Junho de 2013, o “Caso Moro” e a espiral fascista: onde os pontos se tocam

Por João Vitor Cardoso e Konstantin Gerber, em Justificando

Para autores como Foucault e Zaffaroni, a Justiça, no fundo, serve para fazer a polícia funcionar. Segundo este pensamento, a Justiça só representaria as formas de assujeitamento, isto é, de submissão da subjetividade ao que prevalece. É claro que isto não pode ser generalizado.

O direito tem relação com o poder. Porém, reduzi-lo às relações de poder tem como consequência, como bem pondera Willis Guerra, “a politização absoluta – tendencialmente absolutista, autoritária, quando não, totalitária [1]”.

É altissonante a queixa à justiça brasileira por conta da ocorrência de decisões desiguais para casos substancialmente similares (= jurisprudência lotérica). Amiúde este fenômeno fragmenta e gera perplexidade na sociedade. No âmbito criminal, a jurisprudência lotérica (aqui, fundada na “livre apreciação da prova”) desde há muito oculta o seletivismo da justiça penal.

Presentemente, diversos temas polêmicos do campo penal vieram às capas dos jornais após suspeitos de decantados crimes econômicos sentarem-se no banco dos réus, apresentando às elites econômicas o processo penal. Lembremo-nos que um crime é um fato “punível” sobre o qual a polícia, o promotor e o juiz trabalham juntos transformando-o em delito.

Há anos, convivemos no Brasil com a insegurança jurídica, mas não com o radicalismo judicial. Afinal, espera-se do direito justamente o oposto: a estabilidade, a coerência, a tranquilidade. O radicalismo judicial, por sua vez, priva-nos de qualquer referência, aprisionando-nos em sua própria dinâmica vacilante, instável, passadiça.

Não por razão diferente, os episódios protagonizados pelo juiz Moro – nomeamos, dado o desuso dos cânones “do bom juiz não se conhece o nome, apenas a justiça feita por sua sentença”, ou, “da popularidade fugirás e da publicidade, igualmente” – são vestígios deste direito recalcitrante, mas desestabilizador da realidade.

Afinal, no “Caso Moro” estamos diante da inversão de entendimentos pontais (sem precedentes), como no recente julgamento do HC 126.292? Não. O que há são decisões isoladas, erros judiciários, por um lapso de orientação consistente do Supremo, como se deu com a possibilidade de extrapolação analógica do art. 218 do Código de Processo Penal (sobre a condução coercitiva de testemunha, que não comparece sem motivo justificado para ato de que foi intimada), fundada no poder de cautela do juiz.

No HC 107.644/STF (referido pela decisão de Moro que determinou a condução de Lula), entendeu-se que a despeito de não haver mandado de prisão ou flagrante, havia a possibilidade de condução coercitiva pelos policiais e que, com a confissão, era possível a posterior decretação de prisão temporária, por haver provas robustas e se tratar de um crime grave. Trocando em miúdos, a ratio decidendi implicava “confissão + provas robustas”.

Na decisão anterior de Moro, de 24 de fevereiro, houve a determinação de buscas e apreensões (como no caso de Lula e Marisa) e, para os pedidos de prisão temporária (para outros investigados), conversão em conduções coercitivas. Depois, diante de novo pedido do MPF, houve a decisão de 29 de fevereiro, para que o mandado de condução coercitiva fosse utilizado somente em caso de recusa em acompanhar a autoridade policial para depoimento.

Veja que o próprio art. 8º, inc. I, da Lei Complementar n. 75 de 1993 (que dispõe sobre o MPF), afirma a necessidade de ausência injustificada para que o Parquet Federal possa, nos procedimentos de sua competência, notificar testemunhas e requisitar sua condução coercitiva. Se Lula já tinha dado depoimento no bojo da ação da Lava Jato, não havia motivo para condução coercitiva. O motivo é simples: não houve ausência injustificada.

Outra situação seria se provas estivessem sendo destruídas. Daí o caso seria cessar a sua destruição – fundamento largamente utilizado para prender muitos inocentes da população brasileira, não raro criminosos da “baixa criminalidade econômica”. No mais, o que ocorre são essas prisões temporárias sem fundamentação, sem base empírica.

Nessa estória: uma coisa é Ministério Público Estadual; outra é Ministério Público Federal. A defesa do ex-presidente questiona no STF por meio da Ação Cível Originária 2833 a competência do Ministério Público Estadual. O que ocorreu foi a recusa a depor junto ao MPE (Estadual), apresentando-se justificativa por escrito, por ter havido erro na notificação.

O MPE pode investigar, mas não pode ele próprio determinar a condução coercitiva. É o que depreendemos do julgado no HC 94.173/STF. Conduções coercitivas são determinadas pelo juiz, em caso de desatendimento de intimação. Daí porque a defesa do ex-presidente ingressou com HC no Tribunal de Justiçado do Estado de São Paulo.

O que houve, então, no bojo da Lava Jato? Uma mini-prisão-temporária? Prisão administrativa? Um convite mais contundente para depoimento, com direito a linchamento midiático?

Ademais, a fundamentação do pedido de condução forçosa pelo MPF para“evitar possíveis tumultos” (sic), para sermos sutis, foi calcada em futurologia. Para sermos menos sutis, foi uma falsificação processual, ou, “drible da vaca hermenêutico [2]”. Agora, sociologicamente, foi uma alucinação política desestabilizadora da realidade. Sem por aqui insinuar a impossibilidade de auscultar o ex-presidente, que deve, sim, prestar contas de suas atividades, como qualquer um. Não se pretende aqui fazer a defesa do Ex-Presidente, pretende-se fazer a defesa do direito de defesa do Ex-presidente, que é um direito de todos.

Pois bem, o MPE pediu a prisão de Lula (com direito a Marx com Hegel). A justiça de São Paulo remeteu o processo a Curitiba. Durante a reunião para discutir a situação de Lula, houve notícia de que a Polícia Militar foi “averiguar”, o que nos parece que o preceito da ordem pública, invocado por quem quer seja, Ministério Público, Judiciário ou PM, pode fazer ressurgir a prática da detenção para averiguação ou simplesmente da intimidação, que tem como disfarce o dissimulado conceito de “polícia preventiva”, para preservar a “ordem pública”.

No ponto, os partidários do governo constatam que este governo nada conseguiu fazer em termos de cooperação federativa para democratizar as forças de segurança pública e instituir a cultura do devido processo legal, quando se deparam com situações do tipo descrito. Da mesma forma, quando tais políticos se encontram encarcerados, como o caso de José Dirceu, constatam que pouco foi feito para a instituição de penas alternativas, para a alteração da política criminal ou reversão da cultura do encarceramento em massa.

A partir de narrativas desencontradas, inconscientes, uma voz coletiva de prisão surgiu no último dia 13 de março. Talvez Foucault esteja certo e isto se trate da “manifestação de poder mais delirante que se possa imaginar”, pois a prisão “se mostra como tirania levada aos mais ínfimos detalhes”, figurando “como dominação serena do Bem sobre o Mal, da ordem sobre a desordem [3]”; dos limpos sobre os feios, sujos e mal lavados.

E como eles querem limpeza! Mas é fácil constatar que nestes rostos pintados e corpos involucrados na bandeira nacional, subjetividades mesclam-se numa teia de desejos, interesses contrastantes: não só elitistas, escravocratas, racistas, etc, mas também conflitos entre modos de existência que colidem.

Não tínhamos como saber se o Junho de 2013 foi uma explosão efêmera ou um ciclo inaugural na política brasileira. Mas, infiltrados de todo tipo viram neste momento uma oportunidade única para emplacar o “Fora Dilma”.

A pergunta retorna, o que queria a multidão? Ela era tudo, menos um bloco homogêneo. Mas claro que uma multidão pode virar massa. Vale aqui relembrar a diferença entre massa e multidão para Negri. A massa é homogênea, compacta, tem um único rumo, segue um único líder. Delega a este único líder o poder e a representação. Como no Nazismo. Em contrapartida, a multidão é multiforme, policêntrica, heterogênea em suas direções e estilos. Não se deixa representar por ninguém. Pois ninguém mais representa ninguém!

Como um movimento tão rico foi deixado nas mãos de seitas ocultas, direitas organizadas ou dos fascismos que grassam por toda parte? Não deveríamos ter estigmatizado os jovens que se cobriram com a bandeira brasileira e demais signos que tinham à mão, por vezes, na inocência de seus usos retrógrados de outrora.

Eis que surge um MBL, passando pelo portão das ruas, aberto pelo MPL em 2013. “Revoltados On Line”, Carecas do Subúrbio, do ABC, em nome desta massa passam a falar, por via (in)direta. Mas, não, pelas vias institucionais.

As manifestações atuais não indicam a luta por elevação do nível de vida coletivo. Invocam modelos de vida da classe média, tomada como universal. Modelo que dizima cotidianamente modos de vida menores, minoritários, não apenas mais frágeis, vulneráveis, precários, mas, também, experimentais, insurgentes, potencialmente contestadores.

Não vamos provocar muito com filosofia, mas como sugere o próprio Foucault “a política é a guerra continuada por outros meios [4]”. Nesse sentido, todas as prisões não deixam de ser políticas, seja da alta ou da baixa criminalidade econômica. E a atividade filosófica – além do risco da parrésia – não costuma deixar as questões respondidas, não faz dogmática.

É preciso, portanto, parcimônia para que a Aletheia (= busca da verdade, em grego) não implique em simulacro. No mundo moderno, como diz o francês Baudrillard, “é sempre uma questão de provar o real através do imaginário, de provar a verdade pelo escândalo, de provar o trabalho por intermédio da greve, de provar o capital pela revolução [5]”. Trocando em miúdos, “definimos a modernidade pela potência do simulacro [6]”. A luta contra as corrupções não se trata de confiar no Deus dará. Pelo contrário, num momento tão aberto, trata-se de fortalecer aquelas direções que preservem a nossa existência. É necessário diferir o que é redemoinho do que é pororoca! Não se deve subestimar a inteligência bem como a potência psico-política da multidão. Como alude Deleuze, não se deve ignorar o devir revolucionário das pessoas.

Sabe-se que o vazamento de delações e escutas é crime. Só o fato de revelar a identidade de quem colaborou já configura crime (art. 18 da Lei 12.850 de 2013). A isto definimos como “Caso Moro”: a delação é sigilosa, o que corresponde ao segredo de justiça, cuja violação também é crime (art. 10 da art. 10 da Lei 9.296 de 1996)7.

Errata: O Supremo já reverteu 15 prisões preventivas decretadas por Moro. O Ministro Marco Aurélio, cuja jurisprudência é densa no tocante ao reforço do ônus argumentativo como requisito para a decretação da custódia processual, já sinalizou a falta de fundamentação na condução coercitiva de Lula. Porém, não precisaria haver manifestação alguma por parte do Supremo para conjecturarmos a (i)legalidade da medida, caso a corte tivesse uma jurisprudência sólida a respeito do tema. Porém a sensação que fica é que temos, a um só tempo, o Supremo autoritário em relação à política, mas acovardado pela mídia.

Joao Vitor Cardoso é Graduado em Direito pela PUC-SP, onde integra o grupo de pesquisas em direitos fundamentais. Pesquisador do PIBIC-CEPE (até 2012), do CNPQ (até 2013) e do NETI-USP. Advogado em São Paulo. Email: [email protected].

Konstantin Gerber é Advogado Consultor em São Paulo, mestre e doutorando em filosofia do direito, PUC SP, onde integra o grupo de pesquisas em direitos fundamentais. Professor convidado do curso de especialização em direito constitucional. Email: [email protected].

REFERÊNCIAS

1 Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da Constituição. RCS, Sao Paulo: 2007, pág. 217.

2 STRECK, Lenio. Condução coercitiva do ex-presidente Lula foi ilegal e inconstitucional. Disponível em: [http://www.conjur.com.br/2016-mar-04/streck-conducao-coercitiva-lula-foi-ilegal-inconstitucional]. Acesso em: 4 de março de 2016.

3 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 5ª Edição, Graal, pág. 73

4 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 15.

5 OARES, Holgonsi. Simulacro: verdade ou mentira pós-moderna? Publicado no jornal “A Razão em 29/03/96.

6 DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. 4ed. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 271.

7 A Resolução n. 217 do CNJ determina a investigação pelo juiz dos casos de vazamento.

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