A arte da sabedoria indígena

Um dos maiores expoentes do povo pataxó, [Kanátyo Pataxó] é também professor na Escola Indígena Bakumuxá, autor de quatro livros e canções sobre a relação do índio e do homem com a natureza. Ele apresenta show “Cantos para Alfabetizar” no 10º Festival de Verão da UFMG, amanhã, a partir das 18h. Ele conversou sobre suas inspirações artísticas, a resistência indígena e a importância de suas obras terem chegado às universidades.

Você nasceu em Barra Velha, na Bahia, mas se mudou para Minas Gerais depois de adulto, aos 30 anos. Como eram os pataxós naquela época e como está sendo o modo de vida de vocês hoje?

Nós (o povo pataxó) estamos reduzidos em pouco mais de 10 mil no Sul da Bahia, um pouco menos em Minas Gerais, na região de Itapecerica, onde moro hoje em dia, na aldeia Muã Mimatxi. Em 1951, eu nem era nascido ainda, mas um grande motim praticamente acabou com a aldeia de Barra Velha. Ficou conhecido no Brasil todo como o “Fogo de 51”. Muitos índios foram presos, tivemos mortes também, muitos nunca mais quiseram voltar para lá – mesmo tendo os corações partidos por tomarem essa decisão. Mas muitos outros também retornaram por não conseguir deixar sua terra. Eu fui criado em Barra Velha, mas sempre tive vontade de encontrar a terra prometida (Muã Mimatxi). E saí da Bahia para viver um sonho, o que vivo hoje, ensinando crianças, dando palestras, compondo, escrevendo livros.

De que forma o “Fogo de 51” marcou a sua geração?

O maior impacto sobre a nossa cultura, nosso modo de vida, foi a chegada do medo. Passamos as décadas seguintes (60 e 70) com medo, escondidos. Eu me chamo Salvino dos Santos Braz, nascido em 21 de junho de 1961. Mas o nome da gente passou a ser um segredo de vida. Nos escondíamos sobre outros nomes e Kánatyo Pataxó é apenas um deles. Hoje não existe esse medo específico como era naquela época. Mas outros medos persistem, claro. O receio que temos do homem branco ainda persiste, muitas vezes em forma de medo. Existem vários índios que não têm qualquer interesse em se comunicar com brancos por medo. Por puro medo.

Como a música, a literatura e a poesia apareceram em sua vida?

Desde bastante pequeno, eu passo horas, dias, observando os animais, a natureza como um todo, entendendo e me aprofundando na cultura do meu povo. E foi enquanto eu estudava que comecei a prestar mais atenção em uma voz muito forte dentro de mim. Uma voz que acabou saindo em forma de canções, livros e todo um conhecimento que é preciso compartilhar.

Suas músicas, como “Minha Aldeia”, “O Brilho das Águas” ou “Do Outro Lado da Terra” parecem sempre analisar e praticamente divulgar uma cultura indígena a terceiros, assim como seus livros. Esse é o principal objetivo da sua arte?

Sem dúvida a minha maior intenção sempre foi compartilhar a cultura pataxó. E entender minha própria cultura cada vez mais. Escrevi “Txopai e Itôa” (1997) para contar a história do primeiro índio pataxó a surgir na Terra. É um índio que nasceu de uma gota de chuva e que teve a missão de ensinar seus irmãos a caçar, pescar, plantar, ao mesmo tempo em que ensinava a se respeitar a natureza. Escrevi a história de forma didática e ilustrei também para alunos que eu tive em Carmésia (MG).

Você tem ideia de quantas canções escreveu? E tem vontade de registrar seus cânticos em um disco, por exemplo?

Eu tenho dezenas de canções, não consigo contar. O importante para mim é que as músicas sirvam ao propósito de atingir a sabedoria. Se um disco tiver esse propósito, pode ser interessante, claro. Mas não é um projeto ou desejo pessoal meu de agora. Para mim, quanto mais pessoas conhecerem nossas cantigas, filosofias e sabedorias, melhor, independente do meio que isso seja feito.

Como a educação indígena contribui para a manutenção da cultura pataxó e quais as principais diferenças que você nota em relação a educação dos não índios?

Olha, no Brasil, essa educação da escola do não índio é um modelo muito ultrapassado. Tem um forte caráter colonizador ainda, que ajudou e ainda ajuda a matar o nosso povo, acabar com a nossa cultura. Dentro da aldeia, nós pensamos na vida, na natureza, pensamos em um projeto de vida longo dentro do nosso território. Tem mais de 15 anos que eu trabalho dentro desse pensamento: educar para a vida. Não para um trabalho mecânico que o homem branco tem. Nossa educação está muito próxima à família e à terra: não conseguimos existir desassociados dessas duas coisas. É por isso que nas nossas atividades escolares criamos o Calendário da Vivência e do Modo de Vida do Povo Pataxó da Aldeia Muã Mimataxi. Para sermos gente, precisamos estar em equilíbrio e fazer alguma coisa a favor das plantas, das águas, do solo. Por que a gente só sobrevive se estiver em equilíbrio com o mundo dos vegetais, minerais e animais. Preparamos as crianças para cuidarem disso e também para saberem como é o outro mundo, que é o dos brancos.

Vários textos seus são usados em academias, citados em teses de mestrado e doutorado. O fato de as universidades recorrerem às suas filosofias é positivo para que os pataxós sejam mais compreendidos?

É um sinal positivo, sem dúvida, para todos os índios. Eu sou formado no curso de formação intercultural de educadores indígenas (Fiei), da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E pude ver vários casos desse interesse pela minha obra, pelos índios. É como se o homem branco, mesmo dentro de seu próprio sistema falido, tentasse ouvir uma sabedoria que não veio das máquinas – mas, sim, daquilo que ele realmente precisa para viver. A educação para nós não é apenas ter acesso a escolas. É entender que nas ciências nada está separado. Nada. É muito comum nas universidades de brancos você encontrar pessoas que estudam pedras, rochas, minerais profundamente, mas não tão profundamente ao ponto de continuarem imóveis, sem mover uma palha que seja enquanto enxergam muito bem a mineração comer nossas terras de uma forma cruel. Esse tipo de conhecimento não é o que procuramos, não é o que abastece a nossa vida.

E tem outros livros para publicar, além dos quatro lançados?

Eu sempre vou escrever e sempre vou compor canções. Mas não faço um planejamento sobre isso. Na nossa aldeia, trabalhamos muito com desenhos. É como se fosse texto para a gente. Quero fazer mais obras ilustradas, mas não tenho nada certo ainda para desenvolver.

Como o senhor enxerga o diálogo do governo federal e a presidenta Dilma Rousseff em relação aos índios e especificamente os pataxós?

Tenho plena consciência de que falta um longo caminho de sabedoria para que a nossa presidenta entenda o índio. O que tivemos nos últimos anos foram portas fechadas, territórios que abrigaram tantas aldeias e que hoje estão sob a vigília de fazendeiros e ruralistas. Mas creio que é preciso um debate mais amplo. Não é novidade que o índio no Brasil nunca foi protegido. Não é esse governo que vai carregar esse peso sozinho nas costas. Todos os que nos renegaram e tentaram nos dizimar estão envolvidos nesse processo de mudança. E eles só vão querer mudar quando entenderem a importância da sabedoria da natureza.

Dica de Combate:

Você pode baixar o livro “Txopai e Itôa” AQUI.

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