Carta de Repúdio: “Baixo Sul da Bahia sofre nova ameaça à Comunidade Quilombola de Graciosa”

O ano de 2015 com certeza ficou marcado na história da comunidade de Graciosa. Mas, infelizmente, terminou sem grandes comemorações. Se no mês de abril, os moradores conquistaram uma grande vitória ao fazer uma manifestação para não perder parte de seu território que fazendeiros e empresários tentavam tomar, as notícias ao final de 2015 não foram nada animadoras. Em uma decisão arbitrária e amplamente questionável, o juiz Lincoln Pinheiro Costa, da Subseção Judiciária de Ilhéus, encaminhou o processo que versa sobre o conflito na comunidade em favor dos empresários que vêm pressionando o território quilombola e que planejam ali construir empreendimentos relacionados à expansão do turismo na região.

Os moradores da Graciosa vêm enfrentando nos últimos anos, especialmente a partir de 2007, uma série de conflitos em função do avanço de empreendimentos em seu território. Situado na região do Baixo Sul da Bahia, na divisa entre os municípios de Taperoá e Valença, as margens da rodovia BA-001, o cais de Graciosa é considerado uma área estratégica para os empresários. O projeto em questão consiste na construção de equipamentos de infraestrutura e logística (estacionamento, posto de gasolina e reformas no cais) que possibilitariam um novo ponto de embarque para turistas que tem como destino as ilhas de Tinharé e Boipeba, principais pontos turísticos da região e onde está localizado Morro de São Paulo(1) .

A área em questão é utilizada há mais de um século pela comunidade de Graciosa para pesca e mariscagem, as duas principais atividades desempenhadas pelos moradores. Composta por 154 famílias, em 2008, Graciosa foi certificada pela Fundação Cultural Palmares (FCP) como comunidade quilombola e após a aproximação com o Movimento de Pescadores e Pescadoras (MPP) e com o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), vêm se organizando para resistir e enfrentar o avanço de empreendimentos em seu território.

Embora os conflitos tenham se acirrado mais recentemente, os problemas diante de interesses de empresários no território são mais antigos. Entre os anos de 2003 e 2007, a Aquicultura Grupo Graciosa LTDA, empresa de José Alberto Soares, chegou em Graciosa com um projeto que prometia criar uma cooperativa com os pescadores da comunidade. O fato é que este projeto, que teve como proposta a criação intensiva de tilápias e ostras, em nada beneficiou a comunidade. Pior que isso, o empreendimento causou diversos impactos negativos para os moradores, como, por exemplo, a restrição de acesso dos moradores ao rio, o desmatamento de área de extrativismo, o aterramento de fontes de água, o desequilíbrio ecossistêmico e o desaparecimento de parte considerável da fauna local. Em 2008, o projeto de aquicultura foi embargado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).

Mais recentemente, no ano de 2014, frente a forte especulação imobiliária relacionada à expansão do turismo na região, José Alberto fragmentou a área e negociou a “venda” para os empresários Fernando Alves Magalhães e Tarcísio Meirelles. Tarcísio é irmão do deputado estadual Hildécio Meirelles (PMDB – BA), político ligado a projetos de expansão do turismo na região. Hildécio, que já foi prefeito de Cairu (município limítrofe) por três gestões (1993-1996, 2005-2008 e 2009-2012), tem declaradamente o turismo como uma de suas principais plataformas políticas para a região, e vem através de sua atuação política viabilizando ações e iniciativas para o avanço deste segmento no Baixo Sul.

No início de 2015, Hildécio assumiu também a presidência da Comissão de Infraestrutura, Desenvolvimento Econômico e Turismo da Assembleia Legislativa da Bahia. A construção dos empreendimentos em Graciosa se ancora, portanto, nesta forte articulação política e econômica, que tem grande poder de influência na região. Apesar do discurso que promete “desenvolvimento”, o modelo no qual o turismo vem sendo promovido no Baixo Sul acarreta em prejuízos diversos às comunidades. Nos projetos de expansão, via grandes empreendimentos, nada se fala sobre o Turismo de Base Comunitária, uma alternativa que poderia de fato contribuir para um modelo de desenvolvimento mais justo e com resultados positivos para as comunidades tradicionais.

Diante dos inúmeros problemas já vivenciados pela presença desses empresários, os quais podem ser observados em maiores detalhes no registro do caso que está disponível no site do Mapa de Conflitos da FIOCRUZ, a comunidade de Graciosa vem promovendo diversas estratégias de resistência aos empreendimentos. Em 08 de abril de 2015, os moradores fizeram uma grande manifestação em defesa desta importante área de seu território, como uma estratégia para barrar a construção dos novos empreendimentos e para pressionar o Intituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a dar andamento a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Demarcação (iniciado apenas em agosto de 2015), o que garantiria juridicamente a autonomia da comunidade em seu território.

Paralelamente, a comunidade, em parceria com a Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR), vem formalizando diversas denúncias na justiça relacionadas tanto aos crimes ambientais e às inúmeras irregularidades dos empreendimentos em questão, como também no que diz respeito às ameaças e pressões que a comunidade vem enfrentando por parte de pessoas ligadas aos empresários. O principal litigio judicializado se relaciona a um pedido de reintegração de posse movido pela Tinharé Comércio de Combustíveis LTDA, que foi julgado na Justiça Federal, na Subseção Judiciária de Ilhéus, pelo juiz Lincoln Pinheiro da Costa. Cabe ressaltar que Tarcísio Meireles, dono da empresa Tinharé Comércio de Combustíveis LTDA, nunca teve posse da área em questão, o que denota a incongruência do pedido de reintegração.

O fato é que diante desta enorme pressão política e econômica exercida pelos interessados na construção do empreendimento, o juiz expediu decisão em favor dos empresários(2) . Agindo de forma arbitrária e em desconsideração ao posicionamento da comunidade de Graciosa, a decisão judicial se configura como uma ameaça concreta ao moradores e principalmente às práticas tradicionais relacionadas à pesca artesanal. O argumento utilizado pelo juiz para tomar sua decisão é amplamente questionável. Enumeramos a seguir alguns dos pontos que julgamos problemáticos:

(i) Em primeiro lugar, a decisão desconsidera a organização interna da comunidade, atribuindo o posicionamento político assumido pelos moradores (contrário ao empreendimento) a supostas “ONGs e advogados”. Ao mesmo tempo, distorce a atuação importante realizada historicamente pelas organizações de assessoria e pelos movimentos sociais no apoio aos grupos que vivem à margem em nossa sociedade e que sofrem com o avanço do “progresso” e do “desenvolvimento”. A comunidade de Graciosa hoje faz parte do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) e é assessorada pelo Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) e pela Associação de Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR) que vêm acompanhando tanto os trâmites burocráticos para a titulação do território quilombola junto ao INCRA e à SPU, quanto os processos judiciais movidos pelos empresários contra a comunidade. Em hipótese alguma isso quer dizer que essas organizações promovem qualquer tipo de “patrulhamento” na comunidade. Todos os representantes que estão à frente do movimento de resistência são moradores de Graciosa e o posicionamento político assumido parte essencialmente da própria comunidade. Ou seja, ciente de todos os problemas que o empreendimento acarretará para a pesca e a mariscagem, é a comunidade que diz NÃO ao projeto.

(ii) Em segundo lugar, o parecer do juiz denomina como “radicalização” um posicionamento absolutamente legítimo da comunidade, que rejeita integralmente os projetos e empreendimentos em questão. Ora, se todas as alternativas ou acordos implicam na manutenção do empreendimento, fato que é contrário ao interesse da própria comunidade, que postura assumir se não a negação do projeto? Porque motivo deveria a comunidade ser complacente ou aceitar um acordo com relação a algo que comprometerá a vida e o trabalho dos moradores? Quem, no caso, estaria sendo radical se são o senhor Tarcísio, os políticos e empresários envolvidos no caso que não abrem mão da construção do empreendimento no território de Graciosa? Durante a audiência e a inspeção, o juiz realizou esforços para que fosse firmado um acordo entre as partes. De que forma esse acordo poderia ser razoável para a comunidade se a construção do empreendimento não é algo que está em negociação? Porque é a comunidade e seus representantes quem deve assumir o ônus do acordo e não os empresários? O que, para além dos interesses econômicos e políticos, justifica e dá legitimidade à construção deste empreendimento?

(iii) Ao tomar tal decisão em favor dos empresários, o juiz negligencia o fato de que a área em questão é território quilombola, reconhecido e certificado pela Fundação Cultural Palmares e com processo de titulação tramitando no INCRA. Contraria, portanto, o processo administrativo que vem sendo conduzido por duas instituições do Estado e que se ampara legalmente no Artigo 68 da Constituição Federal de 1988. A implementação de um estacionamento, de um posto de gasolina e de demais obras de infraestrutura em um local onde os funcionários do INCRA e da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) já estão em atividade, acarretará na tumultuação do processo administrativo já em curso. Desse forma, o efeito da decisão tomada resulta em prejuízo direto para a delimitação do território quilombola da comunidade de Graciosa.

(iv) Por fim, em sua decisão o juiz Lincoln Pinheiro da Costa negligenciou o impacto extremamente negativo que este empreendimento acarretaria para a subsistência e a reprodução socioeconômica dos moradores de Graciosa. Atualmente, dado o aumento do fluxo de lanchas de turistas no Rio da Graciosa, já é possível verificar um processo de degradação dos manguezais da região. A construção do estacionamento e do posto de gasolina, para além de dificultar o acesso dos moradores ao rio, implicará um aumento exponencial da degradação dos manguezais, principal fonte de renda dos pescadores de Graciosa.

A região do Baixo Sul (ou Costa do Dendê), onde está localizada Graciosa e outras tantas comunidades quilombolas, é hoje um dos principais destinos turísticos do litoral nordestino. Neste verão, muitos viajantes procuraram as praias dessa região, mas certamente poucos tomaram conhecimento dos graves conflitos que assolam a população local e seus territórios. O turismo e o desenvolvimento, no modelo em que são pensados e construídos, parecem querer riscar do mapa as comunidades tradicionais.

Mas a resistência existe! A comunidade de Graciosa resiste e por meio desta carta vem a público dizer NÃO AOS EMPREENDIMENTOS do turismo em seu território.

Assinam:

Associação de Pescadores e Marisqueiras de Graciosa

Associação de Remanescentes Quilombolas de Graciosa

Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais – MPP

Conselho Pastoral da Pesca – CPP

Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia – AATR

Grupo de Assessoria Jurídica Popular – Universidade Estadual da Bahia – UNEB

Nota:

(1) No âmbito da expansão do turismo na região do Baixo Sul da Bahia, se a comunidade de Graciosa está localizada no ponto de embarque para as áreas turísticas, a comunidade quilombola de Batateira está situada no local pretendido para o desembarque, já na Ilha de Tinharé. O conflito nessa comunidade é marcado por graves episódios de violência, envolvendo articulação de policiais e políticos locais. Clique aqui para saber mais a respeito.

(2) São três processos diferentes movidos contra a comunidade, sendo um em nome de José Alberto Ornellas, um em nome da empresa Tinharé Comércio de Combustíveis LTDA, e outro em nome de Fernando Alves Magalhães, que também “comprou”, de maneira irregular, parte da área em questão.

 Contato: [email protected].

Veja vídeo a respeito e como ajudar em:

Baixo Sul da Bahia sofre nova ameaça: Comunidade Quilombola de Graciosa pode ser expulsa por estacionamento e posto de gasolina

Destaque: Manifestação da Comunidade Quilombola de Graciosa por seus direitos em abril de 2015.

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