem mesmo os brancos pobres, embebidos pela cultura burguesa, logram conseguir”.

Além disso, o projeto de sociedade que surgiu com a Modernidade buscava o rompimento com o passado. A tradição passou a ser encarada como um empecilho ao desenvolvimento, e sob esse ponto de vista, “local” e “tribal” significavam atraso. E não é só: os índios, com seu modo de organização social, não serviam ao desenvolvimento capitalista, porque para ele não produziam. Povos tradicionais representavam, assim, um anacronismo inconveniente para o padrão nacional que se pretendia erguer.

Nos anos 1960, as projeções oficiais previam a extinção dos povos indígenas em algumas décadas. Os dados divulgados pelo governo federal alegavam não haver mais de 100 mil índios no Brasil. Foi mais ou menos nessa época que ganhou força a ideia de ocupar e integrar o espaço amazônico à realidade nacional, de onde surgiria o slogan “integrar para não entregar”, produto da preocupação dos militares com a possível vulnerabilidade da Amazônia a interesses externos.

O governo militar tinha pressa em abrir espaço para a expansão econômica, e para isso, desapropriou as terras de vários povos e os transferiu para reservas já demarcadas e com evidente superpopulação. Foi assim que se viabilizou a construção de duas das grandes rodovias brasileiras hoje existentes: a Transamazônica, que ligaria o Nordeste e a rodovia Belém-Brasília à Amazônia Ocidental, e a Cuiabá-Santarém, a BR-163, que ligaria o Mato Grosso à Transamazônica.

Em seu caminho, os agentes do Estado se depararam com vários grupos indígenas que viviam isolados. Não tiveram dúvidas: removeram e reassentaram esses povos a fim de abrir fronteiras para a expansão econômica. Aconteceu com os povos Panará, contatados pela primeira vez durante a construção da estrada Cuiabá-Santarém. Com a violência do contato, 2/3 da população Panará pereceram. Em 1975, os Panarás remanescentes foram alojados no Parque Indígena do Xingu, onde já se amontoavam outros povos removidos de suas terras originárias.

O suporte jurídico às iniciativas do governo militar no campo da política indigenista veio também com o Estatuto do Índio, surgido em 1973. Elaborado para regular a situação jurídica dos índios e das comunidades indígenas, o Estatuto se apresentava com o propósito de “preservar a sua cultura e integrá-los, progressivamente e harmoniosamente, à comunidade nacional”.

A perspectiva adotada pelo Estatuto do Índio foi a de que há estágios de evolução cultural pelos quais os indígenas, necessariamente, passarão. Essa visão é sustentada pelo evolucionismo unilinear, para o qual as culturas se desenvolvem de maneira mais ou menos uniforme, atravessando as mesmas etapas evolutivas. Assim, a classificação abrigada pelo Estatuto do Índio enxergou-o como um ser inferior que necessariamente evoluirá até, um dia, integrar a comunhão nacional.

A Assembleia Constituinte de 1988 tornou-se um marco emblemático na nossa relação com os povos indígenas. Foi nela que esses povos ganharam notoriedade nacional, quando dezenas de índios fizeram vigília no Congresso Nacional e pressionaram os congressistas para reconhecerem suas reivindicações. Eles contestavam a diferença entre índios aculturados e não-aculturados presente no projeto de Constituição em votação.

A sociedade brasileira jamais havia visto os indígenas falando em seu próprio nome como naquela ocasião. Ao ouvir o que os índios tinham a dizer, a Constituinte parecia querer inaugurar uma nova relação entre o Estado brasileiro e os povos indígenas.

Como resultado, a Constituição de 1988 abandonou o paradigma integracionista, reconhecendo aos índios o direito de se manterem como povos diferenciados. O direito à diferença foi incorporado como valor jurídico, garantindo-se aos índios o direito de manter sua organização social, seus costumes, suas línguas, crenças e tradições (evitou-se, contudo, falar em ‘autodeterminação dos povos’).

Mas era cedo para comemorar. Com a Constituição de 1988 e o fim da integração compulsória, abriram-se novas questões para o futuro dos povos indígenas do Brasil, deixando lacunas que reclamavam uma nova legislação indigenista com ela compatível. Até hoje, contudo, 27 anos depois da promulgação da atual Constituição, o Estatuto do Índio, que é de 1973, ainda não foi revogado nem revisto.

Esta que vos fala guarda na memória dois dolorosos retratos dessa violenta relação do Estado brasileiro com os povos indígenas. Alguns anos atrás, na Terra Indígena do Alto Rio Negro, na fronteira do Brasil com a Colômbia, eu e a equipe de um projeto de que fiz parte éramos conduzidos por militares do Exército brasileiro em uma embarcação motorizada que, ao rasgar velozmente as águas do Rio Negro nas primeiras horas da manhã, chocou-se com uma pequena canoa com dois índios que ali pescavam, derrubando-os e ferindo-os. Depois de insistir para que parássemos para prestar socorro, já que um dos militares manteve o ritmo do motor e queria seguir viagem – tudo bem, são só índios –, levamos os dois à margem do rio e aguardamos outros militares chegarem para providenciar-lhes cuidados médicos. “O Exército não pede desculpas. O Exército toma providências” foi o que ouvimos em seguida.

Apenas dois dias depois, o segundo episódio: o veículo que nos transportava, um jipe dirigido imprudentemente por um dos soldados, atropelou uma criança indígena que brincava e corria na selva, próximo à estrada de terra aberta pelos militares para que seus jipes trafegassem ali. Dessa vez, não havia hospital nem médicos na região. Restava-nos realizar os primeiros socorros e torcer para que o menino ficasse bem.

As histórias vividas no Alto Rio Negro mudaram para sempre o modo como eu concebia nossa relação com os povos indígenas. Eles não pediram para ser colonizados e, nessa relação, perderam suas terras – com a qual, diferentemente da nossa relação utilitarista-econômica, mantêm um vínculo espiritual e identitário. E a violência a que ainda hoje são submetidos não é meramente moral: é física e espiritual; toca o corpo e a alma. Matou os ascendentes, e agora mata seus filhos.

Por isso, no caso do menino Vítor, causa espanto que o delegado do caso afaste de pronto a hipótese de motivação étnica e insista na hipótese de “satanismo” (ou de distúrbios mentais do autor do crime).

Primeiramente, porque não cabe ao delegado exercer juízo de valor sobre a conduta, mas ao Ministério Público e, mais adiante, ao Poder Judiciário.

Em segundo lugar, porque o caso evidencia a vulnerabilidade a que estão expostos os povos Kaingang naquela região. Diante da promessa constitucional de tutela de direitos fundamentais iguais, a grave omissão do Estado, que continua a retardar a esses povos seus direitos originários ao não lhes demarcar definitivamente a terra, mata-os pouco a pouco.

Mas não é só: os povos indígenas também devem ser livres para aderir a novos hábitos e reinventar sua cultura (afinal, nenhuma cultura é estática), sem que isso signifique, entendamos nós, o abandono de sua etnoidentidade. Em memória de Vítor, não podemos continuar a negar-lhes o singelo, mas historicamente incompreendido direito de ser e de ter direitos.

Camila Torres é advogada pública e atua com direito ambiental. Especialista em Direito Público, interessa-se por temas referentes à política nacional e internacional e questões socioambientais.

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